NO
MUNDO PARALELO
A mais longa de todas
as jornadas
Renée Guerreiro
1
Entre mares, andei
Tangido pelo vento, naveguei
Entre abraços, sonhei
mulheres formosas cavalguei
Entre ódios, passei
dilacerado, tudo cobrei
Entre desafios,
porfiei
em lutas insanas morri e matei
Entre desejos, abafei
Minha voz, embarguei
Entre selvas, me
achei
procurando rios,
Não encontrei
Entre livros, silenciei-me
A voz de sábios abandonei
Entre princípios, aguentei
E com olhos, vigiei
2
vontade de vomitar
tudo
vomitar esta bondade
vomitar os falsos
vomitar a vida
podre,
miserável,
vem o
nojo
revivendo
sempre
tudo o que
acabou
tudo o que forma os sonhos
Até que um dia só
restou
eu, dentre todos que a deviam amar
Caminhávamos entre
palavras
e chegamos até as
rochas
A sombra desapareceu
De onde estávamos podíamos ver
O vale, a casa, as árvores que
davam
frutos, o gado leiteiro, a cisterna
e a água que saia da
cisterna
o banho da criança, o
choro,
a pirraça, o beliscão,
o gesto da mãe ao amar
3
Caminhávamos entre
rochas
e entre palavras
uma sombra fria
não entristecia
era inútil
era neutra
deixava aos pássaros
cantar a alegria ou a tristeza
Eu estava fora da sombra
Lúcia mostrou-me um livro de poesias
- Leia estes versos.
No livro não havia nada escrito
O livro não era livro
Saía de suas mãos finas, um
livro
que não chegavam em minhas mãos rudes
- Leia estes versos
Todos devem me amar
Todos devem me amar
Você deve me amar
Você, eu amo, e você deve me amar
Em outra pagina
Havia um desenho de Brueghel
A rapidez do meu
olhar
as manchas humanas movimentam-se
Ela isolou com as mãos
velhos prédios barrocos, brancos
- Conhece-os? Não? Anh!
Lembra-se de alguma coisa?
Mais tarde, bem mais tarde
toda a ânsia do mundo
circulava em meu sangue
Era o meu sangue
estas casas barrocas, brancas
Lembram-me
as casas da fazenda.
4
Um sonho, uma menina, uma sela,
Tudo entre nós, desde aquela época
Agora minhas mãos estão
sujas
eu estrago o papel que escrevo
eu borro as palavras com meu suor
A sombra era ocasional,
embora, enquanto ali permaneceu a
árvore,
surgisse todas as manhãs
à mesma hora, sem ser triste
Sem ser melancólica, sendo indiferente
Lúcia parecia escapar-me
Não, não, ela vinha para mim.
Oh! tristeza!
Feita de louça
Feita de vinho
Feita de moça
5
Tristeza tão
fina
tão doce
tão pequenina
Tristeza menina
que um dia caiu e
quebrou
que um dia saiu
tristeza vinho
que me embriaga
igualmente doce e amarga
Tristeza louça
parecida com a menina
só um pouco mais fina
Louça Louca
menina mina
Vinho também
Ninho
6
a terra
equilibrada
no mergulho noturno
segundo uma luz sem turno
a pedra equilibrada
no voo lançada
atinge o alvo decepado
moinho soprado pelos sonhos
a vida empurrada aos trancos
na caça dos traços multicores
na trama, na rama dos amores
deitado em leitos multiconjugais
um menino de berço Portugal
sentado na máquina e no espaço
a cata no terreno selvagem
a batida da máquina
registrada por um gravador
sem imaginação
Onde anda o meu povo?
Procura o que comer
Procura do que viver
Vamos plantar as mais estranhas sementes
Aqui, nascerá trigo
Ali, colherá todos os frutos
Vejo, a lista, a estrela de dezembro
Vejo, da minha janela maior
Da minha janela não pressinto
O que sou, nessa pequenina bola,
girando, aparentemente imóvel;
Como o homem pode ser
maior do que o cosmo?
Zanzando pelo espaço
Da mesma maneira
Que é maior do que a terra
Da mesma maneira
Que a terra tornou-se pequena
Zanzando no espaço
Sem mudar as ordens celestes
Nem as posições dos astros
Como mudamos os cursos dos rios
Criando dentro dos universos
A sobrevivência para daqui a tantos bilhões.
