quinta-feira, 9 de julho de 2020

RESSURREIÇÕES DE UM PASSADO









Exercício de sobrevivência



Rufino Fialho Filho




Análise de um perdido fazer poético

Trinta anos depois...

Pai acabara de morrer e a casa já fora desmontada, as paredes tinham as marcas e as sombras dos móveis retirados.

De um lado e de outro, nos quartos, nos corredores, aquelas eram as marcas da casa desmontada, a casa de pai, a casa do meu pai, a casa onde ele e mãe moraram grande parte dos últimos vinte anos. Antes moraram na rua dos Inconfidentes, na rua Cláudio Manoel, na Savassi e na rua Safira, no Prado.

Ali, naquela rua íngreme do bairro São Lucas, rua Coronel Fulgêncio, com um espaço para um jardim com as plantas de mãe, os dois viveram seus últimos anos.

Um dia mãe sairia para o hospital, onde trataria de dores violentas na coluna. Fato comum. Quando as dores se tornavam insuportáveis, seus médicos a internavam.

Daquela vez, ela sairia de casa e enfrentaria um longo período de coma. Mãe morreu no dia 24 de dezembro de 1996. Seu enterro foi no natal, no dia 25. Chovia.

Mais de trinta anos depois da prisão... todos os cadernos que enviara dos cárceres estavam ali, conservados, em envelopes bem fechados, volumes e volumes de escritos.

Impressões sensíveis como diria Proust. Memórias involuntárias que chegavam naqueles papéis. Experiências intensas e profundas, reminiscências, como pensava Proust, ressurreições do passado, "lembranças mortas, lembranças esquecidas". E agora?

Era muito material que sob a forma poética passava pela censura. Agora chegavam às minhas mãos para se fazer poesia? Para facilitar a memória ou para trabalhar ou para transformar-se mesmo em poesia? Eram mais registros de uma época e de uma sobrevivência.

Não me atrevia a dar àquele material o nome de poesia e, à falta de títulos, ficou a palavra poesia. Era a palavra que garantia a sobrevivência e a parca lucidez.

Nascera a resistência ainda quando aquelas palavras surgiam, palavras juntadas a palavras, escritas e reescritas, reescritas muitas vezes e quase sempre não em busca de um perfeito fazer poético, da métrica, objeto de estudos, naquela ocasião, permanentes, tendo como livro básico e livro mestre a obra de Dante, principalmente a Divina Comédia, uma aventura na história da Itália.

As palavras eram juntadas e as frases golpeadas, lascadas, partidas. Àqueles pedaços de frases, muitas vezes interrompidos, sem qualquer sentido métrico, jamais poderia chamar de versos.

Nem me aventuraria a dizer versos livres, não considerava, objetivamente, aquelas frases montadas como versos. A beleza, nunca alcançada dos sonetos, era o mote. O objetivo: a perseguição contínua.

Um dia, quem sabe, chegaria ao mais belo de todos os fazeres poéticos: o poema. O fato é que se contestava aquelas palavras capturadas como poesia, jamais admitiria o sujeito poeta.

Não tinha sentido e nem havia verdade.

A argumentação reduzida, simplificada, sendo  direto:

Tudo aquilo, peça por peça, linha por linha, palavra por palavra, era um gigantesco exercício de sobrevivência, puro exercício de sobrevivência.

Depois de cinco anos, de longos e traumáticos cinco anos de prisão, a liberdade. Estava livre. Sobrevivera.

Todo aquele material, enviado da prisão, havia, uma parte, sido reunida em cadernos. Outros ficaram dispersos.

Todos chegavam agora às minhas mãos, mais de trinta anos depois, logo após a morte do meu pai. Ele morreu na primeira hora do dia 7 de janeiro de 2002.

Todos tinham ido embora, a casa estava vazia. Voltaria sempre ali e aquele lugar passou a ser mais do que um refúgio, um lugar de um inusitado reencontro. 

A primeira parada estava ali. Desafio.

