sábado, 20 de junho de 2020

NO MUNDO PARALELO




 Quadro Janela Vista Paisagem no Elo7 | Tabuleiro das Artes (885E32)


 

 

 

 

 

 

 

NO MUNDO PARALELO

 

 

 

 

A mais longa de todas

 

as jornadas

 

 

 

Renée Guerreiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1

 

 

 

 

Entre mares, andei

Tangido pelo vento, naveguei

 

 

Entre abraços, sonhei

mulheres formosas cavalguei

 

Entre ódios, passei     

dilacerado, tudo cobrei

 

 

Entre desafios, porfiei         

em lutas insanas morri e matei

 

Entre desejos, abafei     

Minha voz, embarguei     

 

Entre selvas, me achei     

procurando rios,

 

Não encontrei

 

Entre livros, silenciei-me     

A voz de sábios abandonei

 

Entre princípios, aguentei     

E com olhos, vigiei

 

 

 

 

 

 

2

 

 

 

 

vontade de vomitar tudo     

vomitar esta bondade    

vomitar os falsos    

vomitar a vida     

podre, miserável,      

vem o nojo       

revivendo sempre        

tudo o que acabou      

tudo o que forma os sonhos

 

 

Até que um dia só restou      

eu, dentre todos que a deviam amar

 

Caminhávamos entre palavras     

e chegamos até as rochas      

 

A sombra desapareceu

 

De onde estávamos podíamos ver

O vale, a casa, as árvores que davam       

frutos, o gado leiteiro, a cisterna    

e a água que saia da cisterna     

o banho da criança, o choro,     

a pirraça, o beliscão,    

o gesto da mãe ao amar

 

 

 

 

 

 

3

Caminhávamos entre rochas      

e entre palavras    

uma sombra fria   

não entristecia

era inútil

era neutra

deixava aos pássaros

cantar a alegria ou a tristeza

 

Eu estava fora da sombra

Lúcia mostrou-me um livro de poesias

- Leia estes versos.

No livro não havia nada escrito

O livro não era livro

Saía de suas mãos finas, um livro       

que não chegavam em minhas mãos rudes

 

 

 

-         Leia estes versos

Todos devem me amar

Todos devem me amar

Você deve me amar

Você, eu amo, e você deve me amar

 

 

 

Em outra pagina

Havia um desenho de Brueghel

A rapidez do meu olhar       

as manchas humanas movimentam-se

Ela isolou com as mãos

velhos prédios barrocos, brancos

 

 

 

 

- Conhece-os? Não? Anh!

Lembra-se de alguma coisa?

Mais tarde, bem mais tarde    

toda a ânsia do mundo    

circulava em meu sangue    

Era o meu sangue   

estas casas barrocas, brancas

 

Lembram-me as casas da fazenda.


4

 

 

 

 

Um sonho, uma menina, uma sela,

Tudo entre nós, desde aquela época

Agora minhas mãos estão sujas     

eu estrago o papel que escrevo   

eu borro as palavras com meu suor

 

A sombra era ocasional,

embora, enquanto ali permaneceu a árvore,     

surgisse todas as manhãs 

à mesma hora, sem ser triste

Sem ser melancólica, sendo indiferente

 

Lúcia parecia escapar-me  

Não, não, ela vinha para mim.

Oh! tristeza!

Feita de louça

Feita de vinho     

Feita de moça

 

  

 

 

 

5

 

 

Tristeza tão fina         

tão doce   

tão pequenina

 

Tristeza menina     

que um dia caiu e quebrou      

que um dia saiu

 

tristeza vinho     

que me embriaga      

igualmente doce e amarga

 

Tristeza louça    

parecida com a menina    

só um pouco mais fina

 

Louça Louca   

menina mina    

Vinho também

Ninho

 

 

  

 

6

 

 

a terra equilibrada                                                                            

no mergulho noturno    

segundo uma luz sem turno

 

 

 

a pedra equilibrada  

no voo lançada   

atinge o alvo decepado  

 

 

 

moinho soprado pelos sonhos    

a vida empurrada aos trancos

na caça dos traços multicores   

na trama, na rama dos amores

deitado em leitos multiconjugais

 

 

 

um menino de berço Portugal

sentado na máquina e no espaço

a cata no terreno selvagem

a batida da máquina  

registrada por um gravador

sem imaginação

 

 

 

Onde anda o meu povo?

Procura o que comer

Procura do que viver

 

 

Vamos plantar as mais estranhas sementes

Aqui, nascerá trigo

Ali, colherá todos os frutos

 

 

Vejo, a lista, a estrela de dezembro

Vejo, da minha janela maior

 

 

 

 

Da minha janela não pressinto

O que sou, nessa pequenina bola,

girando, aparentemente imóvel;

 

Como o homem pode ser

maior do que o cosmo?

 

 

 

 

Zanzando pelo espaço

Da mesma maneira

Que é maior do que a terra

Da mesma maneira

Que a terra tornou-se pequena

Zanzando no espaço

Sem mudar as ordens celestes

Nem as posições dos astros

Como mudamos os cursos dos rios

Criando dentro dos universos

A sobrevivência para daqui a tantos bilhões.

