Do que elas
são capazes
Para Durval Guimarães
Jerônimo Augusto Torres
Cara, a Dona aprontou um senhor barraco, com direito a 190, acionar a
polícia, assistente social judicial e os cambaus.
No dia 29 de dezembro, uma quinta-feira naquele ano, a acompanhei desde
cedo porque ela estava mal.
Eram dores em todo o corpo, moleza, fraqueza, cansaço, dores localizadas
na nuca etc.
Dizia ela que cansava tomando banho. Ela já não conseguia ficar mais de
uma hora debaixo do chuveiro.
“Estou cansada, não estou bem”.
A partir das 15h, hospital.
Antes, ouvir seu especialista em glândulas.
Depois, sim, o hospital, direto para o pronto socorro.
De 15h às 3 da manhã de sexta, fiquei ao lado dela, da cama, acompanhei
todos os exames.
Como um amigo íntimo, pela primeira vez acompanhei uma mulher até o vaso
sanitário para urinar – alguém tinha que carregar o soro.
Ela dava show urinando em pé. Perfeita, a perfeição.
Era a total humilhação para todos nós que erramos sempre o vaso quando
saem jatos divididos. A acompanhei
quatro vezes e nas quatro (conferi) ela não errou uma vez sequer. Nada,
nadinha, nenhuma gota fora do vaso. Genial. Na besteira do elogio, ela reagiu
brava.
“Bobão, todas as mulheres urinam assim. Nunca viu mulher mijar sem
sentar no vaso?”
No pronto socorro é um entra e sai de desesperados e sofredores, quase
todos com os bons acompanhantes (calados).
Eu me divertia me inspirando nas pessoas que chegavam e no pessoal da
enfermaria, enfermeiros e enfermeiras num ritmo alucinante, casos graves e
casos estranhos (para o leigo).
Ali, capturei uma bela história de um senhor de mais de 80 anos e há 4
com demência senil e da sua bela e apaixonada filha
- Ele hoje acordou cedo, tomou café sozinho, conversou, xingou, xingou,
xingou.
A filha relata a vida clínica do pai , facilita o trabalho dos plantonistas
– ela quer salvá-lo a todo custo, quer que ele viva.
“Nem que seja mais um ano”.
Seu olhar doce de filha revela carinho e cuidado. Os médicos gritam o
nome de “seu Alfredo” para identificar suas reações. Ele não ouve os gritos dos
médicos e, pelos olhos, olho no olho da filha, ele demonstra que ouve tudo
aquilo que ela fala com ele com sua voz doce, meiga e baixa.
Às 3 da manhã, o plantonista, dr. Ricardo com uniforme escrito
"cardiologia" disse que não sabia se o que diria para nós, se era
"bom ou mau". Tinha em mãos um pacote de exames.
- Diga, doutor
E ele disse sem meias palavras, com uma papelada de exames, sangue,
urina, eletro, raio x do torax, raio x dos seios da face, exame de sangue
específico para detectar infarto etc:
- Saúde perfeita, você não tem nada, orgânica, fisicamente, tudo
funcionando perfeitamente.
Batata, vó Beza:
- Este médico não presta.
O médico dizia, com cautela que não insinuaria nada, mas que ela devia
iniciar, imediatamente, um tratamento psiquiátrico.
Disse rodeando, não quis dizer a especialidade, mas ela o atalhou e
rasgou as fraldas.
- Há mil anos trato. Minha vida tornou-se um inferno etc. e tal.
Aí datou.
- Desde 2003.
Olhou pro gajo: suspeito, condenado, executado com um olhar de vítima em
busca da solidariedade do pessoal do pelotão de fuzilamento (só o
médico).
A minha sorte foi que ele abaixou os olhos. Não fuzilaria um inocente, não
seria cúmplice deste assassinato e nem seria solidário com o olhar de milícia daquela
justiceira.
As duas palavras do doutor me perseguiriam no resto daquela sexta-feira,
30 de dezembro:
- Bom ou mau.
Seriam bons os resultados de um organismo são e saudável?
Ou seria "mau" ter um organismo bom e saudável?
Todas as dores agora se resumiam à dor de cabeça a partir da nuca. Para
atender ao apelo da sofredora, ele lascou mais um soro e dipirona.
