quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

A ARTE É A VIDA

 







A arte de caminhar

 

E as possibilidades da vida escrita a partir de Musil

 

Rufino Fialho Filho

 

 

"Os primeiros esboços de "O Homem Sem Qualidades", de Robert Musil, datam de meados da década de 1910, o primeiro volume foi publicado em 1930 e o segundo, sob insistência do editor, dois anos mais tarde, ainda inacabado.

"Cerca de cinco mil páginas manuscritas, entre material publicado, variantes de capítulos e anotações foram sendo acumuladas ao longo dos anos, formando o arcabouço de uma obra cuja elaboração se tornava cada vez mais complexa."

"A história desse romance é aquela que deveria ser contada nele, mas não o será" - com essas palavras o escritor austríaco Robert Musil procurava apresentar, numa entrevista, o tema de seu romance O homem sem qualidades, obra cuja elaboração estendeu-se por mais de trinta anos, e que permaneceu inacabada.

O romance possível - ensaísmo e narração em O homem sem qualidades, de Robert Musil  Érica Gonçalves de Castro (*)

 

 

 

 

1.

 

Dos peripatéticos até os carteiros

 

Não há outro meio de levar a ideia, a notícia, a carta, senão caminhando e, quando se caminha, em qualquer caminho, até no espanhol, se caminha para ligar, religar, fundir, dizer, transmitir, criar, anunciar, interpretar

 

No relato da experiência da terapeuta Anna Sharp, a experiência de caminhar é uma forma de autoconhecimento e reflexão.

 

Anna criou um trabalho cuja chave é ensinar cada um a aprender a conhecer os sinais do seu caminho

 

Caminhar, caminhar e caminhar pelo menos durante 2 horas para o organismo fabricar a endorfina, droga segregada pelos tecidos nervosos que é expansora da consciência.

 

 

 

 

 

 

 

 

O andarilho

Tcioran e Nietszche

 

 

Um andarilho vai pela noite

 

(Um andarilho anda apenas pela noite?)

 

A passos largos;

 

(andarilho que anda rápido, tem objetivo, lugar para chegar, andarilho não)

 

Só curvo vale e longo desdém

 

São seus encargos.

 

A noite é linda -

 

Mas ele avança e não se detém.

 

Aonde vai seu caminho ainda?


Nem sabe bem.

 

 

 

Um passarinho canta na noite:

 

“Ai, minha ave, que me fizeste!

 

(Ah! Minha estrela, sai daí!)


Que meu sentido e pé retiveste,

 

E escorres mágoa de coração

 

Tão docemente no meu ouvido,

 

Que ainda paro

 

E presto atenção? -

 

Por que me lanças teu chamariz?” -

 

 

 

A boa ave se cala e diz:

 

“Não andarilho! Não é a ti, não,

 

Que chamo aqui

 

Com a canção -

 

Chamo uma fêmea de seu desdém -

 

Que importa isso, a ti também?

 

Sozinho, a noite não está linda -

 

Que importa a ti? Deves ainda

 

Seguir, andar,

 

E nunca, nunca, nunca parar!

 

Ficas ainda?

 

O que te fez minha flauta mansa,

 

Homem da andança?”

 

 

 

A boa ave se cala e pensa:

 

“O que lhe fez minha flauta mansa,

 

Que fica ainda? -

 

O pobre, pobre homem da andança!”

 

 

 

O homem da andança

Tcioran e Nietszche

 

Naquela esquina, ele dominava a cidade

 

e o céu

 

O que mais quer ainda este pobre


homem da andança?

 

 

Um andarilho atravessa a noite,

 

diz Nietszche

 

 

Um andarilho não anda apenas pela noite

 

Anda no amanhecer

 

de Zaratustra

 

entre todos e ninguém

 

e não a passos largos

 

 

Andarilho que anda rápido tem objetivo, lugar para chegar.

 

Andarilho, não!

 

Andarilho fala com o vento

 

e com as aves

 

 

“Ai, minha estrela, que me fizeste!