 

 

  

 

7

 

 

 

 

 

a terra equilibrada                                                                

datilografada 

mergulho noturno

segundo uma luz sem turno

 

a pedra equilibrada

no voo lançada

atingindo o alvo decepado

moinho soprado pelos sonhos

 

a vida empurrada aos trancos

na caçada, traços multicores

na trama, uma rama dos amores

deitado em leito multiconjugal

 

um menino de berço igual

sentado na máquina e no espaço

a cata no terreno selvagem

a batida da máquina

registrada por um gravador

sem imaginação

 

Aqui, vai nascer

Aqui, vai nascer trigo, Deodoro,

Ali vamos colher todos os frutos, Magali

 

 

 

Vejo, a leste, a estrela de dezembro

As grandes explosões

criam universos muitos universos

É a sobrevivência perene

 

 

8

 



à rapidez do meu olhar     

as manhãs humanas movimentaram-se    

formigas humanas    

ela isolou com as mãos      

uns prédios barrocos, brancos   

 

 

- Conhece-os? Não? Aah!     

 

 

- Lembra-se de alguma coisa?  

 

 

Mais tarde, bem mais tarde,     

toda a ânsia do mundo   

circulava em meu sangue      

era o meu sangue    

 

Estas casas barrocas, brancas,     

lembram-me hoje as casas da fazenda,      

um sonho, uma menina, uma sela,   

tudo entre nós, desde aquela época        

agora minhas mãos estão sujas     

estrago o papel que escrevo    

as palavras borram-se com o meu suor   

a sombra era ocasional  

 

Enquanto, ali, permaneceu a árvore,      

surgiram todas as manhãs      

à mesma hora sem ser triste

sem ser melancólica, sendo indiferente

 

Lúcia parecia escapar-me      

Não, não, ela vinha para mim  

até que um dia só restou  

eu, dentro todos que a deviam amar

 

 

 

 

10

 

 

 

 

Caminhávamos entre palavras    

Chegamos até as rochas    

 

a sombra desapareceu     

 

de onde estávamos, podíamos ver    

 

o vale, a casa, as árvores que davam   

frutos, o gado leiteiro, a cisterna     

e  a água que saía da cisterna,    

o banho da criança, o choro,

a pirraça, o beliscão,      

o gesto da mão que ama,

ama de cara fechada.

 

 

 

 

11

 

 

 

Entre mares, andei     

tangido pelo vento naveguei

 

Entre abraços, sonhei     

mulheres formosas cavalguei   

 

Entre ódios, passei      

dilacerado tudo cobrei

 

Entre lagrimas, acreditei

Um dia chegar, cheguei

 

Entre desafios, porfiei      

em lutas insanas morri, e matei

 

Entre desejos, abafei     

minha voz que embarguei

 

Entre selvas, me achei     

procurando rios, te encontrei

 

Entre livros, silenciei      

e a voz dos sábios abandonei

 

Entre princípios, agüentei   

porque com olhos vigiei

 

 

 

 

 

 

12

 

 

 

 

 

O vento modificou-me

O vento-cinzel

O vento-escultor

O vento deixou-me marcas     

do seu trabalhar    

de um triste ventar

 

 

 

Meu rosto tornou-se mais áspero

Minha pele desapareceu no vento

Restos de mim, o vento espalhou

Minhas cinzas, o vento espalhou

 

Vi pedaços de mim na parede

Alguém declamou uma poesia de um amor   

que foi meu – nem triste posso ficar

 

Pedaços do meu lábio completaram os beijos     

dos que não souberam amar

 

O vento em mim furacão

Raras vezes lento, sem ser sentido

Agasalhou-me no calor

Suave numa manhã sem sol

O vento, lento, a avelã

Com o seu valor

Vento que compõe, vento criador

 

A arte do vento      

esculpe traços doloridos

que dilaceram,

a dor é ventania

 

13

a vida e a morte

a morte e a morte

a liberdade e a morte

a morte, a morte

entre as grades

a morte, sempre, sempre

a morte escondida

entre as grades

entre eu e a vida

a morte é o fim

triste fim

fim da vida

fim do amor

fim do fim

 

eu quero viver sempre

nunca penso na morte em mim

mas

sempre a morte, a morte

a atestar, você está vivo

e eu vivo, eu vivo

a morte, cantada nos casos

 

a morte nos atraiçoa

tirando-nos para cúmplices

contra a nossa vida

 

a morte é uma árvore

o chão é a vida

a morte não é uma árvore

a morte nunca tomba

 

quando eu morrer, se eu morrer,

não me levem flores

eu morri

(Maria não chore porque eu te amei)

Não me esqueçam,

Por favor não me esqueçam,

Eu serei eterno,

Contente, feliz,

 

Eu vivo

Vivo no ar que te corta a cerca

Vivo na boca que me fala

Façam um altar, façam-me santo

 