Quando avaliara o que fazer, nos primeiros dias de liberdade, ao sair da prisão, em janeiro de 1975 (*) decidira que aquele recurso que utilizara para sobreviver (a poesia) e que me permitira sobreviver, seria apenas uma referência, um ponto de referência essencialmente individual. Sem outra pretensão que o resgate, uma memória sentimental.

Memórias sentimentais sem valor? Não olhava sobre este aspecto. Também não tinha esta ideia. O valor não era externo, nem trabalhara neste sentido. Era como um recurso, um meio e limitado ao exercício da sobrevivência. Ao longo do tempo esquecera-o na casa do meu pai e pai guardara tudo.

Havia esquecido daquele material. Foi uma surpresa.  Observei ao manusear alguns papéis que eles ocupavam um espaço de fácil acesso e supus, com muita convicção, que eles eram acessados de quando em vez. Hábito de quem gosta de ler, reler. Perdi as contas de quantas vezes pai relera Brás Cubas.

Alguns estavam numa ordem que teria sido definida muito recentemente e tinham a ver com os fatos políticos internacionais, como a tentativa de síntese da obra de Miguel Angel Astúrias. Algo feito para me lembrar de um dia voltar a reler Astúrias do Wek-end na Guatemala...

O fato concreto: o que fazer com este material?

Não poderia chamar-lhes de poesia e nem de poeta ao seu autor. Editar. Nem cogitava. Já trabalhava para uma editora e vacinara contra a Ilusão Literária.

O que faria voltar-me àquelas reflexões era a atualidade dos caminhos encontrados em uma nova situação para um novo exercício de sobrevivência tão complexo quanto a situação em que se encontra um prisioneiro de consciência, um opositor de ideias.

Agora era a sobrevivência diante daquela realidade de perdas, a perda de filhos e da família com a minha separação, a perda com a morte de mãe e de pai, mais ainda o que foi o trágico e desesperador acompanhar, dia a dia, o fim de um homem. Este homem que se acabava, que se aproximava da morte, um tanto pela idade, quase 90 anos. Um tanto pelas inúmeras doenças que o fragilizava, desde os anos de menino. Este homem, ao meu lado, era o meu pai.

Estávamos ali, eu e o meu pai. Às vezes grandes silêncios nos cercavam. Longos olhares, longos e demorados olhares, longos e dolorosos silêncios, nem sempre dolorosos, muitas vezes ternos, muitas vezes interrogativos, muitas vezes preparatórios de um definitivo quase riso até...

-          Vamos jantar, agora.

E o jantar servido, sua sopa quente, muito quente, gostosa.

-          Sirva mais, meu filho.

Seu olhar carinhoso, seu olhar de ternura. Um alimento abençoado, cheio de verdades e éramos dois homens, adultos. Ele com toda a sua vida, com a sua permanente saudade de mãe e com a sua certeza de que seu fim como homem, como um ser vivo, aconteceria... um momento que ele sabia próximo e para o qual estava preparado. Seus gestos cada vez mais lentos e olhares cada vez mais distantes aparentemente perdidos.

Decidi assumir uma atitude profissional.

Trinta anos depois e diante de todo o material produzido, dezenas de cadernos, quase uma centena e muitas anotações avulsas.

Nestas últimas décadas trabalhei textos jornalísticos, produzia e editava. Acionaria esta experiência para pelo menos agrupar e dar ordem aos textos.

Era o respeito por aquele autor de pouco mais de 20 anos, que, para sobreviver aos tempos de chumbo da ditadura militar, usara como recursos o simular fazer poesia e ser poeta.

Fingira que aquilo era poesia e que também seria um poeta. Por que poesia se duvidávamos em chamar aquelas anotações de poesia? Que vinham misturadas com versos da Divina Comédia e com uma cópia completa de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, poeta admirado pelo carcereiro nordestino, cujos olhos enchiam de lágrimas declamando estrofes inteiras - "minha mãe conheceu João Cabral, trabalhou para a família dele e de tanto ela declamar, acabei decorando".

