Exercício de sobrevivência
Rufino Fialho Filho
Análise de um perdido fazer poético
Trinta anos depois...
Pai acabara
de morrer e a casa já fora desmontada, as paredes tinham as marcas e as sombras
dos móveis retirados.
De um lado e
de outro, nos quartos, nos corredores, aquelas eram as marcas da casa
desmontada, a casa de pai, a casa do meu pai, a casa onde ele e mãe moraram
grande parte dos últimos vinte anos. Antes moraram na rua dos Inconfidentes, na rua Cláudio Manoel, na Savassi e na rua Safira, no Prado.
Ali, naquela
rua íngreme do bairro São Lucas, rua Coronel Fulgêncio, com um espaço para um
jardim com as plantas de mãe, os dois viveram seus últimos anos.
Um dia mãe
sairia para o hospital, onde trataria de dores violentas na coluna. Fato comum.
Quando as dores se tornavam insuportáveis, seus médicos a internavam.
Daquela vez,
ela sairia de casa e enfrentaria um longo período de coma. Mãe morreu no dia 24 de dezembro de 1996. Seu enterro foi no natal,
no dia 25. Chovia.
Mais de
trinta anos depois da prisão... todos os cadernos que enviara dos cárceres
estavam ali, conservados, em envelopes bem fechados, volumes e volumes de
escritos.
Impressões
sensíveis como diria Proust. Memórias involuntárias que chegavam naqueles
papéis. Experiências intensas e profundas, reminiscências, como pensava Proust,
ressurreições do passado, "lembranças mortas, lembranças esquecidas".
E agora?
Era muito
material que sob a forma poética passava pela censura. Agora chegavam às minhas
mãos para se fazer poesia? Para facilitar a memória ou para trabalhar ou para
transformar-se mesmo em poesia? Eram mais registros de uma época e de uma
sobrevivência.
Não me atrevia a dar àquele material o nome de poesia e, à falta
de títulos, ficou a palavra poesia. Era a palavra que garantia a sobrevivência
e a parca lucidez.
Nascera a resistência ainda quando aquelas palavras surgiam,
palavras juntadas a palavras, escritas e reescritas, reescritas muitas vezes e
quase sempre não em busca de um perfeito fazer poético, da métrica, objeto de
estudos, naquela ocasião, permanentes, tendo como livro básico e livro mestre a
obra de Dante, principalmente a Divina Comédia, uma aventura na história da
Itália.
As palavras eram juntadas e as frases golpeadas, lascadas,
partidas. Àqueles pedaços de frases, muitas vezes interrompidos, sem qualquer
sentido métrico, jamais poderia chamar de versos.
Nem me aventuraria a dizer versos
livres, não considerava, objetivamente, aquelas frases montadas como
versos. A beleza, nunca alcançada dos sonetos, era o mote. O objetivo: a
perseguição contínua.
Um dia, quem sabe, chegaria ao mais belo de todos os fazeres
poéticos: o poema. O fato é que se contestava aquelas palavras capturadas como
poesia, jamais admitiria o sujeito poeta.
Não tinha sentido e nem havia verdade.
A
argumentação reduzida, simplificada, sendo
direto:
Tudo aquilo,
peça por peça, linha por linha, palavra por palavra, era um gigantesco exercício de sobrevivência, puro
exercício de sobrevivência.
Depois de
cinco anos, de longos e traumáticos cinco anos de prisão, a liberdade. Estava
livre. Sobrevivera.
Todo aquele
material, enviado da prisão, havia, uma parte, sido reunida em cadernos. Outros
ficaram dispersos.
Todos
chegavam agora às minhas mãos, mais de trinta anos depois, logo após a morte do
meu pai. Ele morreu na primeira hora do
dia 7 de janeiro de 2002.
Todos tinham
ido embora, a casa estava vazia. Voltaria sempre ali e aquele lugar passou a
ser mais do que um refúgio, um lugar de um inusitado reencontro.
A primeira
parada estava ali. Desafio.