Eu farei tudo para que vocês me amem

Eu vou ser bom

Eu vou ser santo

Contanto, que vocês não me esqueçam

 

Quero morrer, com certeza,

Com maior certeza ainda   

De que eu não serei esquecido

 

A um morto nada se nega, digo eu

Não me neguem a eternidade

 

Deixo um encargo

Não houve desonesto tão honesto quanto eu

Não houve impureza tão pura quanto eu

 

Consegui chegar até um século que chamam   

de século vinte, por comodidade

 

E dele corri para o XXI

 

Pergunto, todos os dias, como consegui chegar

sozinho ao século vinte e depois ao outro?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

14

 

 

 

Meus nervos não estão em mim

Estão no ar! É o próprio ar!

Estes remédios de nada adiantam.

Não acalmam o ar.

Não servem para nada

Meus nervos não estão em mim.

 

Fartei-me como um gordo

Sentei na cadeira enorme

Como um grande senhor

O senhor da cadeira

como um touro sentado

 

Olhei o mundo e peidei

E tive sono e bocejei

 

Olhei o mundo e disse

Estou certo, não quero jogar hoje

Não quero viver hoje

Que um bom sono jogue fora os meus poemas

Fiz poemas quando era magro e raro jogava

 

 

 

15

 

 

 

Sem nada, sem olhos,

Sem poder ver,

E ignorante

 

Sem um sapato para andar

Nunca andei descalço

 

Sem um pedaço de pano para cobrir-me

Tive medo da vida nua

 

Sou um pedaço de asno

Por que eu não agi com mais tato?

Pensa, cabeça! Pensa!

Sua filha da puta

O que você anda fazendo aí em cima

Pensa miserável!

 

Como pude negar uma palavra amável!

À amável mulherzinha de branco

Vestida de carinho

Sozinha me pedindo

Um beijo, dois beijos

O pedaço de um mar

Que não existe

E eu que imenso egoísta

Neguei-lhe o mar

E beijei-a como um canalha

 

 

 

 

 

 

 

16



 

Sou triste no mundo em que emparedei-me

Alheio ao viver alegre e sem sentido

 

Não me fiz triste para ser poeta

Fiz-me triste por mim mesmo, por honestidade

 

Como posso sorrir, se finjo alegria

 

Como posso sorrir, se logo me canso

Se os músculos da face já até esqueceram

Como se contraem em um sorriso franco

 

 

As palavras de minha vida não têm definições

Não se encontram em verbetes

Não têm sinônimos

Não são letras apenas, são palavras silenciosas

Que escrevo com as mesmas palavras de todos

Dizendo para mim o que eu entendo

Explicando para mim o que eu falo

 

Não acendo vela aos santos

(mas já acendi e não me sinto humilhado por isso)

amei decentemente uma mulher

(Um dia, um dia, por isso não morri)

já fui vagabundo, já fui valente,

triste também, alegre também

vi a morte rasgar o meu peito de dor

e a morte arrancar de meus braços

uma vida que eu trocava pela minha.

 

Vi, vi sim, vi lágrimas em meus olhos

(É verdade, eu olhei no espelho,

eram verdadeiras, eram lagrimas mesmo)

 

Diante de mim, vi o pavor,

o susto, o pavor, o susto, o horror

 

Vi o homem cão arrastar-se e pedir-me

 

Senhor da vida e da morte

 

Sua vida, um resto de vida

 

E eu disse não, é preciso saber dizer não

 

Vi também diante de mim o meu fim

 

E arrastei-me como um cão, igualzinho um cão,

 

Rabo entre s pernas,

 

Queria minha vida e consegui

 

Para depois enojar-me

 

 

  

 

17

 

Vê estes pés mutilados

São pés rasgados

O caminho não foi longo

Tinha pedra, tinha gente

Pedra e areia

Pedra e sol

Pedra e dor

Pedra e sangue

 

Nas casas de pedra

Homens de pedra e areia

Pedra e sol

 

Vê estes pés rasgados

São pés acabados

São pés sem esquecimentos

Perdi muito sangue na estrada

Cada gota levou mais de mim

Do que os anos que perdi

 

O rio desliza, procura o mar

E eu sou o rio que não desliza para o mar

Eu sou o rio que volta sobre si mesmo

 

Impossível?

 Eu sou quem tenta o impossível.

Vê estas mãos inchadas

Estas mãos carinhosas!

