Diálogos com o Diabo
&
A IGREJA DO DIABO
WW Bley e Machado de Assis
Primeiro dia
Local: deserto.
Deserto é um deserto. É areia. Pura areia. É sol. Areia e
sol. Areia e vento. Areia e calor e suor. Depois, areia, frio, vento e estrelas.
Muitas estrelas. E elas caem sobre a areia.
As fitas
Primeira gravação.
Diabo – Muita areia.
Cristo – Muita areia.
D – Tudo bem com você?
C – Tudo bem e você? Tranquilo?
D – Nos tranks. Nós dois vamos passar 40 dias e quarenta
noites aqui nesta porra de deserto e temos que tomar algumas providências
práticas.
C – Onde tem água por perto?
D – Cara, tu és filho de deus e tem mais, és um mistério. Esquecestes
da santíssima trindade, pai, filho e espírito santo? Sejamos práticos. Nem eu e
nem você bebemos e nem comemos porra nenhuma. Somos infensos a estas demandas,
nada de sede, nada de fome. Somos seres de palavra, de papo, de conversa e
nosso negócio aqui é só conversa, conversa, palavra, palavra e silêncios.
Administrando o silêncio tá bom demais.
C – Tens razão.
D – Razão?
Nota 1: A chuva. Choveu no deserto, fenômeno pouco comum,
mas no primeiro dia do encontro de deus e do diabo no deserto choveu e choveu
muito. Os dois interromperam várias vezes a conversa para observar aquela chuva
sem mais nem pra quê, como diriam os jagunços do Rosa, era uma chuva sem
explicação. Também, em nenhum momento, incomodou nem a deus e nem ao diabo.
A IGREJA DO DIABO
Machado de Assis
De uma ideia mirífica
O desafio
— Só agora concluí uma observação, começada desde alguns
séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a
rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu
proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja;
atrás delas virão as de seda pura...
— Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime.
Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos,
na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e
mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí
a franja de algodão?
— Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
— Negas esta morte?
— Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade;
deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...
— Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai, vai, funda a tua
igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os
homens... Mas, vai! vai!
Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas
por outras, que eram as naturais e legítimas.
A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou
não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e
a filha uma esgalgada.
A ira tinha a
melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a
Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu..."
O mesmo disse da gula,
que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos de Hissope;
virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das
suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal.
Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou
histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que
era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia,
do que os maus bocados, ou a saliva do jejum?
Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do
Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira,
pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo.
Quanto à inveja,
pregou friamente que era a virtude principal, origem de propriedades infinitas;
virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.
As turbas corriam atrás dele entusiasmadas.
Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele
dava da fraude.
Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a
força; e concluía: Muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia
que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos,
outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada.
A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou
a confessar que era um monumento de lógica.
A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito
superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu
sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas
que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a
tua fé, coisas que são mais do que
tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo?
Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório.
Pois não há mulheres que vendem os cabelos? Não pode um
homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico?
E o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao
caráter, à porção moral do homem?
Demonstrado assim o princípio, o Diabo não se demorou em
expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que,
à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito
tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia,
isto é, merecer duplicadamente.
E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está
claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e
cordialidade.
Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou
pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma
expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum
salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração.
Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como
elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a
única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela
consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação,
era este o sentimento aplicado e não aquele.
Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar
por toda a solidariedade humana.
Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova
instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e
negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em
alguns casos, ódio ou desprezo.
Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era
errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado
Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regime:
"Leve a breca o
próximo! Não há próximo!"
A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era
quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha
a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si
mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por
metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo:
— Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações
comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o
que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.
A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão,
uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se
na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a
instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região
do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que
não a amasse.
O Diabo alçou brados de triunfo.
Franjas e franjas
A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja
capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja,
deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova.
Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a
instituição.
A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma
região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça
que não a amasse.
O Diabo alçou brados de triunfo.
Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos
dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as
praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às
ocultas.
Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou
quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros
davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do
erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra
vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer
que estavam embaçando os outros.
A descoberta assombrou o Diabo.
Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que
lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista
do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das
drogas, socorria os filhos das vítimas.
No Cairo, achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a
cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em
rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um
drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um
muezim, que rezou por ele a Alá.
O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas
extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo.
Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de
cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa
na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca etc.
Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não
confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como
ainda dava gratificações aos criados.
Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas
confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse
nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se.
O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia que
duvidar; o caso era verdadeiro
Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de
refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao
passado.
Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a
causa secreta de tão singular fenômeno.
Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu,
não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos
nele, e disse-lhe:
— Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm
agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres
tu? É a eterna contradição humana.
Texto na íntegra