quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

MEMÓRIAS SUJAS DE TINTA





Resultado de imagem para chuva no asfalto





17 estocadas atrás de um coração




Renato Neri




De vez em quando a cidade me envolve nas suas loucuras e tragédias. Hoje de tarde havia o calor sufocante. Minha testa suada, as minhas mãos sujas de tinta de jornal. No céu nenhuma possibilidade visível de chuva. Sabíamos que, com o calor, a chuva viria.

Realmente, duas horas depois enquanto fazia as minhas anotações, a chuva caiu. Foram pingos tão separados, em meio a um vento, talvez fossem lágrimas para os dois mortos.

Tropecei nos dois cadáveres de mulheres. No carro da polícia, vi as mãos do criminoso sujas de sangue. Ele cantava uma canção que falava de traição. Sol quente, as pessoas vindas de todos os barracos.

Quem morreu?

Foi ele quem matou a sua mulher e a sogra?

Ele acabou com a sua paixão.

Foi a dor.
           
No chão, a mulher e atrás dela o rastro de sangue de uma tentativa inútil de sobreviver. O rasgão no antebraço da moça morta. Foi como uma foiçada, a única nesta tragédia de amor. Ele procurou encontrar o coração e somente encontrou braços e seios para ferir.

- Foi esta a faca, mostra a polícia com a faca enrolada num pedaço de pano branco sujo de sangue.

Certo fez o repórter Roberto Neri que não quis vir ao local. Ele não gosta de fazer local.

Em nós, nascia algo estranho. Em mim, as imagens agarradas nos olhos. Niquinho, nestas situações, começa a cuspir. E em Zé do Carom, o motorista, é olhar prum lado e pro outro, assustado. Zé conversa na Kombi com duas moças. Os meninos queriam ser fotografados e balançavam as mãos. Riem. Do lado da tragédia, o humor.

Nós três, silenciosos, descendo para a cidade, cortando as ruas molhadas, mal molhadas da cidade, onde o céu chorou torto.

Durante um grande espaço de tempo, senti que aquilo não podia ficar dentro de mim. Haveria de sair.

Via, gravado, atrás do arame, atrás das roupinhas de criança, o corpo da mãe, uma mãe de primeiro filho.

Via o corpo caído, um corpo ferido por todas as facadas do ódio, foram 17, 17 facadas em busca de um coração e que não o encontraram.