Dois mil e 800 soldados mortos em menos de 24h |
Adubo humano
Humberto de Oliveira Sodré
“Uma questão
de horas em que braços voaram ,
largando seus corpos para trás,
cabeças rolaram
para longe de seus corpos
e em que nas sebes
o adubo era gente, pura gente,
seres humanos.”
Na minha
cabeça nunca passou a ideia de que um dia teria que matar alguém ou do que eu
seria capaz numa situação delicada em que para sobreviver teria que matar uma
outra pessoa. Como numa guerra. Foi o que vi e li do Choque Salinger com o
desembarque na Normandia, na praia de Utah, naquele 6 de junho de 1944, carimbado para
toda a mediocridade como o DIA D, quando bem poderia ser o Dia Nenhum.
Situações
que enlouquecem um louco, um atrevido que é capaz de vestir uma farda,
perfumar-se e acreditar-se invencível, onde não há nenhuma chance para a
imortalidade. E naquela praia, a conta em 14h foi uma conta simples,
desembarcaram 3.500. Morreram mais de 2.800. Uma questão de horas em que braços
voaram , largando seus corpos para trás, cabeças rolaram para longe de seus
corpos e em que nas sebes o adubo era gente, pura gente, seres humanos.
Sabia que
não seria diferente a nossa empreitada ao sul do Equador, onde existe pecado e
muito sangue também.
A diferença
era que eu, cara pálida, eu acreditava que jamais faria qualquer trabalho sujo.
Pegar em arma na luta armada não seria a minha praia. Não mataria ninguém e
tudo faria, escudado pelo papel e pela caneta, em limitar-me ao registro. Era
tudo o que poderia dar da minha contribuição à luta daqueles meninos contra a
ditadura.
Jamais
passou pela minha cabeça a ideia da vingança. Sabia que meu irmão e meu primo,
presos, torturados e desaparecidos, morreram numa luta em que nenhum deles
entrara para distribuir bombons e flores. Era desigual em armas e estruturas.
Sabíamos de
tudo isso e sabíamos que aquele gesto de todos era algo bem próximo de uma
derrota. Uma derrota com a qual defrontaríamos não todos os dias, mas todas as
horas do dia, todos os minutos.
Éramos o
alvo e seríamos, na imprudência, o argumento para calar e dominar milhões,
enquanto éramos um tanto que não chegava, como não chegou, em momento algum a
ser algo como um Exército de Libertação Nacional. Nem mesmo um exército.
Por que falo
isso? Num determinado momento, numa noite fria, numa casa em Pocitos, no
Uruguai, decidi que não pegaria em armas. Não abandonaria aqueles companheiros
e nem aquelas lutas.
No horizonte
não me via em treinamentos militares. Seria inútil. Seria se não um combatente
desastrado, um combatente que tombaria como um covarde em meio a tantos heróis.
Veja, não era apenas o medo a pesar, era o gesto inútil, nem a minha covardia.
Eu jamais seria capaz de matar.
Por que
todas estas paranoias quase gigantescas, por atravessarem décadas, mais de 5
décadas?
Porque, hoje, depois que em grande parte do mundo homens passaram a
matar a si mesmo, não como simples suicidas, nem como kamikases.
São agora os homens-bomba
em que se tornaram no mais absurdo gesto militar com a transformação de seus
corpos em armas letais, em que, na sequência jovens, um atrás do outro, entraram,
com os seus corpos nesta guerra absurda, em que mulheres se apresentaram e em
que agora crianças, cara, crianças estão se explodindo para matar dez, 20
pessoas.
Penso como
no distante ano, em Pocitos, eu me recusara a entrar numa luta em que poderia
ter que usar uma arma, usar uma arma significaria atirar em alguém,
significaria matar uma pessoa.
Se antes, eu
recusara, numa luta armada, veja o absurdo e a contradição, eu recusara a ser
treinado para usar uma arma e para atuar em um grupo de guerrilha urbana. Maior
contradição, a contradição real, era a presença naquele grupo de quem
acreditava que era possível a resistência e a derrota da ditadura por outros
meios, mesmo que tivéssemos que fazer todos aqueles exercícios militares.