 

aceleras meu caminhar,

 

atropelas minhas pegadas

 

e não corres, voas


parada, sempre no mesmo lugar

 

e eu em todos os lugares,

 

sempre no mesmo lugar

 

Eu percorro caminhos

 

e as estrelas?

Dos Poemas, 1871-1888

 

 

2

 

O andarilho

 

 

“Andarilho é o homem, seu dever é vagar

Para descobrir em outro lugar um lar imutável.”

As palavras da loucura, Schiller

 

 

"Ora, se o conteúdo de um romance, como diz a célebre formulação de Lukács, "é a história de uma alma que sai a campo para conhecer a si mesma", o que esperar de uma narrativa na qual o conflito do herói consista na perda do "fio narrativo" de sua vida, na busca por uma outra forma de vida, mais legítima, dentro dos limites impostos pela realidade empírica?

Esse complexo projeto romanesco tinha por tarefa responder a duas questões fundamentais: como o homem moderno deve se comportar espiritualmente em relação à realidade e qual seria o romance possível naquele mundo entre guerras, onde a literatura não podia mais atribuir à vida uma causalidade da qual ela mesma não é capaz". (*)

 

 

Excluído da família, um sem-família, caminha pela cidade, completamente solto, livre....

 

Não sei se livre. Desarvorado, sim, em meio às árvores das avenidas, com mil sofrimentos, mil pensamentos.

 

Eu pisava as ruas da capital como todos os outros andarilhos as percorrem, com o mesmo sofrimento de todos eles, olhando pessoas, não olhando, olhando casas, prédios, lugares, não olhando, estando lá, passando por lá. Lembrando-me de Dostoievsky de Noites Brancas e de Steimberg de um livro de histórias sobre um vale e a sua cidade - principalmente da aproximação.

 

As casas e seus habitantes, a vida e as suas manifestações. As alegrias e as tristezas.

 

Caminho em direção permanente ao outro. Muitas vezes percorria distâncias incríveis apenas dentro de mim e assustava-me quando descobria onde havia chegado, o caminho que percorrera sem ver, sem ser abordado e sem ser atropelado (exatamente isto: sobrevivente do acaso).

 

Aos poucos percebia meus parceiros, os outros andarilhos, muitos tão profundamente dentro de suas vidas e de suas histórias que os imaginava maravilhosos embora soubesse, como poucos, a imensa profundidade daquelas descidas - este é, não sei se, o mais desastrado de todos os mergulhos.

 

Percebia-os pelas roupas, pelos cheiros, barbas grandes, pelo caminhar (vi neste trajeto muitos ex-andarilhos e perdi de vista alguns andarilhos, não aqueles que faziam sempre, infinitamente os mesmos percursos, os mesmos trechos).

 

Sentia-os na não solidariedade, na indiferença, mergulhados em seus mundos, às vezes, lado a lado, cansados, em um banco de praça, comunicávamos nossos silêncios, nossas profundidades, perdidos e dostoievskianamente humilhados e ofendidos... ou não.

 

Captava-os, amigo, nas suas sombras e nos seus lugares, sabia-os por locais baldios e em podridões, onde outros homens não aventuram se aproximar, narizes sensíveis e almas limpas.

 

Capturava-os em mim, na minha aventura para o descobrimento das avenidas largas e das imensidões dos céus nos vales de uma cidade comprimida pelas construções e pelo cinza de suas paredes.                

 

Aqueles que conhecerão os percursos possíveis das mentes sofridas, um dia dirão de que é capaz este imensurável mergulho. Se suas cabeças caem para o chão, isto não significa nada. Se falam sozinhos, isto não significa nada. Para os estudiosos do cérebro hoje pode significar uma alucinação, um complexo diálogo com o inferno e/ou com o céu.

 

 

“... o pobre irmão se levantava, a boca apodrecida,

 os olhos arrancados - tal como ele se sonhava! -

e me arrastava pela sala,

berrando seu sonho de idiota aflição”.