7
a terra
equilibrada
datilografada
mergulho noturno
segundo uma luz sem turno
a pedra equilibrada
no voo lançada
atingindo o alvo decepado
moinho soprado pelos sonhos
a vida empurrada aos trancos
na caçada, traços multicores
na trama, uma rama dos amores
deitado em leito multiconjugal
um menino de berço igual
sentado na máquina e no espaço
a cata no terreno selvagem
a batida da máquina
registrada por um gravador
sem imaginação
Aqui, vai nascer
Aqui, vai nascer trigo, Deodoro,
Ali vamos colher todos os frutos, Magali
Vejo, a leste, a estrela de dezembro
As grandes explosões
criam universos muitos universos
É a sobrevivência perene
8
à rapidez do meu
olhar
as manhãs humanas
movimentaram-se
formigas humanas
ela isolou com as
mãos
uns prédios barrocos, brancos
- Conhece-os? Não?
Aah!
- Lembra-se de alguma coisa?
Mais tarde, bem mais
tarde,
toda a ânsia do mundo
circulava em meu
sangue
era o meu sangue
Estas casas barrocas, brancas,
lembram-me hoje as casas da
fazenda,
um sonho, uma menina, uma sela,
tudo entre nós, desde aquela
época
agora minhas mãos estão
sujas
estrago o papel que escrevo
as palavras borram-se com o meu
suor
a sombra era ocasional
Enquanto, ali, permaneceu a
árvore,
surgiram todas as
manhãs
à mesma hora sem ser triste
sem ser melancólica, sendo indiferente
Lúcia parecia
escapar-me
Não, não, ela vinha para mim
até que um dia só restou
eu, dentro todos que a deviam amar
10
Caminhávamos entre palavras
Chegamos até as rochas
a sombra desapareceu
de onde estávamos, podíamos
ver
o vale, a casa, as árvores que
davam
frutos, o gado leiteiro, a
cisterna
e a água que saía da
cisterna,
o banho da criança, o choro,
a pirraça, o
beliscão,
o gesto da mão que ama,
ama de cara fechada.
11
Entre mares, andei
tangido pelo vento naveguei
Entre abraços, sonhei
mulheres formosas cavalguei
Entre ódios, passei
dilacerado tudo cobrei
Entre lagrimas, acreditei
Um dia chegar, cheguei
Entre desafios,
porfiei
em lutas insanas morri, e matei
Entre desejos, abafei
minha voz que embarguei
Entre selvas, me
achei
procurando rios, te encontrei
Entre livros,
silenciei
e a voz dos sábios abandonei
Entre princípios, agüentei
porque com olhos vigiei
12
O vento modificou-me
O vento-cinzel
O vento-escultor
O vento deixou-me
marcas
do seu trabalhar
de um triste ventar
Meu rosto tornou-se mais áspero
Minha pele desapareceu no vento
Restos de mim, o vento espalhou
Minhas cinzas, o vento espalhou
Vi pedaços de mim na parede
Alguém declamou uma poesia de um
amor
que foi meu – nem triste posso ficar
Pedaços do meu lábio completaram os
beijos
dos que não souberam amar
O vento em mim furacão
Raras vezes lento, sem ser sentido
Agasalhou-me no calor
Suave numa manhã sem sol
O vento, lento, a avelã
Com o seu valor
Vento que compõe, vento criador
A arte do vento
esculpe traços doloridos
que dilaceram,
a dor é ventania
13
a vida e a morte
a morte e a morte
a liberdade e a morte
a morte, a morte
entre as grades
a morte, sempre, sempre
a morte escondida
entre as grades
entre eu e a vida
a morte é o fim
triste fim
fim da vida
fim do amor
fim do fim
eu quero viver sempre
nunca penso na morte em mim
mas
sempre a morte, a morte
a atestar, você está vivo
e eu vivo, eu vivo
a morte, cantada nos casos
a morte nos atraiçoa
tirando-nos para cúmplices
contra a nossa vida
a morte é uma árvore
o chão é a vida
a morte não é uma árvore
a morte nunca tomba
quando eu morrer, se eu morrer,
não me levem flores
eu morri
(Maria não chore porque eu te amei)
Não me esqueçam,
Por favor não me esqueçam,
Eu serei eterno,
Contente, feliz,
Eu vivo
Vivo no ar que te corta a cerca
Vivo na boca que me fala
Façam um altar, façam-me santo
Eu farei tudo para que vocês me amem
Eu vou ser bom
Eu vou ser santo
Contanto, que vocês não me esqueçam
Quero morrer, com certeza,
Com maior certeza ainda
De que eu não serei esquecido
A um morto nada se nega, digo eu
Não me neguem a eternidade
Deixo um encargo
Não houve desonesto tão honesto quanto eu
Não houve impureza tão pura quanto eu
Consegui chegar até um século que
chamam
de século vinte, por comodidade
E dele corri para o XXI
Pergunto, todos os dias, como consegui chegar
sozinho ao século vinte e depois ao outro?
