Seu biscoito de goma era único no amor e no sabor |
O
dia em que vi
minha mãe nascer (*)
Guto Wanderley
Eu
vou encontrar a minha mãe, em seu apartamento, junto com as suas plantas, suas
histórias e seu prazer em nos receber com biscoitos de goma e comidas, sempre
com uma surpresa.
Era
uma casa com quatro, cinco tipos de doces caseiros sempre prontos, guardados na
geladeira, em compoteiras, carregando uns casos de amigos e de suas famílias,
que percorriam hoje as terras do mundo.
Mãe
abre a porta:
“Meu
filho, você não pode deixar de aparecer, você sumiu, seu pai está velhinho, o
coração dele é uma casca de nada. Venha mais, ele morrerá a qualquer hora”.
Mãe
estende uma toalha na mesa e pai está debaixo do velho relógio de corda, que eu
já vi em outras paredes, na casa da fazenda, em Pavão, depois do rio Mucuri,
que atravessávamos de balsa na cheia, com os homens amarrando cordas nas
árvores, para garantir que não seríamos arrastados pelas águas furiosas e
caudalosas do rio, agora, na cheia, com mais de cinquenta metros de largura (setenta,
dizia pai).
Mãe
sorri. Traz o bule de café, com um prato debaixo, traz o biscoito e diz que
ganhou de uma amiga de Joaíma, sua terra, no Vale do Jequitinhonha, alguns
beijus.
Ela
explica que aqueles beijus eram feitos com grande cuidado: “seu pai não acha
gosto em nenhum neles”.
“São
umas farinhas duras e sem sabor”.
Eu
mordo um pedaço daquela peça branca, dobrada em três, num formato comprido e
consistente. Sinto o sabor, um sabor doce distante, em algumas partes.
“Gostei,
eu gosto”.
Olho
para ela e nos tornamos cúmplices de um sabor, da nossa capacidade em perceber
aquele sabor. Cumplicidade de paladar e de histórias, de olhares e emoções, de
cheiros e visões.
Tínhamos
nossos ritmos. Ela falava e sua conversa tinha a eloquência da alegria que
poderia ter sido maior.
Minha
mãe me traz uma forma, onde ela moldava as personalidades do seu mundo. Eu
havia escapulido, mas ela tentara.
Sua
luta comigo foi uma luta perdida. Jamais ela conseguiria me submeter a nada,
nem ao seu amor, nem ao seu controle. Ela me conhecia muito bem e, por isso, o
cerco a cada encontro tinha novidades. Ela jamais desistiria.
Olho,
agora, no CTI, seu corpo branco, onde
pouso a minha mão preta.
Aperto
as suas mãos. Beijo seu cabelo seco, com uma faixa de cor branca como se fosse
uma fita em volta do seu cabelo vermelho. Ela jamais aceitaria ter cabelos
brancos. Mãe, agora, para respirar, precisa de aparelhos.
Dói
o meu coração.
A
dor que me corta é muito violenta.
Não
sairei daqui correndo, porque dentro de mim eu já me afastei bastante de uma
segura racionalidade. Não quero entender a vida, não quero me submeter a nada.
Ali,
não havia uma luta dela pela sobrevivência. Era uma luta dos aparelhos, da
química, da sabedoria do homem.
“Sua
mãe pode não estar querendo voltar. Um diagnóstico indica que ela está
percebendo tudo, ouvindo, mas ela não consegue se comunicar ou não quer mais se
comunicar com ninguém.”
“Por
isso, trouxemos o psiquiatra, mas ele disse que dificilmente poderia fazer
alguma coisa, esperaria mais um pouco. Ela precisa, primeiro, sair da dependência
química, recuperar sua capacidade física.”
“Ela
está prisioneira de si mesma. Sua mente pode muito bem estar registrando tudo.
Ela pode querer comandar uma fala, mas no estágio atual do coma, ela não
conseguirá nada.”
“Seria
uma situação diversa do autista, o autista não consegue se comunicar. Ela não
quer se comunicar ¾ uma hipótese. Caso queira,
por enquanto, ela não pode se comunicar.”
“Sua
mãe pode estar querendo morrer, porque não quer mais sentir dores, porque tem
medo das dores que a afligiam tanto ou porque, por suas próprias razões, não
quer viver.”
(*)
Eu vi mamãe nascer. Título dado por Wander Piroli para o livro de Luiz Fernando
Emediato