A
casa da verdade e a fuga da mentira
Roberto Pio Bastos
Aletéia
é o não esquecer... O que não se esquece é a verdade.
-
Aquilo que você não esquece é verdade?
-
Então, a mentira lembrada pode ser verdade?
-
Onde entra a memória inventada, a falsa memória, uma falsa verdade?
A
Assembleia Legislativa de Minas, da rua
Tamoios, prédio já demolido, foi para a Cidade Jardim.
Na rua Tamoios, o deputado herói pracinha da grande guerra, mesmo no seu silêncio da tribuna, é ouvido como se estivesse no campo de batalha.
Na rua Tamoios, o deputado herói pracinha da grande guerra, mesmo no seu silêncio da tribuna, é ouvido como se estivesse no campo de batalha.
-
Ele lutou na segunda grande guerra!
Apontam
para ele e nele se fixam olhares que reinventam batalhas heroicas e que há três
mandatos o devolvem para ser o Herói Apontado.
Para
o jovem que observa não se justifica o tanto que se apregoa e uma memória ainda
não avaliada como fato inquestionável.
Para
aquele adulto, que carrega a pasta do Deputado Herói Apontado, não se discute
nada, é um herói, e pronto e o povo, convencido, o devolverá sempre à
Assembleia até que o esquecimento (a mentira) prevaleça.
Lembra
personagem de romance que, ao relatar suas façanhas na resistência à invasão da
Rússia, por Napoleão, que contou como perdeu a perna em uma batalha a um amigo
do príncipe Michikin. A perna o desmentia quando ficava sóbrio. A perna estava
ali intacta.
Destrói-se
ou confirma-se que a mentira tem perna curta.
Rio Letes – Para se chegar
ao inferno deve-se atravessar o rio do esquecimento - esquecer de tudo.
Quantas
vezes na vida, quantas vezes no dia, o homem não atravessa o Letes?
Quantas
vezes ao dia o homem não chega ao inferno, não está no inferno, além do
esquecimento?
–
Não esquecer (a verdade) lembrar (sempre) ter a verdade não seria inútil,
impossível e difícil para um homem ao longo de sua vida, ao longo de um dia?
..........
-
Garoto, sempre se acredita no poder da palavra. Palavra como expressão, como
verdade e ou possibilidade da verdade, como fuga, como experimento, como mágica.
-
Agora, meu amigo, aos quase noventa anos, assusto-me com tantas dúvidas, tenho
dúvidas do aprendizado da palavra.
-
Para que aprender a ler e a escrever? Qual o sentido deste aprendizado?
Resgata-se
aqui, as dúvidas de Thomas Mann, em A Montanha Mágica, sobre escolas como
penitenciárias, destruidoras da vida dos jovens e como “acessório da supremacia
burguesa”.
Crescem
os temores de que há uma complexa rede de controle e de domínio do homem, de
submissão de todos os homens.
Nesta
intrincada rede, a palavra e a gramática seriam tanto instrumentos de
aprisionamento do homem como o seriam as celas e as grades de uma prisão, como
seriam os guardas que limitam a caminhada dos presos, impõem as palavras certas
e as palavras erradas, o escrever certo e o escrever errado.
-
Não haveria uma gramática libertadora, criadora? Não haveria um léxico
subversivo, audaz, insubmisso?
-
Começa-se, então, a buscar as origens
destas preocupações e destas cautelas, destas dúvidas e destas indagações – uma
fonte rica, riquíssima, seria Espinosa.
-
Não se tem certeza disto se não se chegua à análise da gramática iídiche.
Em
Espinosa evidenciam-se as pistas do que se trata desta preciosa abordagem de
aprisionamento do cérebro.
-
Heidegger também – “a linguagem é a morada do ser”, aí se lê também que a
linguagem pode ser o cárcere do ser.
Entrando
naqueles países baixos, na época de Spinosa, dá para imaginar a sua luta para
sobreviver, o seu dia a dia. Sua resistência pela liberdade.
Vê-se
naquele homem sua grande ousadia (era, com certeza, um homem extremamente
alegre e debochado) e seu imenso desprezo pelas poucas chances de libertação –
assim se entende seu ofício (seu deboche) como polidor de lentes (uma metáfora)
para a busca da visão possível, da melhor visão, do aprimoramento da visão, da
correção da visão.
Isto
sem trazermos A Galaxia Gutemberg, em que Marshall McLuhan (**) aponta a
introdução da tipografia na desorganização mental dos indivíduos e na origem de
graves doenças psíquicas.
Notas
(*)
Aletéia
Heráclito
de Éfeso, in Pré-socráticos, cole;ão Os pensadores, da Abril, 1978, p 79
B
– Fragmentos
Sobre
a natureza
1.
Sexto
Empírico, Contra os Matemáticos, VII,132
...Aos
outros homens escapa quanto fazem despertos, tal como esquecem quando fazem
dormindo.
2.
No
grego lanthánei, do mesmo tema de léthe (= esquecimento), que forma a-létheia
(lit. não esquecimento) = verdade
(**)A Galáxia de Gutenberg é uma obra de Marshall
McLuhan, na qual este analisa a emergência da escrita e da tipografia. A
tecnologia tipográfica que nasce com Gutenberg é fundadora da modernidade e
da civilização industrial. Num primeiro momento, com a escrita, há uma
transição da cultura
tribal, fechada e estável para o aparecimento do homem alfabetizado,
individualizado, vivendo na
instabilidade das sociedades modernas. Num segundo momento, com o advento da
tipografia, intensifica-se o culto do indivíduo, a ideia de nação. Segundo
McLuhan, nacionalismo,
industrialização e mercados de massa são resultado da extensão tipográfica do homem.
http://www.citi.pt/estudos_multi/ana_cristina_camara/gutenberg_marconi.html