14
Meus nervos não estão em mim
Estão no ar! É o próprio ar!
Estes remédios de nada adiantam.
Não acalmam o ar.
Não servem para nada
Meus nervos não estão em mim.
Fartei-me como um gordo
Sentei na cadeira enorme
Como um grande senhor
O senhor da cadeira
como um touro sentado
Olhei o mundo e peidei
E tive sono e bocejei
Olhei o mundo e disse
Estou certo, não quero jogar hoje
Não quero viver hoje
Que um bom sono jogue fora os meus poemas
Fiz poemas quando era magro e raro jogava
15
Sem nada, sem olhos,
Sem poder ver,
E ignorante
Sem um sapato para andar
Nunca andei descalço
Sem um pedaço de pano para cobrir-me
Tive medo da vida nua
Sou um pedaço de asno
Por que eu não agi com mais tato?
Pensa, cabeça! Pensa!
Sua filha da puta
O que você anda fazendo aí em cima
Pensa miserável!
Como pude negar uma palavra amável!
À amável mulherzinha de branco
Vestida de carinho
Sozinha me pedindo
Um beijo, dois beijos
O pedaço de um mar
Que não existe
E eu que imenso egoísta
Neguei-lhe o mar
E beijei-a como um canalha
16
Sou triste no mundo em que emparedei-me
Alheio ao viver alegre e sem sentido
Não me fiz triste para ser poeta
Fiz-me triste por mim mesmo, por honestidade
Como posso sorrir, se finjo alegria
Como posso sorrir, se logo me canso
Se os músculos da face já até esqueceram
Como se contraem em um sorriso franco
As palavras de minha vida não têm definições
Não se encontram em verbetes
Não têm sinônimos
Não são letras apenas, são palavras silenciosas
Que escrevo com as mesmas palavras de todos
Dizendo para mim o que eu entendo
Explicando para mim o que eu falo
Não acendo vela aos santos
(mas já acendi e não me sinto humilhado por isso)
amei decentemente uma mulher
(Um dia, um dia, por isso não morri)
já fui vagabundo, já fui valente,
triste também, alegre também
vi a morte rasgar o meu peito de dor
e a morte arrancar de meus braços
uma vida que eu trocava pela minha.
Vi, vi sim, vi lágrimas em meus olhos
(É verdade, eu olhei no espelho,
eram verdadeiras, eram lagrimas mesmo)
Diante de mim, vi o pavor,
o susto, o pavor, o susto, o horror
Vi o homem cão arrastar-se e pedir-me
Senhor da vida e da morte
Sua vida, um resto de vida
E eu disse não, é preciso saber dizer não
Vi também diante de mim o meu fim
E arrastei-me como um cão, igualzinho um cão,
Rabo entre s pernas,
Queria minha vida e consegui
Para depois enojar-me
17
Vê estes pés mutilados
São pés rasgados
O caminho não foi longo
Tinha pedra, tinha gente
Pedra e areia
Pedra e sol
Pedra e dor
Pedra e sangue
Nas casas de pedra
Homens de pedra e areia
Pedra e sol
Vê estes pés rasgados
São pés acabados
São pés sem esquecimentos
Perdi muito sangue na estrada
Cada gota levou mais de mim
Do que os anos que perdi
O rio desliza, procura o mar
E eu sou o rio que não desliza para o mar
Eu sou o rio que volta sobre si mesmo
Impossível?
Eu sou quem tenta o impossível.
Vê estas mãos inchadas
Estas mãos carinhosas!
