A queda do
general
“- Mas, dirás tu, como é que podes
assim
discernir a verdade daquele tempo, e
exprimi-la depois de tantos anos?
“Ah! Indiscreta! Ah! Ignorotona! Mas é
isso mesmo
que nos faz senhores da terra, é esse
poder de restaurar o passado,
para tocar a instabilidade das nossas
impressões e a vaidade dos
nossos afetos. Deixa lá dizer Pascal
que o homem é um caniço pensante.
Não; é uma errata pensante, isso sim.
Cada estação da vida é uma edição que
corrige a anterior,
e que será corrigida também, até a
edição definitiva,
que o editor dá de graça aos vermes”.
(Memórias Póstumas de Brás Cubas,
Machado de Assis, pg 63, Círculo do Livro)
Roberto Melo
"Vamos para o meu escritório",
brinquei com meu amigo e ex-guerrilheiro, na época da ditadura militar,
combatida por ele e seus companheiros. Eram guerrilheiros e não terroristas,
como foram rotulados pelos militares e assim ficaram conhecidos.
Meu "escritório" fica numa praça com
frondosas árvores, perto de minha casa. Exatamente em um banco de cimento, sob
a sombra da copa de um dos vegetais lenhosos, que compõem e refrescam o local.
Depois que meu amigo concordou, fomos para lá.
Sentados no banco da praça, conversávamos
sobre política. Principalmente sobre a
falta de opção em relação a nomes de pessoas realmente preocupadas em servir à
causa pública. E, claro, sobre os nossos
políticos que se transformaram em bandidos. Com honrosas exceções.
Papo vai, papo vem. De repente, desperta a nosssa atenção a chegada de um senhor, de
uns 80 a 90 anos de idade, acompanhado de um garoto de uns 9 anos, que mais
tarde soubemos que era o seu neto. Enquanto o neto brincava, o avô o
acompanhava.
Era um homem de quase dois metros de altura e
de porte físico atlético, apesar da idade. Não era para menos. Tratava-se um
general do Exército, hoje aposentado e que mora no bairro onde moro. Sabia que ele era general e contei
para o meu amigo guerrilheiro. Ele apenas
o olhou de soslaio e com desprezo.
Papo vem, papo vai. Numa ironia do destino,
acontece o inesperado. A passar perto de nós, o general, que seguia seu neto,
tropeçou numa saliência do cimento quebrado, comum nas mal cuidadas praças da cidade. Caiu de bruços para o chão, como uma
árvore cortada por uma serra elétrica.
O rosto do general ficou em cima dos pés de
meu amigo guerrilheiro. Quase entrei em pânico. E com motivo. Olha a situação:
um general, que certamente comandou seções de tortura, estatelado no chão, sob
os pés de um guerrilheiro, que foi impiedosamente torturado pelos seus
companheiros de farda. Não devia de ter contado que era um general, pensei.
Qual seria a reação do meu amigo? Lembraria das
desumanas torturas que sofreu, quando esteve preso; do sofrimento imposto à sua
família, quando os militares divulgaram sua morte; ou dos 45 dias em que ficou
preso no Sul do País, numa sala sem vaso sanitário e sem água para tomar banho. Seria a hora de dar o troco?
Lentamente o general começou a se levantar.
Tinha o costume de olhar as pessoas de cima para baixo, principalmente quando
torturava jovens de 18, 19 e 20 anos de idade, que lutavam pela liberdade no
país. Agora, olhava de baixo para cima
para um ex-guerrilheiro, mesmo sem saber quem era aquele homem, cujo pés
serviram para amortecer o seu rosto na
queda que sofrera.
Eu só observando a situação, ainda apreensivo.
Foi quando o meu amigo guerrilheiro levantou-se do banco de cimento do meu
"escritório" e, olhando de cima para baixo para o general, estendeu-lhe a mão para levantá-lo
do chão, numa atitude digna e nobre. E todos viveram felizes para sempre.