São Jerônimo no deserto - Leonardo da Vinci |
O homem inacabado
Lourenço de Agripa
“A metade que
parecia dele ficou
a esperar a outra,
que se forjava na cidade dividida.
Não conseguia juntá-las...”
Cadernos de João, de Aníbal Machado
Eu
conheci um homem inacabado. Era um sujeito altivo. Ele não buscava nem
mesmo a sua outra metade, que sabia
existir. Sabia. Isto já seria demais. Buscava-se quase na totalidade do mínimo
ser. Qualquer traço já seria alguma coisa, um ponto de partida. Um traço de
caráter. Uma renúncia. Uma glória. Nada. Não era nem mesmo metade e nem mesmo
inacabado. Era apenas o que era. Nada mais. Absurdo seria dizer que este homem
não conseguia ser nem mesmo um homem começado.
Como
não é esta a linguagem que falo agora, digamos que este homem que eu conheci
muito de perto tenha sido um projeto, um homem projeto, pensado e que quase
começou. Construção imaginada, projeto de arquiteto, diante do papel branco, a
desenhar. Cada pedaço encontrado pouco preenchia. Assim, tudo era incompleto.
Inacabado. Insustentavelmente, inapelavelmente, inacabado porque não
completamente começado, nem mesmo começado.
Sua
tragédia ou seu talento estava em ter tomado conhecimento desta impossibilidade
de completar-se, da sua impossibilidade até mesmo de começar.
Aceitou
o inacabado e aventurou-se em supor-se completo, na possibilidade de
visualizar-se como metade em busca de uma outra metade. Quis que a metade
existente tornar-se conhecida de si.
Incrível
aventura. Conhecer-se a si mesmo... pela metade ou pelo menos a metade.
Examinou todos os homens completos possíveis, como examinou modelos
plutarquianos e não plutarquianos além dos modernos modelos virtuais.
Mais
do que uma escalada a mil Everest - fato possível - era chegar ao cume da
metade de si mesmo - fato impossível - mas imaginável, potencializável, não por
ele, mas por um homem, ou por todos, algum dia.
“Uma obra consumada não seria
necessariamente
acabada e uma obra acabada
não seria necessariamente consumada”.
Baudelaire citado por Malraux,
citado por Merleau-Ponty
“A
cultura jamais nos dá, pois, significações absolutamente transparentes, a
gênese do sentido jamais se conclui”.
“Ora,
se expulsarmos do espírito a ideia de um texto
original, do qual a linguagem seria a tradução ou a versão cifrada, veremos
que a ideia de uma expressão completa
é um contra-senso, que toda a linguagem é
indireta ou alusiva e, se quisermos, silêncio”
Maurice Merleau-Ponty, in A linguagem indireta e as vozes do silêncio,
Editora Abril
“Como
sempre em arte, fingir para tornar verdadeiro”.
Sartre citado por Merleau-Ponty
“O
poeta é um sofredor,
finge
que é dor, a dor
que
deveras sente”
Fernando Pessoa
2.
A
água sobe no rio Solimões e entra nas cidades à margem, as casas são invadidas
e os homens sobrevivem espremidos entre o piso de madeira de suas casas de
palafita e o teto. Eles foram subindo os assoalhos à medida que a água subia.
Agora estavam a menos de um metro do teto. Não se preparavam para depois do
teto. Não se afastavam de suas “coisas”, da casa, dos utensílios domésticos, das
roupas, dos mantimentos, do dia a dia em cada peça conquistada. Os homens não
se afastam de si, da parte de si que está nos objetos mesmo que com isto venham
a perder a vida.
3.
O silêncio de pai Depois da segunda
operação e de ficar com uma abertura no intestino, pai não mais fala. A voz não
sai. Explicação: teria sido em virtude do processo de entubamento do oxigênio.
Não
consigo entender seu silêncio. Parado na sua frente, olhando o seu corpo magro,
quase pele e osso, braços finos, ombros à mostra, rosto seco, vejo que pai se
cala para tudo. Ele optou por calar, falar para ele tornou-se impossível. Desnecessário.
Agora seus diálogos estão nos olhos. Se quisermos ouvi-lo devemos aprender a olhar.