Mãos que hoje apenas faz poemas
Secos, sem saber, poemas de um homem maldito
Malditos poemas iguais em tudo ao homem
Quem acredita que estou só
Muitos são os tristes
Os tristes são homens malditos
Homens sem rosto
Apagados num quarto cheio de espelhos
O horizonte funde-se neles mesmos
A loucura de nada pensar
A coragem de morrer vivendo
A senhora babaquice de amar
De todas estas misérias, eles são capazes
São capazes de até mesmo,
Vejam só quanta estupidez,
De dizerem a verdade
18
Ser poeta é ser triste
Triste destino do poeta
Ninguém vê um poeta
Sem envolvê-lo de dor
Poeta condecorado traz no peito
no lugar do coração
uma nuvem escura
e deixa na sua passagem
restos doloridos
lembrando de dores em rastros
de vidas que nunca viveram
Lá vai o poeta
vai para longe
onde ninguém chega
só, por onde passa
poucos arriscam
Só os poetas batem no peito
- Aqui jaz um coração
Mas... poeta é dor
a dor macerada
o estado de lassidez
Se for possível outra definição do homem
será possível outra definição do poeta
Os poetas devem esconder a alegria
Cantar a alegria do que já era
A infância perdida em meio a campos floridos
A amada nos braços do passado
Dos poetas alegres
saem falsos versos.
Nada falam além da melodia
Seus versos não são versos
Suas rimas rimam com a vida
São os mudos, são os construtores
do silêncio, da incapacidade, da agonia
19
O mundo lá fora me espera
Vou sair para o mundo
preparado para tudo
comprei muitas fantasias
li muitos romances
ouvi os homens que vivem no mundo
cantarem sonhos de outro mundo
Não vou recolher-me entre sonhos
Abrirei as portas com as minhas mãos
Sei que muitas vezes cada passagem
Será para a minha maior solidão
Não reclamo, eu quero pisar
Sobre o perigo, sobre o insuspeitado
Pararei, decerto, num bar de beira de estrada
Beber uma cereja, comer uns pastéis
Inquieto, no trabalho, farei minha obra
Bela?
Talvez
Talvez, profundamente útil
(ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah )
Nunca me doeram os pés e eu caminho muito
Nunca perdi o caminho,
Nunca fixei destino
De que me vale zanzar, viver por aí?
Sem destino, sem sentido, sem razão?
Mudarei meu comportamento
de acordo com o clima,
violento, bruto, estúpido,
sociável, amável, retórico
Não tenham pena de mim,
Tudo isto foi escrito de dia
Eu sou um homem
alegre
Todo verso que sai quer continuar
Com suas palavras, por outras mãos
Quanto aos romances, esperem, um dia sairão
Quis demais ser Hemingway, Rimbaud, Drummond
e não consegui sair de mim
vagabundo, materialista, exótico
Escrevia uma pagina no chão
beijando putas ingênuas
conhecendo cidades e países
representando nas ruas
minha façanha
de viver
Um viajante
Vivo minha vida, num mundo
Bastante desconhecido
e suficiente para o esmagamento
Que felicidade! Ser humano!
Bato em meu peito
E digo: Eu tenho um coração
Farei um colar de contas
e vou dependurá-lo
ao lado de uma miçanga azul
20
É quase nada
Uma migalha
Teus beijos que se espalham
Nas minhas devassidões
De tudo um pouco
Da vida, a alegria
Dos teus abraços,
Os pequenos lábios
Tudo enfim, quase nada
da vida fica em mim
No momento em que vais para longe
Levanto teu corpo, tua vez, um pouco...
De tudo um pouco
Dos teus lábios, apenas um beijo
Das tuas mãos, uma despedida
E em minhas mãos nada fica
21
Guardo para você
Tesouros esquecidos
Pelo desprezo dos vencidos
Que preferiram a vida.
Quem são os vencidos?
São homens insensatos
Eles deixaram suas casas
Abandonaram os antepassados
Estupidamente preferiram viver
A cidade dos vencidos está vazia
Na cama não tem colchão
As ruas assaltaram-lhes
Aqui e ali estão espalhados
ódios confeccionados em peças brilhantes
Da batalha, restam corpos expostos
quem obrigou-os à condição de vencidos?