 

Arthur Rimbaud

 

 

3

 

O homem inacabado

A metade que parecia dele ficou

a esperar a outra,

que se forjava na cidade dividida.

Não conseguia juntá-las...” 

Cadernos de João, de Aníbal Machado

 

 

"Ao assumir o desafio de adotar a forma romanesca para narrar uma aventura intelectual, a obra parece ter sido, desde o início, destinada ao inacabamento. Mas o esforço de Musil em representar, com a maior amplitude possível, o homem moderno em sua dicotomia essencial - "capaz da mais elevada exatidão e da mais extrema dissolução"-, torna O homem sem qualidades uma obra de fato interminável, "um admirável monumento em ruínas" , mas com linhas de força muito bem definidas, que apontam com toda clareza para a catástrofe eminente."

"Ele via no romance uma forma de intervenção na realidade muito mais eficaz do que as ciências ou a filosofia - que, segundo ele, não estariam devidamente habilitadas para o desafio de superar a alienação e a inércia predominantes. "(*)

 

 

 

 

Eu conheci um homem inacabado. Era um sujeito altivo. Ele não buscava nem mesmo  a sua outra metade, que sabia existir. Isto já seria demais. Buscava-se quase na totalidade do mínimo ser. Qualquer traço já seria alguma coisa, um ponto de partida. Um traço de caráter. Uma renúncia. Uma glória. Nada.

 

Não era nem mesmo metade e nem mesmo inacabado. Absurdo seria dizer que este homem não conseguiria jamais ser nem mesmo um homem começado. Como não é esta a linguagem que falo agora, digamos que este homem que eu conheci muito de perto tenha sido um projeto, um homem projeto, um homem projetado, pensado e que quase começou.

 

Uma construção imaginada, projeto de arquiteto, diante do papel branco, já desenhado. Cada pedaço encontrado pouco preenchia.

 

Assim, tudo era incompleto, inacabado, insustentavelmente inapelavelmente inacabado porque não completamente começado, nem mesmo pensado, sequer imaginado.

 

Sua tragédia ou seu talento estava em ter tomado conhecimento desta impossibilidade de completar-se, da sua impossibilidade de começar.

 

Ele aceitou o inacabado e aventurou-se em supor-se completo, na possibilidade de visualizar-se como metade em busca de uma outra metade, quis que a metade existente tornar-se conhecida de si.

 

Incrível aventura. Conhecer-se a si mesmo... pela metade ou pelo menos a metade ou quase a metade.

 

Examinou todos os homens completos possíveis, como examinou modelos plutarquianos e não plutarquianos além dos modernos modelos virtuais.

 

Mais do que uma escalada a mil Everest - fato possível - era chegar ao cume da metade de si mesmo - fato impossível - mas imaginável, potencializável, não por ele, mas por um homem, ou por todos, algum dia.

 

*

 

 

“Absurdo seria dizer que este homem nem mesmo era um homem começado”.

 

Homem individuado é um ser único, total, completo. Individuado em que? Único em que? Completo em que? É indivíduo enquanto é um ser especial, diferente, não repetição, não referência de um, embora passível de referência para outro. Ser indivíduo, ser especial, significa que é e esgota-se como ser.

 

Assim, não haveria possibilidade de não ser começado. Ao ser já é. Impossível de ser  projeto? De querer ser algo, supostamente, criado a partir da vontade, de dados, de conceitos, de hipóteses estudadas, descartadas e aproveitadas, de possibilidades, da razão. Não há querer no ser, se o ser é, se ser já é, se ser totaliza-se apenas no ser, na simples essência de ser.

 

Se um homem existe , ele o é integralmente homem e o seu destino, suas possibilidades, suas aventuras e suas totalidades. O homem ao ser, acaba-se; ao existir já é. Se não é individuado está aberto, pronto, a todas as individuações e/ou coletivizações possíveis.

 

Ao ser seria dada todas as possibilidades existentes na concretização do ser homem, ao homem seria dada todas as possibilidades de ser um homem feliz em meio a todas as condições adversas e a todo um destino adverso.