 

Mãos que hoje apenas faz poemas

Secos, sem saber, poemas de um homem maldito

Malditos poemas iguais em tudo ao homem

 

Quem acredita que estou só

Muitos são os tristes

Os tristes são homens malditos

Homens sem rosto

Apagados num quarto cheio de espelhos

 

O horizonte funde-se neles mesmos

A loucura de nada pensar

A coragem de morrer vivendo

A senhora babaquice de amar

De todas estas misérias, eles são capazes

São capazes de até mesmo,

Vejam só quanta estupidez,

De dizerem a verdade

 

  

 

 

18

 

Ser poeta é ser triste

Triste destino do poeta

Ninguém vê um poeta

Sem envolvê-lo de dor

 

Poeta condecorado traz  no peito

no lugar do coração

uma nuvem escura

e deixa na sua passagem

restos doloridos

lembrando de dores em rastros

de vidas que nunca viveram

 

Lá vai o poeta

vai para longe

onde ninguém chega

só, por onde passa

poucos arriscam

 

Só  os poetas batem no peito

- Aqui jaz um coração

Mas... poeta é dor

a dor macerada

o estado de lassidez

 

Se for possível outra definição do homem

será possível outra definição do poeta

 

Os poetas devem esconder a alegria

 

Cantar a alegria do que já era

 

A infância perdida em meio a campos floridos

 

A amada nos braços do passado

 

Dos poetas alegres

saem falsos versos.

 

Nada falam além da melodia

 

Seus versos não são versos

Suas rimas rimam com a vida

São os mudos, são os construtores

do silêncio, da incapacidade, da agonia

 

 

 

19



 

O mundo lá fora me espera

Vou sair para o mundo

preparado para tudo

comprei muitas fantasias

li muitos romances

ouvi os homens que vivem no mundo

cantarem sonhos de outro mundo

 

Não vou recolher-me entre sonhos

Abrirei as portas com as minhas mãos

Sei que muitas vezes cada passagem

Será para a minha maior solidão

Não reclamo, eu quero pisar

Sobre o perigo, sobre o insuspeitado

 

Pararei, decerto, num bar de beira de estrada

Beber uma cereja, comer uns pastéis

Inquieto, no trabalho, farei minha obra

Bela?

Talvez

Talvez, profundamente útil

(ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah )

 

Nunca me doeram os pés e eu caminho muito

 

Nunca perdi o caminho,

 

Nunca fixei destino

 

De que me vale zanzar, viver por aí?

 

Sem destino, sem sentido, sem razão?

 

Mudarei meu comportamento

 

de acordo com o clima,

 

violento, bruto, estúpido,

 

sociável, amável, retórico

 

Não tenham pena de mim,

Tudo isto foi escrito de dia

Eu sou um homem alegre

Todo verso que sai quer continuar

Com suas palavras, por outras mãos

 

Quanto aos romances, esperem, um dia sairão

Quis demais ser Hemingway, Rimbaud, Drummond

e não consegui sair de mim

vagabundo, materialista, exótico

 

Escrevia uma pagina no chão

beijando putas ingênuas

conhecendo cidades e países

representando nas ruas

minha façanha de viver

 

Um viajante

 

Vivo minha vida, num mundo

Bastante desconhecido

e suficiente para o esmagamento

 

Que felicidade! Ser humano!

Bato em meu peito

 

E digo: Eu tenho um coração

 

Farei um colar de contas

e vou dependurá-lo

ao lado de uma miçanga azul

 

 

20

 

 

É quase nada

Uma migalha

Teus beijos que se espalham

Nas minhas devassidões

 

De tudo um pouco

Da vida, a alegria

Dos teus abraços,

Os pequenos lábios

 

Tudo enfim, quase nada

da vida fica em mim

No momento em que vais para longe

Levanto teu corpo, tua vez, um pouco...

 

De tudo um pouco

Dos teus lábios, apenas um beijo

Das tuas mãos, uma despedida

E em minhas mãos nada fica

 

 

  

21

 

 

Guardo para você

Tesouros esquecidos

Pelo desprezo dos vencidos

Que preferiram a vida.

 

 

Quem são os vencidos?

São homens insensatos

Eles deixaram suas casas

Abandonaram os antepassados

Estupidamente preferiram viver

 

 

A cidade dos vencidos está vazia

Na cama não tem colchão

As ruas assaltaram-lhes

Aqui e ali estão espalhados

ódios confeccionados em peças brilhantes

 

 

Da batalha, restam corpos expostos

quem obrigou-os à condição de vencidos?

 

 

Foi a terra, que cansou, gemeu, tremeu

E massacrou todas as belezas

Pregadas nas paredes

Ajuntando tudo deixado pelos vencidos

 

 

 

Amontoei um tesouro

Que guardo para você

sem vida

apenas um tesouro que vale menos que vida

 

Cultivo o ódio

Como a faca

Que fere

 

Igual a bomba

na hora da explosão

 

Como a bala

Que ultrapassa

O corpo que tomba

 

  

22

 

 

 

Você vai embora para o mundo

e volta para ver como vai o homem

que vai nascer nos próximos dias

 

Você quer esse homem

para ser seu

para dar-lhe outra infância

para dar-lhe o seio

 

Você irá pegá-lo pela mão

antes de trazê-lo mais uma vez

ao bico do seu seio

apontará ali e acolá

o mundo como um zoológico

o mundo como um circo

e a alegria que se compra

num parque de diversões

 

 

Veja isto

É uma pessoa humana

humana mesmo

  