Foi a terra, que cansou, gemeu, tremeu
E massacrou todas as belezas
Pregadas nas paredes
Ajuntando tudo deixado pelos vencidos
Amontoei um tesouro
Que guardo para você
sem vida
apenas um tesouro que vale menos que vida
Cultivo o ódio
Como a faca
Que fere
Igual a bomba
na hora da explosão
Como a bala
Que ultrapassa
O corpo que tomba
22
Você vai embora para o mundo
e volta para ver como vai o homem
que vai nascer nos próximos dias
Você quer esse homem
para ser seu
para dar-lhe outra infância
para dar-lhe o seio
Você irá pegá-lo pela mão
antes de trazê-lo mais uma vez
ao bico do seu seio
apontará ali e acolá
o mundo como um zoológico
o mundo como um circo
e a alegria que se compra
num parque de diversões
Veja isto
É uma pessoa humana
humana mesmo
Você me ensinará a amar de novo
E o amor que
aprenderei
será o único
pois você estará
sempre
com os lábios nos meus
lábios
as mãos nas minhas
mãos
para amar
para beijar
para dizer-me que já é hora
do passeio e da noite
23
Da janela, o mundo que eu vejo diante dos
sonhos
alargando-se em palmeiras,
em espaços azuis e verdes
encolhendo-se diante de minhas
mãos
que crescem, que
crescem
matam-me com um sonoro tapa
como matamos uma mosca
Da janela, por cima dos
muros
por cima da cadeira,
por cima da cadeia,
em direção aos céus
perseguindo-me antes
num passado
que faço todos os dias
de qualquer maneira
um passado
Para atingir a janela, basta um
vento
igual ao vento
empurra o calor
empurra o frio
levanta a poeira
poeira vermelha
poeira amarela
nas saias dela
cascalhos
e a terra dura
24
Vou despir tua pele
tirar dos teus olhos este
olhar
tirar das tuas orelhas estes
brincos
Quero fazer-te, nua para mim
Arrancar com alicate as
palavras
que se pregaram em teu seio
tornar-te nua para
mim
atingir teus nervos
Quero ver-te nua, sem
roupa
sem óculos, sem brincos,
sem as peças de ilusões que te cobrem
Nua, para mim, eu sei que tu continuas
25
Alguém se mira no espelho
Passa as mãos na camisa
Ficou acanhado ao se ver
Não é vergonha, não
Hábito
É a mesma coisa
quando a gente encontra
uma pessoa, uma mulher
que a gente gosta
ficamos meio tímido
meio sem jeito,
meio com vontade de correr,
meio com vontade de agarrar
26
Alguém se mira no espelho
Quantos espelhos tem aqui?
São tantos.
Por que tantos?
Ele só carrega
Um desses de bolso,
redondo
com foto de mulher nua
Quem deixou no espelho um olhar?
Esqueceu também no chão suas ilusões.
Alguém se mira no espelho
Alguém se mira no
esquecimento
passa as mãos na mulher
nua
que não é mais sua, nem da
rua
É mulher da lua, dos sonhos, da canção e da fuga.
Ninguém vê você diante do espelho
Aproveito, olho o seu corpo imenso,
Sua altura.
Faça pose, ninguém vê,
Aproveite, faça careta
Porra, que nariz!
Ah! Elas gostam
Nariz e sexo se relacionam
Pelo menos na intensidade.
Na inteligência,
mais oxigênio
Guarda, guarda tua imagem
Vem gente aí
Lá, lá, lá, lá, isto!
Penteia o cabelo.
Guarde o espelho no bolso
onde a esconde.
27
Aquela que vem de longe tudo merece
Que me abre os braços hospitaleiros
Me oferece sua cama e seus sonhos
Aquela que traz no corpo apenas a idade
Ela diz que eu sou o mesmo
Seus lábios estão trêmulos
Aquela que as mãos transformaram-se
Em pedra de fogo e de dor
Quer ir embora.
Sua passagem, agora, é acidente
Não foi possível voltar
E será impossível parar
Ela prega-se em mim, passos arrastados
Depois de tantas noites e pousos
Ela me mostra as paredes de sua vida
E quer me impedir de ir
Confesso perante o que sobrou de mim
De ser tudo o que nasceu de mim
Acuso-me de ser tudo o que matei.
28
Eia!
Garimpeiro Juca me empreste o teu destino
Deixa-me experimentar a tua sorte
Não passa ninguém.
Nenhuma caravana
Tem coragem de me emprestar o seu destino?
