terça-feira, 19 de junho de 2018

PERDAS E DANOS II




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Seu biscoito de goma era único no amor e no sabor  

 




O dia em que vi 

minha mãe nascer (*)


Guto Wanderley





Eu vou encontrar a minha mãe, em seu apartamento, junto com as suas plantas, suas histórias e seu prazer em nos receber com biscoitos de goma e comidas, sempre com uma surpresa.

Era uma casa com quatro, cinco tipos de doces caseiros sempre prontos, guardados na geladeira, em compoteiras, carregando uns casos de amigos e de suas famílias, que percorriam hoje as terras do mundo.

Mãe abre a porta:

“Meu filho, você não pode deixar de aparecer, você sumiu, seu pai está velhinho, o coração dele é uma casca de nada. Venha mais, ele morrerá a qualquer hora”.

Mãe estende uma toalha na mesa e pai está debaixo do velho relógio de corda, que eu já vi em outras paredes, na casa da fazenda, em Pavão, depois do rio Mucuri, que atravessávamos de balsa na cheia, com os homens amarrando cordas nas árvores, para garantir que não seríamos arrastados pelas águas furiosas e caudalosas do rio, agora, na cheia, com mais de cinquenta metros de largura (setenta, dizia pai).

Mãe sorri. Traz o bule de café, com um prato debaixo, traz o biscoito e diz que ganhou de uma amiga de Joaíma, sua terra, no Vale do Jequitinhonha, alguns beijus.

Ela explica que aqueles beijus eram feitos com grande cuidado: “seu pai não acha gosto em nenhum neles”.

“São umas farinhas duras e sem sabor”.

Eu mordo um pedaço daquela peça branca, dobrada em três, num formato comprido e consistente. Sinto o sabor, um sabor doce distante, em algumas partes.

“Gostei, eu gosto”.

Olho para ela e nos tornamos cúmplices de um sabor, da nossa capacidade em perceber aquele sabor. Cumplicidade de paladar e de histórias, de olhares e emoções, de cheiros e visões.

Tínhamos nossos ritmos. Ela falava e sua conversa tinha a eloquência da alegria que poderia ter sido maior.

Minha mãe me traz uma forma, onde ela moldava as personalidades do seu mundo. Eu havia escapulido, mas ela tentara.

Sua luta comigo foi uma luta perdida. Jamais ela conseguiria me submeter a nada, nem ao seu amor, nem ao seu controle. Ela me conhecia muito bem e, por isso, o cerco a cada encontro tinha novidades. Ela jamais desistiria.

Olho, agora, no CTI, seu corpo branco, onde  pouso a minha mão preta.

Aperto as suas mãos. Beijo seu cabelo seco, com uma faixa de cor branca como se fosse uma fita em volta do seu cabelo vermelho. Ela jamais aceitaria ter cabelos brancos. Mãe, agora, para respirar, precisa de aparelhos.

Dói o meu coração.

A dor que me corta é muito violenta.

Não sairei daqui correndo, porque dentro de mim eu já me afastei bastante de uma segura racionalidade. Não quero entender a vida, não quero me submeter a nada.

Ali, não havia uma luta dela pela sobrevivência. Era uma luta dos aparelhos, da química, da sabedoria do homem.

“Sua mãe pode não estar querendo voltar. Um diagnóstico indica que ela está percebendo tudo, ouvindo, mas ela não consegue se comunicar ou não quer mais se comunicar com ninguém.”

“Por isso, trouxemos o psiquiatra, mas ele disse que dificilmente poderia fazer alguma coisa, esperaria mais um pouco. Ela precisa, primeiro, sair da dependência química, recuperar sua capacidade física.”

“Ela está prisioneira de si mesma. Sua mente pode muito bem estar registrando tudo. Ela pode querer comandar uma fala, mas no estágio atual do coma, ela não conseguirá nada.”

“Seria uma situação diversa do autista, o autista não consegue se comunicar. Ela não quer se comunicar ¾ uma hipótese. Caso queira, por enquanto, ela não pode se comunicar.”

“Sua mãe pode estar querendo morrer, porque não quer mais sentir dores, porque tem medo das dores que a afligiam tanto ou porque, por suas próprias razões, não quer viver.”




(*) Eu vi mamãe nascer. Título dado por Wander Piroli para o livro de Luiz Fernando Emediato