Você me ensinará a amar de novo

E o amor que aprenderei     

será o único    

pois você estará sempre     

com os lábios nos meus lábios      

as mãos nas minhas mãos     

para amar     

para beijar    

para dizer-me que já é hora    

do passeio e da noite

 

 

 

23

 

 

 

Da janela, o mundo que eu vejo diante dos sonhos      

 

alargando-se em palmeiras,

 

em espaços azuis e verdes

 

encolhendo-se diante de minhas mãos      

 

que crescem, que crescem      

 

matam-me com um sonoro tapa    

 

como matamos uma mosca

 

Da janela, por cima dos muros     

 

por cima da cadeira,   

 

por cima da cadeia,   

 

em direção aos céus    

 

perseguindo-me antes    

 

num passado    

 

que faço todos os dias    

 

de qualquer maneira    

 

um passado

 

 

 

Para atingir a janela, basta um vento    

 

igual ao vento    

 

empurra o calor    

 

empurra o frio

 

levanta a poeira      

 

poeira vermelha     

poeira amarela    

nas saias dela     

cascalhos     

e a terra dura

 

 

24

 

 

Vou despir tua pele     

tirar dos teus olhos este olhar     

tirar das tuas orelhas estes brincos    

 

Quero fazer-te, nua  para mim

 

Arrancar com alicate as palavras     

que se pregaram em teu seio   

tornar-te nua para mim      

atingir teus nervos

 

Quero ver-te nua, sem roupa     

sem óculos, sem brincos,    

sem as peças de ilusões que te cobrem

 

Nua, para mim, eu sei que tu continuas

 

 

 

 

25

 

 

Alguém se mira no espelho

Passa as mãos na camisa

Ficou acanhado ao se ver

Não é vergonha, não

Hábito

 

É  a mesma coisa

quando a gente encontra    

uma pessoa, uma mulher    

que a gente gosta    

ficamos meio tímido    

meio sem jeito,      

meio com vontade de correr,    

meio com vontade de agarrar

 

  

 

26

 

 

Alguém se mira no espelho

Quantos espelhos tem aqui?

São tantos.

Por que tantos?

Ele só carrega

Um desses de bolso, redondo      

com foto de mulher nua

 

Quem deixou no espelho um olhar?

Esqueceu também no chão suas ilusões.

 

Alguém se mira no espelho  

Alguém se mira no esquecimento     

passa as mãos na mulher nua     

que não é mais sua, nem da rua     

É mulher da lua, dos sonhos, da canção e da fuga.

 

Ninguém vê você diante do espelho

Aproveito, olho o seu corpo imenso,

Sua altura.

 

Faça pose, ninguém vê,    

Aproveite, faça careta

Porra, que nariz!

Ah! Elas gostam

Nariz e sexo se relacionam

Pelo menos na intensidade.

Na inteligência,     

mais oxigênio  

Guarda, guarda tua imagem

Vem gente aí

Lá, lá, lá, lá, isto!

Penteia o cabelo.

Guarde o espelho no bolso

onde a esconde.

 

 

 

 

27

 

Aquela que vem de longe tudo merece

Que me abre os braços hospitaleiros

Me oferece sua cama e seus sonhos

 

Aquela que traz no corpo apenas a idade

Ela diz que eu sou o mesmo

Seus lábios estão trêmulos

 

Aquela que as mãos transformaram-se

Em pedra de fogo e de dor

Quer ir embora.

Sua passagem, agora,  é acidente

 

Não foi possível voltar

E será impossível parar

Ela prega-se em mim, passos arrastados

 

Depois de tantas noites e pousos

Ela me mostra as paredes de sua vida

E quer me impedir de ir

 

Confesso perante o que sobrou de mim

De ser tudo o que nasceu  de mim

Acuso-me de ser tudo o que matei.

 

 

  

28

 

 

 

 

Eia!

 

Garimpeiro Juca me empreste o teu destino

 

Deixa-me experimentar a tua sorte

 

Não passa ninguém.

 

Nenhuma caravana

 

Tem coragem de me emprestar o seu destino?

 

 

 

 

29

 

 

 

Assim como a terra corre debaixo dos meus pés 

 

o horizonte foge sem descanso     

 

nunca seremos bons amigos 

  

sempre à distancia

 

impede a aproximação e qualquer palavra 

    

fugindo sem descanso, ando atrás do horizonte     

 

que é uma mulher de belos pares de seios tímidos

 

de repente, a agonia que sai de mim     

 

corre como um turbilhão    

 

que vai de encontro aos quatro muros da prisão

       

e se desfaz      

 

em poços estagnados    

 

sujando meus sapatos imundos

 

a guerra matou muitos em mim   

 

muitas mortes aconteceram em meu peito 

    

conheço as mortes deixadas pela guerra 

    

e, por isso, odeio    

 

e, por isso, quero vingança

 

30

 

 

Não posso amar   

ao deus-dará    

todas as mulheres que aparecem    

 

