Aos que amo
Tito Guimarães Filho
O amigo, ao meu lado, lamenta
que seus filhos façam campanha e anunciem voto em um candidato que defende a
tortura e a morte de seus oponentes.
Mais sério ainda: defende a ditadura militar que durou 21
anos no Brasil.
Ditadura combatida por jovens que perderam sua juventude e,
muitos, muitos que perderam suas vidas.
Meu amigo era um destes jovens. Perdeu sua juventude
condenado a 33 anos de prisão em um dos primeiros processos - crime: oposição
ao regime militar.
Ele lamenta. São
meus filhos, ele diz e quer entender a razão deles, respeitar a opinião
contrária - que ele respeita. Sempre respeitou.
Como defende, com unhas e dentes, o direito do "pensar
diferente".
Como defende até hoje.
Mas, ele lamenta.
Não contesta. Não discute.
Sua caixa de mensagens, seus e-mails, seu whatsApp, estão lotados
de mensagens agressivas, muitas delas desrespeitosas, não ao velho pai, nos
seus 80 anos, mas à inteligência - o que o deixa indignado, "meus filhos
não são ignorantes".
Sabe o que é a "ignorância política", a
"ignorância histórica".
Eles não viveram e não sabem, nem imaginam o que é uma
ditadura.
Como se os perdoasse - embora saiba que não se trata de
perdão.
Lembra das prisões clandestinas, operadas pelos militares.
No Rio, as áreas de torturas em torno do Aeroporto do Galeão
e seus diferentes níveis: a biblioteca, o túnel, locais de onde saiam, caso
sobrevivessem, restos de homens, farrapos de gente.
Lembrou do isolamento na cela da prisão, na Praça Marechal
Âncora, onde passou um ano e dois meses, submetido a interrogatórios e a um
regime de campo de concentração.
Dali saiu arrastado, sem forças nas pernas e mal conseguindo
se manter em pé - um jovem de 23 anos. Sequelas físicas a carregar por todo o
tempo a ser vivido.
Antes, sobrevivera à passagem pela prisão clandestina numa
sala do Palácio do Catete, depois transferido para o quartel da PE na rua Barão
de Mesquita - um dos círculos do inferno.
Não lamenta que
jamais tenha revelado, face a face, tantas histórias de resistência e de luta
para afastar um regime militar, uma ditadura, que prendia e matava, em que não
havia lei nem liberdade.
Se as cicatrizes da alma se revelam no olhar, basta para
contar todo o seu sofrimento.
Uma das primeiras liberdades conquistadas foi o direito ao
voto - na ilusão da democracia.
Esta conquista, abriu espaço para que pelo mesmo voto,
conquistado com muita luta, agora se transformasse em uma arma pela volta da
tortura, de assassinatos políticos e da ditadura que já lançou sua teia sobre os corações e mentes da
nossa população.
Ele lamenta, mas
disse ele, ali, ao meu lado, que mais uma vez sua disposição para a luta não
seria afetada pelo seu caminhar devagar e pelo pouco fôlego. Lutará como lutou,
em grande parte do seu tempo, na resistência à opressão e no resgate da
cidadania.
Principalmente, no respeito e na defesa dos que pensam
diferente.
Ele olha para mim, sabe que sou companheiro, me abraça e se
afasta, passo trôpego, lento, seguro e firme em sua determinação de respeitar
os seus filhos, o que eles pensam e o caminho que escolheram.
Ele sabe que não está só.
Sabe também que esta é a oportunidade única de dizer não à
ditadura.
Ditadura Nunca Mais.
Pelo voto.
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Uma das pessoas
assassinadas pelos militares foi Rubens
Paiva, eu o conheci e admirava. Leiam este relato:
A cusparada premonitória de Jair Bolsonaro
Por Chico
Paiva Avelino, neto de Rubens Paiva
Em 2014, a Câmara dos Deputados fez uma tocante
homenagem ao meu avô, Rubens Paiva: inauguraram um busto com a sua imagem em
função de sua incessante luta pela democracia – causa pela qual ele
literalmente deu a vida. Minha família foi em peso. Emocionadas, minha mãe e
minha tia fizeram discursos lindos e orgulhosos sobre a memória do pai. No meio
de um deles, fomos interrompidos por um pequeno grupo que veio se manifestar.
