quarta-feira, 6 de novembro de 2019

A ARTE DE FINGIR



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São Jerônimo no deserto - Leonardo da Vinci




O homem inacabado


Lourenço de Agripa





A metade que parecia dele ficou

a esperar a outra,

que se forjava na cidade dividida.

Não conseguia juntá-las...”
 
Cadernos de João, de Aníbal Machado




 1.

Eu conheci um homem inacabado. Era um sujeito altivo. Ele não buscava nem mesmo  a sua outra metade, que sabia existir. Sabia. Isto já seria demais. Buscava-se quase na totalidade do mínimo ser. Qualquer traço já seria alguma coisa, um ponto de partida. Um traço de caráter. Uma renúncia. Uma glória. Nada. Não era nem mesmo metade e nem mesmo inacabado. Era apenas o que era. Nada mais. Absurdo seria dizer que este homem não conseguia ser nem mesmo um homem começado.

Como não é esta a linguagem que falo agora, digamos que este homem que eu conheci muito de perto tenha sido um projeto, um homem projeto, pensado e que quase começou. Construção imaginada, projeto de arquiteto, diante do papel branco, a desenhar. Cada pedaço encontrado pouco preenchia. Assim, tudo era incompleto. Inacabado. Insustentavelmente, inapelavelmente, inacabado porque não completamente começado, nem mesmo começado.

Sua tragédia ou seu talento estava em ter tomado conhecimento desta impossibilidade de completar-se, da sua impossibilidade até mesmo de começar.

Aceitou o inacabado e aventurou-se em supor-se completo, na possibilidade de visualizar-se como metade em busca de uma outra metade. Quis que a metade existente tornar-se conhecida de si.

Incrível aventura. Conhecer-se a si mesmo... pela metade ou pelo menos a metade. Examinou todos os homens completos possíveis, como examinou modelos plutarquianos e não plutarquianos além dos modernos modelos virtuais.

Mais do que uma escalada a mil Everest - fato possível - era chegar ao cume da metade de si mesmo - fato impossível - mas imaginável, potencializável, não por ele, mas por um homem, ou por todos, algum dia.


“Uma obra consumada não seria necessariamente
 acabada e uma obra acabada
não seria necessariamente consumada”.

Baudelaire citado por Malraux,
citado por Merleau-Ponty

“A cultura jamais nos dá, pois, significações absolutamente transparentes, a gênese do sentido jamais se conclui”.

“Ora, se expulsarmos do espírito a ideia de um texto original, do qual a linguagem seria a tradução ou a versão cifrada, veremos que a ideia de uma expressão completa é um contra-senso, que toda a linguagem é  indireta ou alusiva e, se quisermos, silêncio”

Maurice Merleau-Ponty, in A linguagem indireta e as vozes do silêncio, Editora Abril


“Como sempre em arte, fingir para tornar verdadeiro”.

Sartre citado por Merleau-Ponty

“O poeta é um sofredor,
finge que é dor, a dor
que deveras sente”

Fernando Pessoa



2.

A água sobe no rio Solimões e entra nas cidades à margem, as casas são invadidas e os homens sobrevivem espremidos entre o piso de madeira de suas casas de palafita e o teto. Eles foram subindo os assoalhos à medida que a água subia. Agora estavam a menos de um metro do teto. Não se preparavam para depois do teto. Não se afastavam de suas “coisas”, da casa, dos utensílios domésticos, das roupas, dos mantimentos, do dia a dia em cada peça conquistada. Os homens não se afastam de si, da parte de si que está nos objetos mesmo que com isto venham a perder a vida.


3.

O silêncio de pai    Depois da segunda operação e de ficar com uma abertura no intestino, pai não mais fala. A voz não sai. Explicação: teria sido em virtude do processo de entubamento do oxigênio.

Não consigo entender seu silêncio. Parado na sua frente, olhando o seu corpo magro, quase pele e osso, braços finos, ombros à mostra, rosto seco, vejo que pai se cala para tudo. Ele optou por calar, falar para ele tornou-se impossível. Desnecessário. Agora seus diálogos estão nos olhos. Se quisermos ouvi-lo devemos aprender a olhar.