Todas as mulheres     

que vieram para os meus     

braços só quero que depois me deixem    

ao deus-dará

 

 

 

 

 

31

 

 

 

Cansado de despir a mim mesmo,     

despi o chão, a casa, a mulher louca   

e no chão encontrei seixos   

falando de meus mestres

Na casa, encontrei quartos    

calando sons mal articulados

(eram carinhos)

e na louca encontrei os seios   

de Helena como eram antes

maminhas duras e sensíveis

 

 

 

32

 

 

 

Senhor, se és tudo e todos    

por favor, seja menos complicado

Devolva-me o que me pertence

Meu ser total

Deixe-me em paz

 

 

33

 

 

Os sons da noite vagam

As estrelas, somente as estrelas      

e o som da música    

que por vezes é tão baixo   

que parece sumir    

 

Outras vezes os sons      

são maiores e mais brilhantes     

do que as estrelas

 

 

 

34

 

A alta montanha

A casa ao pé da montanha

 

A montanha era verde

A casa amarela

 

Um pássaro preto sobrevoava   

o verde e o amarelo

 

O meu ódio era grande

Eu era tranqüilo

O ódio negro

Eu, um bom amigo

 

Uma história corria

Do ódio para mim

 

Um dia a terra tremeu

O verde tudo engoliu      

menos o pássaro preto    

menos a minha história

 

A angústia de um mundo abafado

O homem reduzido

Redução na dor

Reduz o homem a um ser que ele não é

Resta um ser mesquinho

 

De noite, na cidade    

as luzes apagam-se     

uns e outros saem da sala   

e veem o céu estrelado

 

a menina não sabe o nome     

daquela estrela

 

longe da cidade,    

eu vi apagarem as luzes    

e as estrelas iluminarem as massas     

 

A escuridão capturou-a

A cidade espichava-se pelos morros

 

- Peguei o que existe naquela serra

 

- Nada, minha filha. Lá tem um pinheiral       

bonito, as luzes das estrelas não dão para

mostrá-la.

 

- Se fosse a luz da lua...

 

 

35

 

 

 

 

um sentimento passado, velho e cansado

um sentimento calado, cego e vago

tornou-se humano e igual a um homem

viveu e tornou-se trôpego

cansado calou-se

não enxergava o lugar

onde afundara seu corpo rígido

 

Um lugar calmo, um lugar onde o homem

se sentia só, um lugar vago

igual ao homem ou igual o homem ao sentimento    

a matéria transforma-se no que não é matéria   

e o que não é matéria será matéria.

 

 

 

 

36

 

 

 

Como até o pássaro preto     

não gosta de cantar    

na manhã    

em que todos os pássaros cantam

 

Ouça os sons de todas as vozes

 

Conserve sua atenção

Algo eles dizem signific    

encanto   

na manhã   

provavelmente o soar     

monótono do tambor     

 

Incansável, o mesmo

 

Sempre o mesmo

 

 

 

37

 

 

Tenho fugido da beleza    

que encontro aqui e ali    

 

Fujo com medo do domínio   

do descompasso do ser    

e não sei se é certo

    

A terra não impede o vulcão   

de lançar suas lavas   

fujo de acompanhar no voo,     

o pássaro    

e a manhã em que as nuvens correm    

apressadas para a tarde   

o gramado, o vento   

 

fujo de paredes    

e não me recolho em nada    

 

Eu não sou um espaço   

em mim não existe abrigo de nada

 

Sou como a substância

por isso, minha fuga é uma fuga sem caráter    

nada de desespero ou alegria

 

 

37

 

 

Arranco de mim    

todo dia     

a sujeira das horas    

e vou encontrar-me com você   

 

Rasgo as imagens    

de um dia

 

Na água, corre e fumega        

a matéria apodrecida   

um sonho de felicidade    

um nome de mulher    

uma alegria do passado    

 

Vou de encontro às horas da tarde

atravesso corredores baixos   

corredores brancos de cal   

passo por celas e escadas

 

Vou de encontro às seis horas com você

  

 

 

38

 

 

À Julieta Bártolo


Irmanzinha,    

escondo todo amor   

dentro dos meus papéis    

os papéis, envelopados,   

estão bem guardados

 

 

O envelope envelhece   

O papel envelhece

Eu também envelheço

Você eu amo

Sua imagem ainda é a mesma

Dentro das palavras

Dentro das pessoas

Em que me revelas

Tua alegria, tua tristeza

 

Eu, então, procuro abraçar

Teu corpo, tua imagem   

que desaparece no corpo de uma mulher

 

Quando outra vez te encontro   

eu estou mais deformado    

você, a mesma

Irmanzinha,   

 

Me dê teu sorriso

E tome, minha vida   

 

Vamos juntos, a aventura me chama

Eu vou mais longe do que a tua curta    

caminhada

Ficarás onde a luz não fatiga

 

 

 

39

 

 

 

Um homem sentado diante do corpo de uma mulher nua,

    

ainda é cedo,   

 

no hotel não há ninguém acordado    

 

até a mulher dorme

 

Ele tira o lençol que cobre o corpo nu que ainda dorme

 

O lençol está quente

 

E a noite

 

Enrola-o em suas mãos

 

Olha o corpo feminino

 

- Não é possível esta mulher aqui comigo

      

Tem troço errado,   

 

ela deve ser louca,    

 

tarada ela não é

 

Como eu entender  uma bagunça dessas?