 

Não importa, há a possibilidade e o ser feliz ou o ser infeliz está em aberto. Vale a vontade. 

 

 

 

“Uma obra consumada não seria necessariamente

 acabada e uma obra acabada

não seria necessariamente consumada”.

 

Baudelaire citado por Malraux,

citado por Merleau-Ponty

 

“A cultura jamais nos dá, pois, significações absolutamente transparentes, a gênese do sentido jamais se conclui”.

 

“Ora, se expulsarmos do espírito a ideia de um texto original, do qual a linguagem seria a tradução ou a versão cifrada, veremos que a ideia de uma expressão completa é um contrassenso, que toda a linguagem é  indireta ou alusiva e, se quisermos, silêncio”.

 

Maurice Merleau-Ponty, in A linguagem indireta e as vozes do silêncio, Editora Abril

 

“Como sempre em arte, fingir para tornar verdadeiro”.

 

Sartre citado por Merleau-Ponty

 

“O poeta é um sofredor,

finge que é dor, a dor

que deveras sente”

 Fernando Pessoa

 

 

4

 

A água sobe no rio Solimões e entra nas cidades à margem, as casas são invadidas e os homens sobrevivem espremidos entre o piso de madeira de suas casas de palafita e o teto. Eles foram subindo os assoalhos à medida que a água subia. Agora estavam a menos de um metro do teto. Não se prepararam e nem se preparavam para depois do teto. Não se afastavam de suas “coisas”, da casa, dos utensílios domésticos, das roupas, dos mantimentos do dia a dia, de cada peça duramente conquistada.

 

 

 

 

5

 

O silêncio de pai

 

Depois da segunda operação e de ficar com a abertura no intestino, colostomizado, pai não mais falava. A voz não saía. Explicação médica: devia-se ao processo de entubamento de oxigênio durante a operação. As cordas vocais foram afetadas.

 

Não consigo entender seu silêncio. Parado na sua frente, olhando o seu corpo magro, pele e osso, braços finos, ombros à mostra, rosto seco. Pai se cala para tudo.

 

Acredito que ele optou por calar, falar para ele tornou-se cansativo, sem sentido, impossível ou desnecessário.

 

Agora os diálogos possíveis estão nos olhos - se quisermos ouvi-lo devemos olhar em seus olhos.

 

Alguns dias depois, pai levantou falando normalmente. Recuperara a voz.

 

Naquele dia, tornou-se crítico e ácido com Mirtes, “aqui, eu mando”, percorrendo um caminho em que seu rosto revelava seu inconformismo.

 

Ele não sustentou durante muito tempo a sua voz normal e não durou nada a sua vontade de manifestar-se.

 

Calou mais uma  vez. Já era uma voz cansada, já era um raciocínio quebrado por esquecimentos. Mais esquecia do que lembrava.

 

Já era uma voz diante de uma porção de vozes de jovens e de pessoas maduras, que se expressavam, com talento, sem esquecimentos e com vida.

 

Ele calou-se e ele, se ouvia, pouco ouvia.

 

 

"Musil tinha a clara convicção de que era preciso superar a ideia corrente de que existem duas formas opostas de conhecimento, para que os métodos e práticas das ciências exatas pudessem ser transpostos para domínios mais "inexatos", como o do sentimento e do espírito. Somente dessa forma seria possível uma reflexão sobre os fenômenos que não excluísse a esfera subjetiva.

Sua missão é "descobrir constelações, novas variantes, construir modelos atrativos para o homem; enfim, criar o homem interior".