Dias depois, pai levantou falando normalmente. Recuperara sua voz. Naquele dia, tornou-se crítico e ácido com Mirtes, “Aqui, eu mando”, percorrendo um caminho em que seu rosto revelava seu inconformismo. Ele não sustentou durante muito tempo esta sua voz normal. Não durou nada a sua vontade de manifestar-se. Calou mais uma  vez. Já era uma voz cansada, já era um raciocínio quebrado por esquecimento, mais esquecia do que lembrava, já era uma voz diante de uma porção de vozes de jovens e de pessoas maduras, que se expressavam, com talento, sem esquecimentos e com vida.

Ele calou-se e ele pouco ouvia. Seus olhos continuaram loquazes.



4.

O homem adia a vida

Viverei amanhã

Amanhã terei uma casa

Amanhã viverei

Adiando a vida

Agora é lutar,

ralar, se ralar


Vou viver no final de semana

Aí, olho o sol e o céu

Depois é trabalho

ou não trabalhar

É não viver

Vou viver no final do mês

aí vou ao supermercado

Vou adiando a vida

Minha mulher está aí

amanhã vou amá-la

Vou adiando a vida

sem entender

o que é a vida


5.

Veja este homem que caminha

apressado, passos curtos, sua pasta

debaixo do braço

Este é ele

o homem arquivo

Chama-se Carlos

Carlos Augusto

Ele tem todos os documentos

É um homem arquivo

Veja como ele caminha

É caminhar de quem recolhe

todos os papéis, todos os dados

para a sua grande pesquisa

é pesquisar, arquivar, sonhar,

enquanto isto, o lixeiro escreve

suas histórias e ganha prêmios,

transforma-se, torna-se em talento

enquanto isto, a mulher desespera-se

e à noite deita-se ao lado do homem metal

Carlos ergue-se sobre todos

e arquiva tempos e nomes

datas e sonhos,

em todos os tempos,

o homem arquivo

arquivou a vida


As questões de um homem de oitenta


Quando eu crescer, eu serei... serei a flecha veloz, o touro bravo ou sentado, eu serei médico, um homem das almas e dos sonhos, o intérprete da loucura e de todas as alucinações.

Quando eu voltar de Kiev, traçarei outros caminhos, nada, nada me amarrará. O que me amarra? Me amarra a placidez de Hemengarda, a viuvez de Estergilda, a voz rouca de Lenora, tudo me segura nesta cidade, o rio destruído e ainda detém a bela paisagem, correndo entre pedras em seus mil quilômetros de gritos indeléveis. O que me amarra é o sonho de Petrarca em busca de sua Beatriz. Não posso me prender em séculos que não me dizem mais nada. O que faço nos trezentos se nem em inferno posso sonhar? Quando eu crescer...?

I.

“Absurdo seria dizer que este homem nem mesmo era um homem começado”.

Homem individuado é um ser único, total, completo. Individuado em que? Único em que? Completo em que? É indivíduo enquanto é um ser especial, diferente, não repetição, não referência de um, embora passível de referência para outro.

Ser indivíduo, ser especial, significa que é e esgota-se como ser. Assim, não haveria possibilidade de não ser começado. Ao ser já é. Impossível de ser  projeto? De querer ser algo, supostamente, criado a partir da vontade, de dados, de conceitos, de hipóteses estudadas, descartadas e aproveitadas, de possibilidades, da razão. Não há querer no ser, se o ser é, se ser já é, se se totaliza-se apenas no ser, na simples essência de ser.

Se um homem existe, ele o é integralmente homem e o seu destino, suas possibilidades, suas aventuras e suas totalidades.

O homem ao ser, acaba-se; ao existir já é. Se não é individuado está aberto a todas as individuações e/ou coletivizações possíveis.

Ao ser seria dada todas as possibilidades existentes na concretização do ser homem, ao homem seria dada todas as possibilidades de ser um homem feliz em meio a todas as condições adversas e a todo um destino adverso. Não importa, há a possibilidade e o ser feliz ou o ser infeliz está em aberto. Vale a vontade.   









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