terça-feira, 22 de novembro de 2016

NA CUCA












O sofrimento de Valéria


Bella Heloísa











Eu sabia que viria.


Não sabia quando.


Exatamente quando,


Havia a certeza


Como a da morte


Que sempre sabemos que virá


Nunca, exatamente, quando e de que forma.







Quatro dias antes eu sabia


Pressentia


E meus nervos tensos


corda de violino.


Sabia que alguma coisa engendrada


Ou que se desenrolava


E não sabia de onde, nem como viria.








Sentia o cheiro no ar


No hálito, no corpo


que recusava, que evitava,


que se queria distante de mim.


Algo paira


O cheiro da casa inteira mudou.






Agressiva, e não digo nada


Impaciente,


Ele, nada


Cada um no seu canto


E ele, tudo bem.






Vejo filme


Ele,  no escritório


Rasga papel,


lê,  como todo o tempo.


Escreve, escreve, escreve


Ouço as palavras digitadas






De repente,  a dor  do punhal.


Ele, doce e gentil:


“Acabou o filme, então vamos caminhar?”


A dor.


Eu, arrumando a cama:


“Não estou afim, já caminhei hoje”


Anuncia que já vai, me deixar dormir.


Como se tudo bem


Como se tudo em ordem.




A dor.


Aviso que deve ser de vez.


Começo a expor e ele volta ao discurso:


“eu tentei...”


Reajo.


Esse discurso é meu!





Ele vai.


É o coitadinho.


A dor.






Até a lixeira.


Minhas mãos no lixo


Colher as folhas rasgada.






Não entendo o que se passa


Junto os pedaços e leio.






A dor


Forte


Muito forte

.
A dor






Não entendo nada.


Iludo-me ainda.


Digo a mim mesma que há séculos me encontra.


Sou eu a mulher de quem fala?







Afasto-me


Vergonha


Abandono os pedaços.


Volto, leio de novo.


Decido colar, emoldurar, ler.


Guardar na estante.







De novo sou impelida.


Volto à estante.


Leio.


Uma, duas vezes.


Enfim, leio devagar,


Palavras, sílabas, pausas












“19...


mil novecentos


mil-novecentos e ...


não posso datar este poema


esta mulher não tem data


- É uma mulher eterna?


Um sentimento, um momento


A ela retorno sempre e sempre a encontro


Eterna


Igual


Momento em que é tudo igual


O mesmo sorriso,


a mesma alegria


O mesmo olhar,


a mesma boca”