De volta para a enfermaria, de volta para o soro e mais um tempo ali ao
lado da cama.
Depois do soro e do dipirona, a dor de cabeça continuaria.
Mesmo assim, alta e rua.
Deixamos o pronto socorro, caminhando como se estivéssemos voltando de
uma caminhada de 10 quilômetros para maratonistas acostumados a correr 42km e
200 metros.
Naquela sexta, tinha dois compromissos com uma editora e com o meu
escritório.
Aquela sexta daquele ano era dia 30, véspera do dia 31, véspera do ano
novo.
Voltaria às 18h e a levaria para a casa dela, antes teria que passar no
mecânico - carro dela estava com um defeito no alarme.
Suspendi a reunião no meu escritório e voltei mais cedo: 16h
Na casa de Onofre, onde morava, o cenário era de um "assalto".
Bagagens, sacolas e malas espalhadas na sala perto da porta. Ela estava
de saída com tudo aquilo.
Tirara tudo dela, limpou todas as gavetas e invadiu a geladeira.
Diante daquele quadro, disse que ela não precisava ter feito o que
chamei de saída "sorrateira".
A casa fedia a merda. Uma diarreia avassaladora acompanhou todas as suas
ações. Aquele desequilíbrio intestinal seria resultado da tensão e da certeza
de que fazia algo errado.
Pedi para que ela saísse dali o mais rápido possível.
Ela sentou na poltrona. Emburrou. Não sairia.
Disse a ela que aquele comportamento mais se aproximava de um furto -
ela catara até mesmo pequenos objetos que me dera ao longo de um tempo.
Queria entender aquele comportamento.
Afinal, ela jamais poderia acreditar em mim que saíra numa sexta,
véspera da véspera do dia 1 de janeiro, para duas reuniões, sendo que a reunião
da editora eu acertei tudo na frente dela.
Como eu repetia muito a frase do médico que não sabia se a notícia de
que um paciente não tinha nenhuma doença grave, nem infarto, nem inflamações no
torax e nem no seio da face, urina e sangue saudáveis etc.... sempre lembrando
da minha vó Beza, ela transbordava de raiva, ódio e de tudo o mais que chega
com estes dois sentimentos - também saudáveis (?).
Resultado, ela ligou para a polícia porque eu a acusara de furto.
Duas horas ou mais esperando a polícia.
Lógico, que a polícia não apareceu. Eles ouviram e entenderam
perfeitamente o que acontecia.
Na zorra, quando ela quis sair, eu disse
"Não, não, agora vamos esperar a polícia chegar"
Dito isto, raciocínio rápido: caso a polícia mandasse abrir todas
aquelas sacolas e mala, se aparecesse, e apareceria, objetos e bens que não
fossem dela, caracterizar-se-ia furto e para a polícia também seria o caso de
um flagrante e todas as suas consequências.
Eles não poderiam deixar de prendê-la em flagrante. Daí para a frente,
seria drama sobre drama.
Então, o melhor a fazer era torcer para que a polícia não botasse a mão
em uma ladra inocente.
Ela ligou para uma assistente social do fórum, parente dela.
Veio a mulher Assistente Social do Fórum e aqui pousou duas horas ou
mais.
No meio, chuva forte para bloquear a saída.
Passada a chuva, elas foram embora com os alarmes disparando.
Esperei um tempo,meia hora, e fui buscar minha mochila no carro
Lá fora, o meu carro fora arrombado.
"Bom ou mau"?
Quem arrombou não levou nada, nem mesmo a mochila ao lado da janela
arrombada e nem os dois livros que o editor me passara para resenhar.
Bom, bom, bom.
Fiquei sem carro sábado e domingo, 31 de dezembro e 1º. de janeiro, pois
não podia deixá-lo dormir na rua.
E, no final de ano, que seria ao lado da minha menina, fui assistir Easy
rider, feliz por não ter tido o destino nem de Peter Fonda e nem de Dennis
Hopper e nem de Jack Nicholson.
Escapei por pouco. Ela tem péssima pontaria.
Também não gosta da liberdade e de um homem livre.
Ela errou o alvo mais uma vez
Sem mágoa e sem rancor.
Dois anos depois, ela voltou.