quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Sou o Sol no milharal

 





Até a mulher, 


até o rio 


e o amor

 

Rufino Fialho Filho

 

 

 

Senti que minha pele se tornou um musgo

tenso e nervoso

desses que vivem junto às poças

nas poças,

eu próprio uma parede sombria

 

Para se chegar até mim

 precisará deixar o sol

penetrar a umidade

 

Quem me ama faz analogias

com um vestido de tafetá

Meu presente da natal para ela

 

- Eu um lugar no mundo

preciso e identificado

habitante de um espaço

e o próprio espaço habitado

 

 

Um espaço animado e sombrio

triste e vagabundo,

alegre e sem brios

Vieram me dialogar, numerar

Distribuir-me perigosos para todo o país

 

- Quais são as suas propriedades?

 

- Tudo porque sou um dos poucos

 

- Senti e percebi ao tocar-me: o sol saia de mim


Meu corpo perdido, sem espaço, era luz-objetivo

 

 

Chegaria até o milharal

 

Fazê-lo-ia brotar

 

Restar-me como energia do milho

 

Percebi muito mais.

Por exemplo, vi por trás

de um sorriso

grande tristeza bronzeada

 

 

 

Veio o mar bater na parede da casa

em que durmo. Atreveu-se a aproximar-se

da minha rede.

Levantei e dei-lhe um chutão.

Com medo, o covarde correu para se juntar

aos outros mares.

Com medo do medo do mar,

apanhei minha rede e fui

estender-me mais distante

naquela alta montanha verdejante

 

Vejamos agora.

 

- Deixei a toalha secando na areia,

o mar levou

 

- Deixei a menina queimando na areia

... não, não foi o mar quem levou

 

- Deixei meus sonhos amontoados numa barraca na areia.

A brisa levou, sonho por sonho, grão por grão

 

- Praia de Macapá

pequenininha

Do tamanho, não maior,

da babaca de Graça

 

- No meio do rio

a maresia

joga para o alto

joga para o alto

a canoa/a gente

 

De repente,

a canoa da frente

se alia ao rio.

Traiçoeira,

joga para o alto

 

Joga gente para o alto

Joga para dentro do rio

 

Pressa, desespero.

Tirem da água

a mulher aflita

e o filho morto

preso no abraço

amoroso  pavoroso

 

Sobem a mulher e o desespero

 

Até hoje não sei

se a mulher chorou

se eu chorei

se todos choraram

 

- A mulher olhou, infinitamente, para o rio

 

 

 

Voltei a ser um musgo tenso e nervoso

 

a viver junto às poças.

 

Eu próprio, a parede sombria.