quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

TUDO VIRA FILME



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Todas as corridas são possíveis




Na memória do menino


Astolfo Soares Dutra



Busco entender o meu pai. Busco com muita angústia entendê-lo e para mim sempre foi difícil. Eu não consigo. Eu não conheço o meu pai. Quando penso na nossa convivência, vou lá na infância e capto-o no seu gabinete dentário, na avenida Getúlio Vargas, a principal avenida da cidade.

Em meio àquela parafernália de equipamentos, sua cadeira de dentista, seu equipamento de raio-x e a pequena e impressionante salinha onde trabalhava com próteses. O cheiro do material químico e a própria prótese atraiam-me a imaginação. Via o que, em meio a toda aquela quantidade de massas, moldes, misturas, saia dali.

Era o meu encanto e mais tarde a história da palavra protético seduziu-me mais ainda. A palavra e o deus, Proteu, todas as possibilidades e mistérios das mudanças e das mutações.

Nunca ser o mesmo e o que foi ser a perfeição – a prótese.

Sempre ouvia as pessoas conversarem sobre as dentaduras feitas pelo meu pai. Elogios ao seu trabalho profissional. Deixavam-me orgulhoso. Suas dentaduras eram perfeitas e duradouras.

No seu mundo, no gabinete dentário, ele era perfeito e competente segundo o povo da cidade.

Muitos exaltavam o seu pioneirismo, contavam a longa e complicada história da vinda do aparelho de raio-x, adquirido na década de 1930 da Alemanha, bem antes da guerra.

A Colônia Alemã de Teófilo Otoni divulgava os feitos industriais e tecnológicos. O equipamento ocupava grande parte da sala. Era a prova real da competência e do pioneirismo do povo alemão, em franca recuperação depois da 1ª. Grande Guerra.

Depois de ter abandonado a sua profissão para se dedicar por algumas décadas à política, ele volta ao consultório.

Uma volta que o fez também retornar aos bancos universitários para atualizar e conhecer os avanços tecnológicos da odontologia.

Outra vez, ali estava ele trabalhando com a mesma desenvoltura e afinco. Era a década de 1960, a política mudara com a chegada dos militares ao poder. 

Antes, dedicou-se como fazendeiro e líder ruralista.

O garimpo o atraiu, mas soube se afastar das catas na hora certa. 

Ora o encontrava, com mais coleções de lances de pioneirismo.

À frente da liderança dos fazendeiros criou a associação rural, cooperativas. Trouxe para a cidade especialistas formados nas universidades agrárias – lembro-me dos primeiros agrônomos e veterinários.

Sua grande obra com o amigo Meusinho Gazinelli: o parque de exposições da Pampulhinha, em Teófilo Otoni.

Em Pavão, onde ficava a nossa fazenda, ele implantou, mais uma vez pioneiro, a luz elétrica com um gerador a querosene.

Na fazenda, construiu seu primeiro laticínio da região. Em Teófilo Otoni, participou da criação do Frimusa, Frigorífico do Mucuri SA. 

Espreitando-o, observava-o nas discussões políticas – e procurava entender as intervenções preocupadas da minha mãe. Por que a política era tão complexa para as pessoas? O que a política tinha de diferente? Era a década de 50 e eu procurava o meu pai. 

Minha mãe também.

“A política é madrasta. É do céu ao inferno, sem purgatório”.

Não entendia a oposição à política e registrava a resistência das famílias.

Hoje, quando me pergunto sobre a paixão daquelas viagens para a fazenda, quando viajávamos de jeep, esqueço do meu tormento, do meu grande sofrimento e desespero.

Viagens sofridas, para mim. Muitas vezes não acreditava que chegaria ao seu fim vivo, tão mal passava. Vomitava tudo. Todos os cheiros eram insuportáveis, principalmente os cheiros do jeep, da gasolina, do óleo, o cheiro da poeira, das roupas.

Todos os cheiros provocavam o mal estar e, mesmo assim, era uma grande aventura.

Um passeio para meus pais e minhas irmãs. Uma grande batalha para mim. Uma batalha para superar-me, uma luta e só resistência. Uma aventura no estômago e na memória dos cheiros. Até mesmo o cheiro do vômito provocava-me vômito. Ficava feliz quando passava a vomitar bílis. Agora não tinha mais nada para vomitar, pensava. 