Quando
avaliara o que fazer, nos primeiros dias de liberdade, ao sair da prisão, em
janeiro de 1975 (*) decidira que
aquele recurso que utilizara para sobreviver (a poesia) e que me permitira
sobreviver, seria apenas uma referência, um ponto de referência essencialmente
individual. Sem outra pretensão que o resgate, uma memória sentimental.
Memórias
sentimentais sem valor? Não olhava sobre este aspecto. Também não tinha esta
ideia. O valor não era externo, nem trabalhara neste sentido. Era como um
recurso, um meio e limitado ao exercício da sobrevivência. Ao longo do tempo
esquecera-o na casa do meu pai e pai guardara tudo.
Havia
esquecido daquele material. Foi uma surpresa.
Observei ao manusear alguns papéis que eles ocupavam um espaço de fácil
acesso e supus, com muita convicção, que eles eram acessados de quando em vez.
Hábito de quem gosta de ler, reler. Perdi as contas de quantas vezes pai relera Brás Cubas.
Alguns
estavam numa ordem que teria sido definida muito recentemente e tinham a ver
com os fatos políticos internacionais, como a tentativa de síntese da obra de
Miguel Angel Astúrias. Algo feito para me lembrar de um dia voltar a reler
Astúrias do Wek-end na Guatemala...
O fato
concreto: o que fazer com este material?
Não poderia
chamar-lhes de poesia e nem de poeta ao seu autor. Editar. Nem cogitava. Já
trabalhava para uma editora e vacinara contra a Ilusão Literária.
O que faria
voltar-me àquelas reflexões era a atualidade dos caminhos encontrados em uma
nova situação para um novo exercício de sobrevivência tão complexo quanto a
situação em que se encontra um prisioneiro de consciência, um opositor de
ideias.
Agora era a
sobrevivência diante daquela realidade de perdas, a perda de filhos e da
família com a minha separação, a perda com a morte de mãe e de pai, mais ainda
o que foi o trágico e desesperador acompanhar, dia a dia, o fim de um homem. Este
homem que se acabava, que se aproximava da morte, um tanto pela idade, quase 90
anos. Um tanto pelas inúmeras doenças que o fragilizava, desde os anos de
menino. Este homem, ao meu lado, era o meu pai.
Estávamos
ali, eu e o meu pai. Às vezes grandes silêncios nos cercavam. Longos olhares,
longos e demorados olhares, longos e dolorosos silêncios, nem sempre dolorosos,
muitas vezes ternos, muitas vezes interrogativos, muitas vezes preparatórios de
um definitivo quase riso até...
-
Vamos
jantar, agora.
E o jantar
servido, sua sopa quente, muito quente, gostosa.
-
Sirva mais,
meu filho.
Seu olhar
carinhoso, seu olhar de ternura. Um alimento abençoado, cheio de verdades e
éramos dois homens, adultos. Ele com toda a sua vida, com a sua permanente
saudade de mãe e com a sua certeza de que seu fim como homem, como um ser vivo,
aconteceria... um momento que ele sabia próximo e para o qual estava preparado.
Seus gestos cada vez mais lentos e olhares cada vez mais distantes
aparentemente perdidos.
Decidi
assumir uma atitude profissional.
Trinta anos
depois e diante de todo o material produzido, dezenas de cadernos, quase uma
centena e muitas anotações avulsas.
Nestas
últimas décadas trabalhei textos jornalísticos, produzia e editava. Acionaria
esta experiência para pelo menos agrupar e dar ordem aos textos.
Era o
respeito por aquele autor de pouco mais de 20 anos, que, para sobreviver aos
tempos de chumbo da ditadura militar, usara como recursos o simular fazer poesia e ser poeta.
Fingira que
aquilo era poesia e que também seria um poeta. Por que poesia se duvidávamos em
chamar aquelas anotações de poesia? Que vinham misturadas com versos da Divina
Comédia e com uma cópia completa de Morte e Vida Severina, de João Cabral de
Melo Neto, poeta admirado pelo carcereiro nordestino, cujos olhos enchiam de
lágrimas declamando estrofes inteiras - "minha mãe conheceu João Cabral,
trabalhou para a família dele e de tanto ela declamar, acabei decorando".
No cárcere
da Polícia Federal, na praça Marechal Âncora, ele me emprestou o livro para que
copiá-lo.
