quarta-feira, 9 de maio de 2018

Errata pensante


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                     A queda do general






“- Mas, dirás tu, como é que podes assim
discernir a verdade daquele tempo, e exprimi-la depois de tantos anos?

“Ah! Indiscreta! Ah! Ignorotona! Mas é isso mesmo
que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado,
para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos
nossos afetos. Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante.
Não; é uma errata pensante, isso sim.
Cada estação da vida é uma edição que corrige a anterior,
e que será corrigida também, até a edição definitiva,
que o editor dá de graça aos vermes”.


(Memórias Póstumas de Brás Cubas, 
Machado de Assis, pg 63, Círculo do Livro)






Roberto Melo



"Vamos para o meu escritório", brinquei com meu amigo e ex-guerrilheiro, na época da ditadura militar, combatida por ele e seus companheiros. Eram guerrilheiros e não terroristas, como foram rotulados pelos militares e assim ficaram conhecidos.

Meu "escritório" fica numa praça com frondosas árvores, perto de minha casa. Exatamente em um banco de cimento, sob a sombra da copa de um dos vegetais lenhosos, que compõem e refrescam o local. Depois que meu amigo concordou, fomos para lá.

Sentados no banco da praça, conversávamos sobre política. Principalmente sobre  a falta de opção em relação a nomes de pessoas realmente preocupadas em servir à causa pública.  E, claro, sobre os nossos políticos que se transformaram em bandidos. Com honrosas exceções.

Papo vai, papo vem. De repente, desperta  a nosssa atenção a chegada de um senhor, de uns 80 a 90 anos de idade, acompanhado de um garoto de uns 9 anos, que mais tarde soubemos que era o seu neto. Enquanto o neto brincava, o avô o acompanhava.

Era um homem de quase dois metros de altura e de porte físico atlético, apesar da idade. Não era para menos. Tratava-se um general do Exército, hoje aposentado e que mora no bairro  onde moro. Sabia que ele era general e contei para o meu amigo guerrilheiro. Ele apenas  o olhou de soslaio e com desprezo.

Papo vem, papo vai. Numa ironia do destino, acontece o inesperado. A passar perto de nós, o general, que seguia seu neto, tropeçou numa saliência do cimento quebrado, comum  nas mal cuidadas praças da  cidade. Caiu de bruços para o chão, como uma árvore cortada por uma serra elétrica.

O rosto do general ficou em cima dos pés de meu amigo guerrilheiro. Quase entrei em pânico. E com motivo. Olha a situação: um general, que certamente comandou seções de tortura, estatelado no chão, sob os pés de um guerrilheiro, que foi impiedosamente torturado pelos seus companheiros de farda. Não devia de ter contado que era um general, pensei.

Qual seria a reação do meu amigo? Lembraria das desumanas torturas que sofreu, quando esteve preso; do sofrimento imposto à sua família, quando os militares divulgaram sua morte; ou dos 45 dias em que ficou preso no Sul do País, numa sala sem vaso sanitário  e sem água para tomar banho. Seria  a hora de dar o troco?

Lentamente o general começou a se levantar. Tinha o costume de olhar as pessoas de cima para baixo, principalmente quando torturava jovens de 18, 19 e 20 anos de idade, que lutavam pela liberdade no país. Agora,  olhava de baixo para cima para um ex-guerrilheiro, mesmo sem saber quem era aquele homem, cujo pés serviram para  amortecer o seu rosto na queda que sofrera.

Eu só observando a situação, ainda apreensivo. 

Foi quando o meu amigo guerrilheiro levantou-se do banco de cimento do meu "escritório" e, olhando de cima para baixo para  o general, estendeu-lhe a mão para levantá-lo do chão, numa atitude digna e nobre. E todos viveram felizes para sempre.