Era Jair Bolsonaro, junto com alguns amigos (talvez fossem os filhos, na época
eu não sabia quem eram), que se deu ao trabalho do sair de seu gabinete e vir
em nossa direção, gritando que “Rubens Paiva teve o que mereceu, comunista
desgraçado, vagabundo!”. Ao passar por nós, deu uma cusparada no busto. Uma
cusparada. Em uma homenagem a um colega deputado brutalmente assassinado.
Gostaria muito de poder conversar com o meu avô
nesse momento político pelo qual passamos. Teria muito a acrescentar: foi
eleito Deputado Federal por São Paulo em 1962, e cassado pelo AI-1 em 10 de
abril de 1964. Como democrata exemplar que era, sempre lutou contra o
autoritarismo e nunca encostou numa arma. Infelizmente essa oportunidade me foi
arrancada quando, em janeiro de 1971, ele foi levado de casa junto com minha
avó e minha tia, que na época tinha 15 anos, para os porões do DOI-Codi do Rio
de Janeiro, na Tijuca. Lá, foi torturado até morrer pelo aparelho de repressão
montado pelo regime militar, cuja filial paulista era comandada por ninguém
mais nem menos do que o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Na época, não havia ficado claro o motivo dos
militares levarem também a minha avó e minha tia. Hoje, conhecendo os métodos
praticados por Ustra, sabemos que era para trazê-las à sala de tortura e
pressionar o meu avô. Elas, em celas ao lado, separadas, ouviram seus gritos
antes que ele fosse morto.
O atestado de óbito só foi entregue à família 25
anos após o assassinato, em 1995. O corpo jamais foi entregue. Na Comissão
Nacional da Verdade, outros militares envolvidos no crime disseram que o corpo
foi enterrado e desenterrado duas vezes. Sobre o assunto, Bolsonaro debochou:
pendurou na entrada do seu gabinete em Brasília uma placa que dizia “quem
procura osso é cachorro”.
Hoje em dia,
Ustra é mais famoso não pelas atrocidades que cometeu, como torturar mães na
frente de suas crianças, colocar ratos e baratas vivas dentro da vagina das
mulheres, estupros, pau de arara, choques, entre outras; mas por ser o grande
ídolo, chamado de herói, pelo nosso provável novo presidente, Jair Bolsonaro –
que diz que seu livro de cabeceira é a história do coronel.
Em seu voto a favor do impeachment, Bolsonaro
prestou homenagem ao torturador da ex-presidente. No púlpito do Congresso
Nacional, com o país inteiro assistindo, ele decidiu lembrar de um ser
asqueroso que era o contrário de tudo que a democracia representa, e que havia
covardemente torturado a mulher que ele ali teve o sadismo de torturar
psicologicamente mais uma vez.
Desde que me dou por gente, essa cicatriz já havia
sido fechada na família. Não era um assunto tabu. E sempre fui ensinado que
essa não era uma luta pessoal, que não devíamos denunciar e brigar contra essas
práticas como vingança familiar, mas para evitar que isso ocorresse com outros.
Não era uma briga nossa, mas de todo o país. Minha mãe foi a muitos eventos e
deu muitas entrevistas naquele ano por ocasião dos 50 anos do golpe de 1964. Em
todas elas fazia questão de lembrar do caso Amarildo, pedreiro desaparecido e
assassinado pela PM do Rio de Janeiro em 2013 – como aquela prática seguia
mesmo na nossa frágil democracia, e como a dor da família de Amarildo era a
mesma pela qual a nossa havia passado.
Estamos às
vésperas de uma eleição na qual Bolsonaro não só reafirmou sua admiração por
Brilhante Ustra, mas a todo aparato do regime militar. Meu avô lutou contra
discursos como esse e por isso foi covardemente preso, torturado e assassinado.
Deu a vida pela democracia. Hoje, fica evidente que aquela cusparada não era
algo meramente simbólico, mas um prenúncio daquilo que ele pretende fazer como
Presidente, e que vem incansavelmente repetindo durante a campanha: prender e
exilar seus adversários políticos, eliminar militâncias e desaparecer com as
minorias.
Ainda dá tempo de evitar isso, e o poder está em nossas mãos, com nosso
voto. Eu nunca imaginei que, em 2018, essas informações
não bastassem para que as pessoas pudessem ter repulsa a um político que
defende isso. Espero que ajude alguém a refletir, a tornar mais palpável quem é
Jair Bolsonaro. Em 1964, foi Rubens Paiva e milhares de outros. Em 2018, pode
ser eu, você, as pessoas que amamos
https://nocaute.blog.br/2018/10/24/a-cusparada-premonitoria-de-jair-bolsonaro/