Na prisão,
as alternativas estavam nos trabalhos manuais, nas leituras, nas
correspondências e na própria cela, no espaço físico de poucos metros
quadrados, onde cabia uma cama, um vaso sanitário e uma torneira.
Um pequeno
espaço?
A
engenhosidade do homem transformara aquelas limitações físicas em desafios e as
celas transformavam-se através de fotos e de audaciosas decorações ou
adaptações.
Celas
transformavam-se em navios, em belas paisagens ou belas mulheres. Depósito de
sonhos. Nas paredes cabiam tudo, registros, diários, sentenças, marcas para a
memória. Nas paredes, plantei meus primeiros exercícios poéticos e a
sustentação de minha revolta.
Castro
Alves. Navio Negreiro.
Seus versos
escritos, desenhados na parede, como símbolo, como emblema, como bandeira.
Todos
gostavam até mesmo os carcereiros. Até o diretor da prisão, o Belial(**), já em
Linhares, Juiz de Fora, parava na cela para ler e recitá-los às visitas.
Não gostei.
Ficaram lá
por respeito aos belos versos do baiano.
As outras
alternativas? Cartas? Não tinha nenhum talento para cair nesta arapuca. A
correspondência era a permanente captura do preso. A censura ia além do simples
registro. O risco era total. Podia se tornar a intimidade revelada, o ser
revelado e todas as nossas forças ou fraquezas. Jamais usaria a correspondência
como uma forma de contato e de sobrevivência.
A carta que
vai e a carta que chega entravam na engrenagem da prisão. É um instrumento do
Estado policial e é tão forte na moldagem do preso quanto a disciplina, os
horários e a voz do carcereiro. Não apenas o que se diz numa carta.
Principalmente, para quem vai a carta ou quem manda.
Restou como
única alternativa a correspondência comigo mesmo. O escrever para mim mesmo.
Este era o mais puro sentido daquelas palavras agrupadas simulando versos e
versos simulando poemas, podendo mesmo receber, precariamente, o título de
poesias.
Assim, além
de cópias de poemas, no meio de tantos versos de Dante, copiei toda a poesia de Morte e
Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto.
O eu era o
destino daquela estranha, esperta e inocente correspondência. Não chegavam a
ser cartas e de poemas tinham pouco mais que o esqueleto.
Seguiam os
cadernos, lidos e autorizados pelo controle policial, que não tinha nenhuma
paciência com poesia.
Exercícios
para a sobrevivência.
Acreditava-me
capaz de entender o mundo e capaz de libertar-me dentro daquele espaço que me
prendia e que limitava os meus passos, limitava meus movimentos e a minha
sonhada corrida até a exaustão, até a prostração, até o último fôlego.
Se a sonhada
corrida poderia me levar para fora e o exercício de caminhar três quatro passos
e tão somente três, quatro passos me davam a certeza de que estaria preparado
para correr dez quilômetros todos os dias.
Outro era o
desafio.
Agora, a
corrida para dentro, para a solidão, o estar comigo. Eu e eu, o conhecer-me e o
dialogar intenso, submetendo-me, submeter, sujeito, o adjetivo latino, sub,
conhecer o sujeito que eu poderia dominar, crescer, libertar.
Esta era a
mais difícil corrida, o desafio de encontrar-me e de não enlouquecer. Aquele
fazer supostamente poético foi o maior achado.
A poesia era
poesia independente de minha avaliação e leitura cansativa para os meus
carcereiros.
A beleza é
um dom que entranha todos os homens e é a arma mais consistente para o
entendimento.
O que os
poetas da música popular fizeram para derrubar a ditadura nenhum partido,
movimento político organizado ou guerrilha conseguiram.
A poesia
venceu a tortura, o medo e derrotou a ditadura militar. E nos devolveu a liberdade.
(*) Por que
a interrogação? A prisão permanecia, acompanhava e libertar-se desta prisão
tornou-se um exercício diário na "liberdade" e para a conquista
diária da liberdade.
(**) Belial
como chamávamos o diretor da Penitenciária,
Waldelar Mendonça Pettersen