 

O homem olha a rua

 

No asfalto molhado 

 

luzes brilham atingem as casas,

 

muros e portas de um colorido mutável

 

- Esta mulher pode estar preparando uma.

 

sim senhor, vai ver que ela é menor

 

Se for, estou fudido.

 

Vou é tratar de me mandar

  

 

 

 

 

 

40

I

Antes, fui um aventureiro    

que abandonou a montanha

Andando pouco a pouco

Seus olhos por vales e vidas

 

II

Ouço passos lá fora

Ouço passos no meu coração

São passos de quem corre

Até uma abraço de quem    

nunca mais esperavas ver

 

III

Deram-me uma máscara

E um sorriso de felicidade

Tudo pareceu tão natural

Que o espelho convenceu-me

Eu era alegre

 

Ri e despertei em outros a alegria

Antes que a festa acabasse

Vieram me tirar a máscara,

Arrancaram-me o coração

 

IV

Rasgo minha entranhas

Procurando meu destino

Entre meus dedos escapam     

minhas entranhas e minha vida

 

V

Entram na escuridão

Meu sangue e meu corpo que lateja

Entram em seguida

Os braços cortados

minhas mãos separadas     

uma calça cinza

entram na escuridão

dois olhos que ninguém     

diz se são de tigre ou de anjo

 

VI

Não sou um homem livre

Antes de ser qualquer coisa

Serei livre ou não serei nada

 

VII

Não há ironia em meu olhar

Você enganou-se desta vez

Há cansaço

Não há dor em meu olhar

Há uma pequenina    

história de amor

 

VIII

Não acompanho ninguém

Se erguem bandeiras

Desafiam-me a rebeldia

Se erguem palavras-de-ordem

Dão-me vigilância

Somente acompanho até o monte

dali volto de novo     

para meu canto    

Sou atalaia

Sempre disposto a largar tudo de novo     

todas as vezes em que for necessário     

ir com alguém até o monte

 

41

Onde está a liberdade?

 

 

Um corredor branco que parece e não é hospital

 

e o céu

 

grades,

 

 janelas de grades,

 

portas de grades

 

portas pesadas

 

e o céu

 

homens uniformizados, uniformes, vestidos de azul

 

e o céu

 

um rosto perdido,

 

uma palavra tropeçando na língua,

 

e o céu

 

uma história que daria mil romances

 

e o céu

 

um crime esquecido,

 

uma valentia inútil,

 

 um olhar perdido

 

e o céu

 

retratos de mulheres,

 

de manequins

 

de artistas,

 

fotos, fotos do time

 

e o céu

 

conversas no corredor,

 

conversas no pavilhão,

 

no campo   

 

e o céu

 

Um retrato de um menino brincando

 

com um cachorro de pano

 

e o céu

 

O radio a toda altura,

 

o jardim para cuidar, a consulta

 

e o céu

 

a raiva e o ódio entram para a cela as cinco horas

 

e o céu

 

uma carta sobre a mesinha, vai segunda-feira para ela

 

e o céu

42

 

 

 

I

O menino encosta a boca na vidraça

Brinca e desenha no vidro

Aos poucos apaga toda a cena

Nem a luz atravessa a janela

Ao brincar,  o menino  apaga

Tudo o que depois da vidraça existia

 

 

II

Veio como uma criança

Enchendo-me de perguntas

Amortecido pela beleza,

Baralhava-me ao som de sua presença

Ela me olhava com carinho

E eu envergonhado, desviava

Minhas mãos para os meus lábios

 

 

III

Um mar – chegando na praia

Meus sonhos  -  chegando no mar

O barco correndo para o mergulho

no horizonte ou no fundo

 

 

IV

Um poema não é uma carta

Escreve amanhã a introdução do primeiro      

romance que ultrapassa o poema     

e que não é uma carta

Fale a verdade, cante as musicas que você sabe

Fale a verdade, fale sem rodeios

 

 

 

43

 

 

 

Se as minhas mãos perderam a memória

 

do seu corpo

 

se as minhas mãos não sabem a macieza

                                              

de tua pele

 

se as minhas mãos não conservarem a umidade

                                              

de teu suor

 

podes demorar onde estás,

 

nunca fostes minha.

