O lucro
da sobrevivência
da sobrevivência
Emílio Andrés
- O que vier, agora, é lucro!
Esta frase, ele a repetiu tanto que, mais tarde, ao relembrar
aqueles momentos, depois que despertou no chão cinzento da cela, acreditou que
ela era a sua mantra, sua memória, sua oração, sua vida resgatada em meio a
corpos que vira sairem carregados, empapados de sangue, corpos no chão do
pátio, corpos no corredor, em que os torturados encapuzados tropeçavam.
- O que vier, agora, é lucro!
Como ele podia concordar com aquela frase? Lucro, um ganho a mais,
mais valia. O que vivera, então, tivera preço justo?
Agora, ele tinha direito a jogar tudo para o alto, sem temer a lei
da gravidade. Nada era mais leve do que o sobreviver, nada mais aéreo do que a
vida conquistada, além da resistência. Todo o corpo era um imenso hematoma,
partes em carne viva, queimaduras entre as pernas, dores dentro e fora do
corpo.
Agora era agora e ele estava vivo, mas não precisava debochar da
sorte. Lucro? A sobrevivência como lucro. Que visão capitalista! Linguagem
imperdoável, mas era por onde. Descobrira mais tarde, ganhara forças para
encarar aquela oportunidade de sobreviver.
Talvez, não passasse da próxima etapa da tortura. Ele vencera, resistira
e sobrevivera. Isto é, sobrevivera às sessões de tortura da PCA, da Biblioteca, do Túnel,
estas três ele vencera.
Todas elas, PCA, Biblioteca e Túnel eram locais e níveis de
tortura organizados no Aeroporto do Galeão pelo grupo de torturadores do
Ministério da Aeronáutica. A cada pouso de um jato no Aeroporto do Galeão era
como se a terra desabasse sobre sua cabeça.
A sala de tortura do Túnel, a mais violenta delas, se houvesse possibilidade de uma ser mais
violenta do que a outra, era debaixo da pista de pouso do aeroporto
internacional do Galeão, agora Aeroporto Antônio Carlos Jobim.
O barulho fazia parte da tortura. Era um avião atrás do outro. Descendo e subindo. Uma loucura. Dali poucos saiam vivos e
os que saiam vivos traziam alguma marca.
Cicatrizes também na alma, como definiria Tarcísio Delgado. Agora, ele
respirava mais uma vez, enchendo os pulmões.
- O que vier, agora, é lucro!
Tempos depois, sentiu fome. Não sabia quanto tempo passara. Ali,
raramente serviam qualquer coisa, além de pancadas a qualquer hora, sem
qualquer razão, sem qualquer pretexto. Sentiu a chegada da fome como mais um
sinal de sobrevivência. Não preocupou-se em passar fome, tão certo de que
sobrevivera. Mexeu a perna e sentiu como se sua calça fosse uma madeira, dura.
Uma madeira que machucava, pois arranhava a carne viva. A calça dura, agora
madeira, era o sangue que secara e deixara sua calça como as roupas engomadas
que vestia nos dias de desfile cívico lá na sua distante Jampruca, no Vale do Mucuri.
- Se tudo o que vier é lucro, o mais a fazer é sustentar esta
hipótese de sobrevivência. Ele tinha certeza absoluta de que sobrevivera.
Lógico, não era um jogo de azar e nem o regime militar havia terminado.
- Resistir não é prova de força e nem pode ser parâmetro de medida de força. Não
há explicação plausível para este fenômeno, pois muitos, muito mais fortes do
que ele, muito mais resistentes do que ele, não aguentaram. Quantos somos?
Quantos restaram?
- O que vier, agora, é lucro!
Por que aquela frase batera em sua cabeça e não mais saíra?
- Era às vezes como uma provocação a mim mesmo e aos meus
agressores. Havia agora a vida a viver, depois desta loucura, que deveria ser
vivida, sobrevivida.
- O que vier, agora, é lucro!
- O que vier, agora, é lucro!
O mundo mudou, muita coisa passou, muitas etapas percorridas. Às
vezes, ele se surpreendia ouvindo distante, longínqua, a frase maluca.
Óbvia.
- O que vier, agora, é lucro!
- Vinha como se chamasse a minha atenção, como uma voz tímida e
baixinha, a alertar-me de que talvez eu tivesse esquecido algo fundamental.
Outras vezes sobrevivera.
Aos 12 anos, em suas aventuras de menino, mergulhara para retirar
um homem afogado, e voltara abraçado em um porco inchado, desmanchando. Dias e
dias de febre. Fizera um pacto com a vida. Optara por sobreviver.
Ninguém jamais soube explicar sua recuperação. Nem a mãe,
desesperada. Nem o médico, o doutor Luís Boali, que já preparara os familiares para o desfecho
final.
A febre desapareceu.
O caixão devolvido à funerária.
"Meu filho não caberia
naquela caixa". Deboche vitorioso do pai.
Outra vez, depois de dois meses amarrado em uma cama no Palácio do
Catete, no Rio de Janeiro, fora retirado para a “execução”, colocado no chão de
um automóvel, com os pés dos policiais sobre o corpo, pés no pescoço e nos
rins.
Horas e horas rodando pelas ruas e avenidas molhadas do Rio de
Janeiro, numa noite de chuva fina, até chegar ao local da execução.
O corpo encharcado de gasolina e álcool.
“Não vou morrer, sem lutar”.
A pouca chance que teve foi o
bastante para despertar na cama de um hospital.
Ao abrir os olhos, viu o rosto amigo do general Figueiredo, amigo
da família, e viu que o general tinha os olhos úmidos e viu uma lágrima
escapulindo.
Mais uma vez sobrevivera.
Agora, quando despertou na cela da PE da Barão de Mesquita, teve a
certeza de que o jogo continuara e que ainda estava a seu favor.
- O que vier, agora, é lucro!
Ele tinha certeza. Mais do que isto, ele tinha uma linguagem com o
que ele não entendia, em que um diálogo inexplicável, fora do entendimento, se
passava e, por mais fraco que estivesse, a vida venceria sempre.
Era profundo. Nunca fora místico, não tinha raízes nem forças para
isto e nem formação adequada. Era preguiçoso. Nunca fora o melhor em nada. Não
tinha motivações para qualquer tipo de disputa, nem tesão para ser vencedor de
competições e nem saco para comemorações.
- O que vier, agora, é lucro!
- O que vier, agora, é lucro!
- O que vier, agora, é lucro!
Nunca cedera em nada do que acreditava, também acreditava em tão
poucas coisas, que sempre era visto como inadequado na convivência.
Incrédulo?
Nem tanto, porque nem ao não havia sim.
24.11.99