Dias
depois, pai levantou falando normalmente. Recuperara sua voz. Naquele dia,
tornou-se crítico e ácido com Mirtes, “Aqui,
eu mando”, percorrendo um caminho em que seu rosto revelava seu
inconformismo. Ele não sustentou durante muito tempo esta sua voz normal. Não
durou nada a sua vontade de manifestar-se. Calou mais uma vez. Já era uma voz cansada, já era um
raciocínio quebrado por esquecimento, mais esquecia do que lembrava, já era uma
voz diante de uma porção de vozes de jovens e de pessoas maduras, que se expressavam,
com talento, sem esquecimentos e com vida.
Ele
calou-se e ele pouco ouvia. Seus olhos continuaram loquazes.
4.
O
homem adia a vida
Viverei
amanhã
Amanhã
terei uma casa
Amanhã
viverei
Adiando
a vida
Agora
é lutar,
ralar,
se ralar
Vou
viver no final de semana
Aí,
olho o sol e o céu
Depois
é trabalho
ou
não trabalhar
É
não viver
Vou
viver no final do mês
aí
vou ao supermercado
Vou
adiando a vida
Minha
mulher está aí
amanhã
vou amá-la
Vou
adiando a vida
sem
entender
o
que é a vida
5.
Veja
este homem que caminha
apressado,
passos curtos, sua pasta
debaixo
do braço
Este
é ele
o
homem arquivo
Chama-se
Carlos
Carlos
Augusto
Ele
tem todos os documentos
É
um homem arquivo
Veja
como ele caminha
É
caminhar de quem recolhe
todos
os papéis, todos os dados
para
a sua grande pesquisa
é
pesquisar, arquivar, sonhar,
enquanto
isto, o lixeiro escreve
suas
histórias e ganha prêmios,
transforma-se,
torna-se em talento
enquanto
isto, a mulher desespera-se
e
à noite deita-se ao lado do homem metal
Carlos
ergue-se sobre todos
e
arquiva tempos e nomes
datas
e sonhos,
em
todos os tempos,
o
homem arquivo
arquivou
a vida
As questões de
um homem de oitenta
Quando
eu crescer, eu serei... serei a flecha veloz, o touro bravo ou sentado, eu
serei médico, um homem das almas e dos sonhos, o intérprete da loucura e de
todas as alucinações.
Quando
eu voltar de Kiev, traçarei outros caminhos, nada, nada me amarrará. O que me
amarra? Me amarra a placidez de Hemengarda, a viuvez de Estergilda, a voz rouca
de Lenora, tudo me segura nesta cidade, o rio destruído e ainda detém a bela
paisagem, correndo entre pedras em seus mil quilômetros de gritos indeléveis. O
que me amarra é o sonho de Petrarca em busca de sua Beatriz. Não posso me
prender em séculos que não me dizem mais nada. O que faço nos trezentos se nem
em inferno posso sonhar? Quando eu crescer...?
I.
“Absurdo seria dizer que este homem nem
mesmo era um homem começado”.
Homem
individuado é um ser único, total, completo. Individuado em que? Único em que?
Completo em que? É indivíduo enquanto é um ser especial, diferente, não
repetição, não referência de um, embora passível de referência para outro.
Ser
indivíduo, ser especial, significa que é e esgota-se como ser. Assim, não
haveria possibilidade de não ser começado. Ao ser já é. Impossível de ser projeto? De querer ser algo, supostamente,
criado a partir da vontade, de dados, de conceitos, de hipóteses estudadas,
descartadas e aproveitadas, de possibilidades, da razão. Não há querer no ser,
se o ser é, se ser já é, se se totaliza-se apenas no ser, na simples essência de
ser.
Se
um homem existe, ele o é integralmente homem e o seu destino, suas
possibilidades, suas aventuras e suas totalidades.
O
homem ao ser, acaba-se; ao existir já é. Se não é individuado está aberto a
todas as individuações e/ou coletivizações possíveis.
Ao
ser seria dada todas as possibilidades existentes na concretização do ser
homem, ao homem seria dada todas as possibilidades de ser um homem feliz em
meio a todas as condições adversas e a todo um destino adverso. Não importa, há
a possibilidade e o ser feliz ou o ser infeliz está em aberto. Vale a
vontade.
https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,o-que-as-obras-inacabadas-dizem-sobre-leonardo-da-vinci,70002924703