 

44

 

 

aprendeu no mar      

que o mundo é frágil

que o vento é forte      

seus passos na rua

tinham o balanceado       

de quem viaja num mar revoltoso     

 

É um marinheiro, diziam

Veem o bamboleio, apontavam

Balanceia como um marinheiro         

 

Aprendeu no mar     

a se equilibrar nas ruas

 

 

45

 

 

 

 

 

o viajante jogou as malas sobre o balcão     

 

meio-dia e apenas o porteiro

 

-         um quarto

 

-         um quarto

 

o viajante não falou que estava cansado   

 

o sol estava quente

 

 

46

 

 

Duvido que alguém deixasse

Marlene passar sem mais nada

 

Ela era minha alegria

 

Quando ela saia

seu sorriso errava sobre o seu corpo

um sorriso errante

vagabundo, sensual,

passeava em seus cabelos

antes de espalhar-se pelos

lugares e perdia-se nas nuvens.

 

Duvido que qualquer um

não cantasse aquela mulher

existem mulheres, meu amigo,     

que não podem pertencer a um avaro

 

 

 

47

 

 

 

Zé e Dona Fé

 

É preciso acreditar em Dona Fé    

mulher grande,     

de tamanho maior, muito maior,      

quando a gente lembra dela    

para falar ao anoitecer.

 

Dona Fé conhecia as dores     

dos homens,       

trouxe os filhos em torno da mesa    

no almoço e na janta,     

duas vezes por dia,    

mesmo depois de casado,     

Zé vinha de longe,    

muito longe,      

amar  duas vezes por dia.

 

 

48

 

 

 

talvez seja necessário eu derrubar paredes      

talvez!     

talvez seja necessário fugir

talvez!

talvez seja necessário matar para comer

talvez!

talvez seja necessário abandonar a casa

talvez!

 

 

 

 

49

 

A terra debaixo dos meus pés       

o mar debaixo dos navios        

 

há pedaços da noite       

caídos no chão     

há pedaços de estrela     

na poeira do teu paletó         

 

era um pássaro tenaz      

e sua luta pior    

deu tudo de si    

pela liberdade   

e nas grades da sua prisão      

quebrou suas asas     

 

Era uma ave que quebrou as asas     

contra a grade da tirania

 

 

 

50

 

 

talvez seja uma mulher      

vestida de cinza

talvez seja uma mulher     

coberta de areia

talvez seja uma mulher    

parida nos lençóis

talvez seja uma mulher       

extraída do cimento

talvez... quem sabe?     

ela seja uma bela mulher

 

 

Esta esperança é dura

Não há vento que a leve

Pesada ela se espicha

Se agarra à minha vida

51

H, soube de suas lagrimas

Tinha ganas de chorar também

Fiquei triste em sua tristeza

Não chorei

Não permaneci triste

Falta de costume

O demônio negou-me lágrimas

 

Foi, H, como se eu tivesse chorado

Sua felicidade para mim é maior     

do que o mundo onde vivem os gigantes

 

Os burros não podem atrapalhar

Senão os vestiremos de camisolão  

Ninguém irá tumultuar a sua felicidade

Eu e o Batira

estamos atentos

 

Tenho orgulho de você

Do seu orgulho.

Da sua bondade

 

Porque, sem o dizer, é melhor que nos

vença, tem que vencer

 

Suas fibras são melhores

Não chore, não se entregue

Seus sentimentos são puros

 

Abrace seu filhinho

 

Não chore. Não importa à incompreensão

 

Compreendo, sua felicidade não isola ninguém

 

Seja feliz.

 

52

Voltou, desgraçado    

voltou para deitar     

voltou para um lugar pequeno      

voltou porque me conhece     

porque o sol brilha     

porque há cinzas no chão  

 

Eia! Seus seios possuem nafta!

Eia! Senhores, onde eu me perco.

 

Veem ao longe uma enseada

Posso garantir que os lucros      

Serão superiores

Os programas aí estão

Assim caminha um homem honrado

 

52

 

Teriam que ser poucas palavras     

mas não havia jeito    

de ser parcimonioso    

com as palavras     

 

elas surgiam de dentro do guarda-roupa       

elas surgiam de debaixo da cama     

amontoavam-se em nossa frente      

precipitavam-se em perseguição      

a nós, incautos e broncos,     

 

eu sentado no chão     

empolgava-me com as histórias     

e tudo eram palavras     

saindo para as paredes      

dependuradas no arame para secar   

uma calça, uma palavra     

uma meia, uma palavra    

para contar o seu caso Joaquim 

para secar     


teriam que ser poucas as palavras     

mas, impossível, não ser loquaz     

as palavras estavam aí     

sedutoras, trazendo as pessoas     

para a gente, a formar,       

apesar de nossa tristeza,     

esplêndidas sedutoras     

alegres aventureiras,

 

Pois é, 

é isso mesmo

 

                                                 

53

 

 

 

                                               Felício   Belisária     Bili

 

- O pai de Felício é que era português! Dizia minha mãe.

 

 

Todas estas palavras agarram-se nos pais de Felício e de Belisária, agarram-se nas construções isoladas da penitenciária-cemitério.

 

Os poemas são da Irmãzinha Maria, Julieta Bártolo, e do companheiro de ser só, o bom Pássaro Preto

 

 

25.09.2002                                 20.06.2020                     16.04.2022