O que o homem vive e experimenta depende, porém, de condições exteriores; esse "homem interior" a ser criado é, portanto, aquele que vislumbra formas de vida que não as familiares, ou as da realidade efetiva." (*)

 

 

 

6

 

O homem adia a vida

 

Viverei amanhã

 

Amanhã, terei uma casa

 

Amanhã, viverei

 

Adiando a vida

 

Agora é lutar,

 

ralar, se ralar

 

 

Vou viver no final de semana

 

Aí, olho o sol e o céu

 

Depois é trabalho

 

ou não trabalhar

 

É não viver

 

 

Vou viver no final do mês

 

aí vou ao supermercado

 

Vou adiando a vida

 

Minha mulher está aí

 

amanhã vou amá-la

 

Vou adiando a vida

 

sem entender

 

o que é a vida

 

 

 

7

 

 

Veja, este homem que caminha

 

apressado, passos curtos, sua pasta

 

debaixo do braço

 

Este é ele

 

Um homem arquivo

 

Chama-se Charles,

 

Charles Maurice Menescal

 

 

Ele tem todos os documentos

 

É um homem arquivo

 

 

Veja como ele caminha

 

É o caminhar de quem recolhe

 

todos os papéis, todos os dados

 

para a sua grande pesquisa

 

é pesquisar, arquivar, sonhar,

 

Enquanto isto, o lixeira escreve

 

suas histórias e ganha prêmios,

 

transforma-se, torna-se talento

 

Enquanto isto, a mulher desespera-se

 

e à noite deita-se ao lado do homem metal

 

Charles ergue-se sobre todos

 

e arquiva tempos e nomes

 

datas e tudo o que sonhas,

 

em todos os tempos,

 

O homem arquivo

 

arquivou a vida

 

 

 

 

 

 

8

 

 

As questões de um homem de oitenta

 

Quando eu crescer, eu serei... serei a flecha veloz, o touro bravo ou sentado, eu serei médico, um homem das almas e dos sonhos, o intérprete da loucura e de todas as alucinações.

 

Quando eu voltar de Kiev, traçarei outros caminhos, nada, nada me amarrará. O que me amarra?

 

Me amarra a placidez de Hemengarda, a viuvez de Estergilda, a voz rouca de Lenora, tudo me segura nesta cidade, o rio destruído e a ainda bela paisagem, correndo entre pedras em seus mil quilômetros de gritos indeléveis.

 

O que me amarra é o sonho de Petrarca em busca de sua Laura.  (Dante fique esperto).  

 

Não posso me prender em séculos que não me dizem mais nada. O que faço nos trecentos se nem em inferno posso sonhar?

 

Quando eu crescer...?

 

 

9

 

O homem bom

 

"Cabe à literatura imaginar uma tal forma, suscitando condições de transformação da experiência humana - e não apenas de descrevê-las ou representá-las com a pretensão de forjar uma realidade explicada." (*)

 

 

- Meu nome é Nogueira...

 

- Nogueira?

 

- Basta, só Nogueira como o Ulrich bastou para Musil. Tenho mais de 50 anos, 53, sou hoje. Agora, sou um homem sozinho. Estar só tem a complexidade da solidão. A solidão, a complexidade do necessário. Sou um homem e o seu deserto. Um homem com saudades de si mesmo. Por que?  Tive muitos filhos. Não fui um bom homem de família. Nem chefe de família. Recusava a relação de chefia com pessoas íntimas e chegadas. Nem pai de família, queria ser apenas um da família.

 

Isto é, não se pode dizer, categoricamente, que eu não tenha sido um bom pai, me esforcei e me esforço muito por isso.

 

Pode-se, entretanto dizer categoricamente que, muitas vezes, muitas vezes, não agi em função da família, da sobrevivência do grupo organizado e estabilizado em torno de pessoas. Esta questão me intriga. Gosto dos meus filhos, de todas as minhas ex-mulheres. Nas relações, as crises sucessivas atingiram pontos de difícil superação e o seu final foi um acontecimento, aparentemente, natural.

 

Explodiu o grupo em uma manhã. Não foi cada um para um lado. Foram todos para um lado e eu para o outro lado: para fora.

 

Saí de casa, saí da minha casa, saí da casa onde morei uns bons anos, saí da casa onde estão os quartos dos meus filhos e a cama da minha ex-mulher. Ela já não era mais a minha mulher, mas ainda era uma pessoa querida, admirada e sempre perdoada, valia para ela e era natural (?) que assim fosse, pois assim caminhávamos.