29
Assim como a terra corre debaixo dos meus pés
o horizonte foge sem
descanso
nunca seremos bons amigos
sempre à distancia
impede a aproximação e qualquer palavra
fugindo sem descanso, ando atrás do
horizonte
que é uma mulher de belos pares de seios tímidos
de repente, a agonia que sai de
mim
corre como um turbilhão
que vai de encontro aos quatro muros da prisão
e se desfaz
em poços estagnados
sujando meus sapatos imundos
a guerra matou muitos em mim
muitas mortes aconteceram em meu peito
conheço as mortes deixadas pela guerra
e, por isso, odeio
e, por isso, quero vingança
30
Não posso amar
ao deus-dará
todas as mulheres que
aparecem
Todas as mulheres
que vieram para os
meus
braços só quero que depois me
deixem
ao deus-dará
31
Cansado de despir a mim mesmo,
despi o chão, a casa, a mulher
louca
e no chão encontrei seixos
falando de meus mestres
Na casa, encontrei quartos
calando sons mal articulados
(eram carinhos)
e na louca encontrei os seios
de Helena como eram antes
maminhas duras e sensíveis
32
Senhor, se és tudo e todos
por favor, seja menos complicado
Devolva-me o que me pertence
Meu ser total
Deixe-me em paz
33
Os sons da noite vagam
As estrelas, somente as
estrelas
e o som da música
que por vezes é tão baixo
que parece sumir
Outras vezes os
sons
são maiores e mais
brilhantes
do que as estrelas
34
A alta montanha
A casa ao pé da montanha
A montanha era verde
A casa amarela
Um pássaro preto sobrevoava
o verde e o amarelo
O meu ódio era grande
Eu era tranqüilo
O ódio negro
Eu, um bom amigo
Uma história corria
Do ódio para mim
Um dia a terra tremeu
O verde tudo
engoliu
menos o pássaro preto
menos a minha história
A angústia de um mundo abafado
O homem reduzido
Redução na dor
Reduz o homem a um ser que ele não é
Resta um ser mesquinho
De noite, na cidade
as luzes apagam-se
uns e outros saem da sala
e veem o céu estrelado
a menina não sabe o
nome
daquela estrela
longe da cidade,
eu vi apagarem as luzes
e as estrelas iluminarem as massas
A escuridão capturou-a
A cidade espichava-se pelos morros
- Peguei o que existe naquela serra
- Nada, minha filha. Lá tem um
pinheiral
bonito, as luzes das estrelas não dão para
mostrá-la.
- Se fosse a luz da lua...
35
um sentimento passado, velho e cansado
um sentimento calado, cego e vago
tornou-se humano e igual a um homem
viveu e tornou-se trôpego
cansado calou-se
não enxergava o lugar
onde afundara seu corpo rígido
Um lugar calmo, um lugar onde o homem
se sentia só, um lugar vago
igual ao homem ou igual o homem ao
sentimento
a matéria transforma-se no que não é
matéria
e o que não é matéria será matéria.
36
Como até o pássaro
preto
não gosta de
cantar
na manhã
em que todos os pássaros cantam
Ouça os sons de todas as vozes
Conserve sua atenção
Algo eles dizem
signific
encanto
na manhã
provavelmente o
soar
monótono do
tambor
Incansável, o mesmo
Sempre o mesmo
37
Tenho fugido da beleza
que encontro aqui e ali
Fujo com medo do domínio
do descompasso do ser
e não sei se é certo
A terra não impede o vulcão
de lançar suas lavas
fujo de acompanhar no
voo,
o pássaro
e a manhã em que as nuvens
correm
apressadas para a tarde
o gramado, o vento
fujo de paredes
e não me recolho em nada
Eu não sou um espaço
em mim não existe abrigo de nada
Sou como a substância
por isso, minha fuga é uma fuga sem
caráter
nada de desespero ou alegria
37
Arranco de mim
todo dia
a sujeira das horas
e vou encontrar-me com você
Rasgo as imagens
de um dia
Na água, corre e
fumega
a matéria apodrecida
um sonho de felicidade
um nome de mulher
uma alegria do passado
Vou de encontro às horas da tarde
atravesso corredores baixos
corredores brancos de cal
passo por celas e escadas
Vou de encontro às seis horas com você
38
À Julieta Bártolo
Irmanzinha,
escondo todo amor
dentro dos meus papéis
os papéis, envelopados,
estão bem guardados
O envelope envelhece
O papel envelhece
Eu também envelheço
Você eu amo
Sua imagem ainda é a mesma
Dentro das palavras
Dentro das pessoas
Em que me revelas
Tua alegria, tua tristeza
Eu, então, procuro abraçar
Teu corpo, tua imagem
que desaparece no corpo de uma mulher
Quando outra vez te encontro
eu estou mais deformado
você, a mesma
Irmanzinha,
Me dê teu sorriso
E tome, minha vida
Vamos juntos, a aventura me chama
Eu vou mais longe do que a tua
curta
caminhada
Ficarás onde a luz não fatiga
39
Um homem sentado diante do corpo de uma mulher nua,
ainda é cedo,
no hotel não há ninguém
acordado
até a mulher dorme
Ele tira o lençol que cobre o corpo nu que ainda
dorme
O lençol está quente
E a noite
Enrola-o em suas mãos
Olha o corpo feminino
- Não é possível esta mulher aqui comigo
Tem troço errado,
ela deve ser louca,
tarada ela não é
Como eu entender uma bagunça dessas?