No cárcere da Polícia Federal, na praça Marechal Âncora, ele me emprestou o livro para que copiá-lo.

Na prisão, as alternativas estavam nos trabalhos manuais, nas leituras, nas correspondências e na própria cela, no espaço físico de poucos metros quadrados, onde cabia uma cama, um vaso sanitário e uma torneira.

Um pequeno espaço?

A engenhosidade do homem transformara aquelas limitações físicas em desafios e as celas transformavam-se através de fotos e de audaciosas decorações ou adaptações.

Celas transformavam-se em navios, em belas paisagens ou belas mulheres. Depósito de sonhos. Nas paredes cabiam tudo, registros, diários, sentenças, marcas para a memória. Nas paredes, plantei meus primeiros exercícios poéticos e a sustentação de minha revolta.

Castro Alves. Navio Negreiro.

Seus versos escritos, desenhados na parede, como símbolo, como emblema, como bandeira.

Todos gostavam até mesmo os carcereiros. Até o diretor da prisão, o Belial(**), já em Linhares, Juiz de Fora, parava na cela para ler e recitá-los às visitas.

Não gostei.

Ficaram lá por respeito aos belos versos do baiano.

As outras alternativas? Cartas? Não tinha nenhum talento para cair nesta arapuca. A correspondência era a permanente captura do preso. A censura ia além do simples registro. O risco era total. Podia se tornar a intimidade revelada, o ser revelado e todas as nossas forças ou fraquezas. Jamais usaria a correspondência como uma forma de contato e de sobrevivência.

A carta que vai e a carta que chega entravam na engrenagem da prisão. É um instrumento do Estado policial e é tão forte na moldagem do preso quanto a disciplina, os horários e a voz do carcereiro. Não apenas o que se diz numa carta. Principalmente, para quem vai a carta ou quem manda.

Restou como única alternativa a correspondência comigo mesmo. O escrever para mim mesmo. Este era o mais puro sentido daquelas palavras agrupadas simulando versos e versos simulando poemas, podendo mesmo receber, precariamente, o título de poesias.

Assim, além de cópias de poemas, no meio de tantos versos de Dante, copiei toda a poesia de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto.

O eu era o destino daquela estranha, esperta e inocente correspondência. Não chegavam a ser cartas e de poemas tinham pouco mais que o esqueleto.

Seguiam os cadernos, lidos e autorizados pelo controle policial, que não tinha nenhuma paciência com poesia.

Exercícios para a sobrevivência.

Acreditava-me capaz de entender o mundo e capaz de libertar-me dentro daquele espaço que me prendia e que limitava os meus passos, limitava meus movimentos e a minha sonhada corrida até a exaustão, até a prostração, até o último fôlego.

Se a sonhada corrida poderia me levar para fora e o exercício de caminhar três quatro passos e tão somente três, quatro passos me davam a certeza de que estaria preparado para correr dez quilômetros todos os dias.

Outro era o desafio.

Agora, a corrida para dentro, para a solidão, o estar comigo. Eu e eu, o conhecer-me e o dialogar intenso, submetendo-me, submeter, sujeito, o adjetivo latino, sub, conhecer o sujeito que eu poderia dominar, crescer, libertar.

Esta era a mais difícil corrida, o desafio de encontrar-me e de não enlouquecer. Aquele fazer supostamente poético foi o maior achado.

A poesia era poesia independente de minha avaliação e leitura cansativa para os meus carcereiros.

A beleza é um dom que entranha todos os homens e é a arma mais consistente para o entendimento.

O que os poetas da música popular fizeram para derrubar a ditadura nenhum partido, movimento político organizado ou guerrilha conseguiram.

A poesia venceu a tortura, o medo e derrotou a ditadura militar. E nos devolveu a liberdade.


(*) Por que a interrogação? A prisão permanecia, acompanhava e libertar-se desta prisão tornou-se um exercício diário na "liberdade" e para a conquista diária da liberdade.

(**) Belial como chamávamos o diretor da Penitenciária,  Waldelar Mendonça Pettersen