Engano, o estado de angústia e de sofrimento continuava. Buscava na imaginação uma saída para tão poderoso mal estar, buscava na paisagem. De repente, a paisagem provocava o vômito. Deveria olhar sempre para a frente. Era a opinião de todos que não vomitavam:  Nunca, jamais, olhar para os lados ou para trás.

- Olhe sempre para frente, menino.

Verdadeiras empreitadas, viagens de 80 quilômetros eram feitas, em condições normais, em torno de 10/12 horas. Na época de chuva duravam três dias. A travessia de rios e riachos eram lutas travadas com cordas, amarrações e balsas.

Meu pai alegre e animado, em conversas demoradas, curtia cada minuto e não se incomodava com a demora. Nem demonstrava cansaço.

Era o doutor Tito. 

Alegre, observava como as pessoas gostavam de conversar e ouvir o doutor Tito.

Mais tarde, ao ser chamado a atenção por Bá, um amigo de infância, sobre o tratamento que eu dava ao meu pai, o que mais me impressionou na sua argumentação foi a segurança e o tom da afirmativa categórica com que ele disse:

-         Seu pai é um homem bom.

Um homem bom.

Eu não o olhava por aí. Ser bom, na minha cabeça, estaria na mesma ordem do que ser honesto, ser verdadeiro. Ninguém deveria procurar ser bom. Ser bom, honesto, verdadeiro deveria ser o natural da pessoa.

Ele era um homem bom, sim. Isto deveria ser o natural seu, atributo inerente ao ser e ao viver, eu jamais me questionei se deveria ou não ser bom, ser uma pessoa boa, solidária, amiga. Para mim, todos os homens são bons,

Bá era um homem bom. Seu pai, um homem que eu admirava e que vivia viajando no trabalho para sustentar a família, para mim também era um homem bom.

Quem era mesmo o meu pai?

Descobria assim uma e outra faceta dele e o menino sempre de atalaia observando, provocando. A minha grande aventura foi quando nós dois fomos sozinhos para a fazenda e tive o meu primeiro choque: a galinha.

Chegáramos esfomeados e vínhamos falando (todos eles falavam)  da galinha preparada pela dona Jandira, a cozinheira. O tempero de dona Jandira pontuava os assuntos.

Naquele dia, a viagem foi rápida. Chegamos à tarde, dia de sol, céu azul. Jandira trouxe a galinha. Comi a galinha quase toda.

Quando pai chegou para jantar foi aquela bronca, uma senhora bronca. Dona Jandira ria e serviu uma galinhada para mais dez homens.

- Fiz maldade com o menino.

Dona Jandira explicava.A minha fome não fora saciada. Não acabaria

- Veja a cara dele. Fome para devorar um boi.

Dona Jandira ria e repetia... um boi.

Este episódio marcou-me, pois nossa mesa sempre fora farta. Principalmente na fazenda. Jamais se discutira por causa de comida e sempre comêramos à vontade e com fartura... ainda mais galinha.

Ainda nesta fase, outra surpresa com o pai brincalhão e debochado.

Procurava informações sobre cinema e uma das correspondências sobre um curso de cinema acabou entregue pelo correio na sede da associação rural e caiu na mão do presidente da Associação Rural de Teófilo Otoni.

Pai estendeu-me a correspondência e debochou.

“Quer fazer cinema?”  

Fiquei triste. Será que ele não gostava de cinema? Não conseguia entender isto e não acreditava que fosse possível.

Na paixão pelo cinema, acompanhava a programação das três casas da cidade, o Cine Metrópole, o Cine Vitória e o Cine Poeira.

Para assistir às sessões do Poeira contava com a proteção e a cumplicidade de Durvalina, a ajudante de cozinha.

Ela também sabia da minha fome.

- Conte a história.

Durvalina, escondida da minha mãe, me deixava no cinema. Esperava do lado de fora. Depois, gostava de ouvir contar os filmes. E em seus olhos, ela assistia mais uma sessão de cinema ouvindo o menino, um apaixonado para uma apaixonada.