O homem olha a rua
No asfalto molhado
luzes brilham atingem as casas,
muros e portas de um colorido mutável
- Esta mulher pode estar preparando uma.
sim senhor, vai ver que ela é menor
Se for, estou fudido.
Vou é tratar de me mandar
40
I
Antes, fui um aventureiro
que abandonou a montanha
Andando pouco a pouco
Seus olhos por vales e vidas
II
Ouço passos lá fora
Ouço passos no meu coração
São passos de quem corre
Até uma abraço de quem
nunca mais esperavas ver
III
Deram-me uma máscara
E um sorriso de felicidade
Tudo pareceu tão natural
Que o espelho convenceu-me
Eu era alegre
Ri e despertei em outros a alegria
Antes que a festa acabasse
Vieram me tirar a máscara,
Arrancaram-me o coração
IV
Rasgo minha entranhas
Procurando meu destino
Entre meus dedos
escapam
minhas entranhas e minha vida
V
Entram na escuridão
Meu sangue e meu corpo que lateja
Entram em seguida
Os braços cortados
minhas mãos separadas
uma calça cinza
entram na escuridão
dois olhos que
ninguém
diz se são de tigre ou de anjo
VI
Não sou um homem
livre
Antes de ser qualquer
coisa
Serei livre ou não
serei nada
VII
Não há ironia em meu olhar
Você enganou-se desta vez
Há cansaço
Não há dor em meu olhar
Há uma pequenina
história de amor
VIII
Não acompanho ninguém
Se erguem bandeiras
Desafiam-me a rebeldia
Se erguem palavras-de-ordem
Dão-me vigilância
Somente acompanho até o monte
dali volto de novo
para meu canto
Sou atalaia
Sempre disposto a largar tudo de
novo
todas as vezes em que for
necessário
ir
com alguém até o monte
41
Onde
está a liberdade?
Um corredor branco que parece e não é hospital
e o céu
grades,
janelas de grades,
portas de grades
portas pesadas
e o céu
homens uniformizados, uniformes, vestidos de azul
e o céu
um rosto perdido,
uma palavra tropeçando na língua,
e o céu
uma história que daria mil romances
e o céu
um crime esquecido,
uma valentia inútil,
um olhar perdido
e o céu
retratos de mulheres,
de manequins
de artistas,
fotos, fotos do time
e o céu
conversas no corredor,
conversas no pavilhão,
no campo
e o céu
Um retrato de um menino brincando
com um cachorro de pano
e o céu
O radio a toda altura,
o jardim para cuidar, a consulta
e o céu
a raiva e o ódio entram para a cela as cinco horas
e o céu
uma carta sobre a mesinha, vai segunda-feira para
ela
e
o céu
42
I
O menino encosta a boca na vidraça
Brinca e desenha no vidro
Aos poucos apaga toda a cena
Nem a luz atravessa a janela
Ao brincar, o menino apaga
Tudo o que depois da vidraça existia
II
Veio como uma criança
Enchendo-me de perguntas
Amortecido pela beleza,
Baralhava-me ao som de sua presença
Ela me olhava com carinho
E eu envergonhado, desviava
Minhas mãos para os meus lábios
III
Um mar – chegando na praia
Meus sonhos - chegando no mar
O barco correndo para o mergulho
no horizonte ou no fundo
IV
Um poema não é uma carta
Escreve amanhã a introdução do
primeiro
romance que ultrapassa o
poema
e que não é uma carta
Fale a verdade, cante as musicas que você sabe
Fale a verdade, fale sem rodeios
43
Se as minhas mãos perderam a memória
do seu corpo
se as minhas mãos não sabem a macieza
de tua pele
se as minhas mãos não conservarem a umidade
de teu suor
podes demorar onde estás,
nunca
fostes minha.
44
aprendeu no mar
que o mundo é frágil
que o vento é
forte
seus passos na rua
tinham o
balanceado
de quem viaja num mar
revoltoso
É um marinheiro, diziam
Veem o bamboleio, apontavam
Balanceia como um
marinheiro
Aprendeu no mar
a se equilibrar nas ruas
45
o viajante jogou as malas sobre o
balcão
meio-dia e apenas o porteiro
- um quarto
- um quarto
o viajante não falou que estava
cansado
o sol estava quente
46
Duvido que alguém deixasse
Marlene passar sem mais nada
Ela era minha alegria
Quando ela saia
seu sorriso errava sobre o seu corpo
um sorriso errante
vagabundo, sensual,
passeava em seus cabelos
antes de espalhar-se pelos
lugares e perdia-se nas nuvens.
Duvido que qualquer um
não cantasse aquela mulher
existem mulheres, meu
amigo,
que não podem pertencer a um avaro
47
Zé e Dona Fé
É preciso acreditar em Dona
Fé
mulher grande,
de tamanho maior, muito
maior,
quando a gente lembra dela
para falar ao anoitecer.
Dona Fé conhecia as
dores
dos
homens,
trouxe os filhos em torno da
mesa
no almoço e na janta,
duas vezes por dia,
mesmo depois de
casado,
Zé vinha de longe,
muito longe,
amar duas vezes por dia.
48
talvez seja necessário eu derrubar
paredes
talvez!
talvez seja necessário fugir
talvez!
talvez seja necessário matar para comer
talvez!
talvez seja necessário abandonar a casa
talvez!
49
A terra debaixo dos meus
pés
o mar debaixo dos
navios
há pedaços da
noite
caídos no chão
há pedaços de estrela
na poeira do teu
paletó
era um pássaro
tenaz
e sua luta pior
deu tudo de si
pela liberdade
e nas grades da sua
prisão
quebrou suas asas
Era uma ave que quebrou as
asas
contra a grade da tirania
50
talvez seja uma
mulher
vestida de cinza
talvez seja uma
mulher
coberta de areia
talvez seja uma mulher
parida nos lençóis
talvez seja uma
mulher
extraída do cimento
talvez... quem sabe?
ela seja uma bela mulher
Esta esperança é dura
Não há vento que a leve
Pesada ela se espicha
Se
agarra à minha vida
51
H, soube de suas lagrimas
Tinha ganas de chorar também
Fiquei triste em sua tristeza
Não chorei
Não permaneci triste
Falta de costume
O demônio negou-me lágrimas
Foi, H, como se eu tivesse chorado
Sua felicidade para mim é
maior
do que o mundo onde vivem os gigantes
Os burros não podem atrapalhar
Senão os vestiremos de camisolão
Ninguém irá tumultuar a sua felicidade
Eu e o Batira
estamos atentos
Tenho orgulho de você
Do seu orgulho.
Da sua bondade
Porque, sem o dizer, é melhor que nos
vença, tem que vencer
Suas fibras são melhores
Não chore, não se entregue
Seus sentimentos são puros
Abrace seu filhinho
Não chore. Não importa à incompreensão
Compreendo, sua felicidade não isola ninguém
Seja feliz.
52
Voltou, desgraçado
voltou para deitar
voltou para um lugar
pequeno
voltou porque me conhece
porque o sol brilha
porque há cinzas no chão
Eia! Seus seios possuem nafta!
Eia! Senhores, onde eu me perco.
Veem ao longe uma enseada
Posso garantir que os
lucros
Serão superiores
Os programas aí estão
Assim
caminha um homem honrado
52
Teriam que ser poucas
palavras
mas não havia jeito
de ser parcimonioso
com as palavras
elas surgiam de dentro do
guarda-roupa
elas surgiam de debaixo da
cama
amontoavam-se em nossa
frente
precipitavam-se em perseguição
a nós, incautos e
broncos,
eu sentado no chão
empolgava-me com as
histórias
e tudo eram palavras
saindo para as
paredes
dependuradas no arame para secar
uma calça, uma
palavra
uma meia, uma palavra
para contar o seu caso Joaquim
para secar
teriam que ser poucas as
palavras
mas, impossível, não ser
loquaz
as palavras estavam
aí
sedutoras, trazendo as
pessoas
para a gente, a formar,
apesar de nossa
tristeza,
esplêndidas sedutoras
alegres aventureiras,
Pois é,
é isso mesmo
53
Felício Belisária Bili
- O pai de Felício é
que era português! Dizia minha mãe.
Todas estas palavras
agarram-se nos pais de Felício e de Belisária, agarram-se nas construções
isoladas da penitenciária-cemitério.
Os poemas são da
Irmãzinha Maria, Julieta Bártolo, e do companheiro de ser só, o bom Pássaro
Preto
25.09.2002 20.06.2020
16.04.2022