 

A partir daí os laços foram se esgarçando, meus filhos, por mais insistência, por mais presença, foram se tornando pessoas estranhas, talvez eu não compreendesse o crescimento deles, eles também sofriam e cresciam. Amadureciam? Isto é muita covardia. Enfim, hoje, anos depois, sou um homem sem família.

 

Não que não tenha procurado a minha estabilidade e as minhas novas emoções, como não quer dizer que não tenha procurado refazer-me, o que sempre havia feito. Procurei. Com uma mulher, passei a reconstruir-me. Aí talvez resida a dificuldade de hoje.

 

Não tenho conseguido esta reconstrução, talvez porque eu me procure e na reconstrução a lógica que impera é a lógica do conhecido e não a lógica do novo, do desconhecido. Cada um para um lado.

 

Uma criança nasceu, uma nova filha. Ela está aí, vida, alegria. Pura felicidade.

 

Pela primeira vez, faço o que sempre mais gostei de fazer, estar perto, demasiado perto do crescimento de uma criança. Ela se desenvolve e eu acompanho. Ela é hoje a minha única tábua de salvação. E na tempestade, o tufão. No oceano, estou sozinho, sem nada, senão ondas e abismos, quedas e escalas.

 

É um homem e o deserto. É um homem com saudades de si mesmo. Saudades de alguém que ele viveu, imaginou viver, criou e/ou a expectativa futura de ser.

 

A solidão do deserto quando não produz profetas, produz homens. É a dimensão verdadeira do homem, suas reais possibilidades.

 

Traduzir solidão por dor, desespero, é caracterizar uma demanda: a demanda do outro.

 

A solidão do outro em si não é solidão, é ser e ser o outro, há quem não consegue ser só, só é ser se o outro existe, o outro passa a ser sua cara, mais ainda sua pele, seu suor.

 

A tragédia só ganha todos os ares de grandiosidade, quando o ser só consegue ser pela cabeça, pelos pensamentos do outro: fato muito comum nas religiões e nas relações simbióticas com os mitos e astros, com os sonhos e dogmatismos.

 

 

 

10

 

Tcioran e eu

Apud Borges

 

 

"Pois é interessante observar que numa conferência proferida cerca de vinte anos antes - "O escritor nos dias de hoje", de 1934) - Musil já desenvolvia reflexões análogas: segundo ele, o romance contemporâneo não podia mais focalizar apenas "destinos individuais" (ibidem, p.1248) porque, àquela altura da história, o indivíduo passara a ser apenas mais um elemento num grande todo, e suas forças morais teriam se tornado muito frágeis em relação ao mundo que o cerca, de modo que a literatura não podia correr o risco de "reforçar seu enquadramento" nessa ordem opressora." (*)

 

Eu conheci Tcioran ainda menino, menino preto queimado de sol, correndo descalço pelas ruas da cidade de Teófilo Otoni, no Mucuri. Via aquele menino de longe, quase sempre de muito longe, pois são ainda esparsas as notícias que eu tenho dele.

 

Lembro dele deitado no chão da varanda em conversas demoradas com as nuvens, lendo nos céus gente e animais em formas e composições às vezes belas, outras monstruosas.  (A palavra que diz isso, total imaginação)

 

Também deitado sobre uma mesa enorme no terreiro de secar café, à noite, segurando uma montoeira imensa de estrelas no céu, até se fixar em uma - era difícil. Lendo naquele céu imenso e iluminado pelas estrelas histórias fantásticas e deliciosas.

 

Lembro do menino do porão e de suas muitas fantasias, cada canto do porão, organizando os espaços. Debaixo da casa real uma casa iria surgir para amar e para guerrear.

 

Aquele menino e suas amizades com os gatos, cachorros, cavalos e bois. A tragédia do enterro do gato, quando os pequenos atores levavam a sério a história e o gato  não. Ele reagiu. Apavorado, não aceitou o seu enterro.

 

O menino negocia com os ciganos e parte para explorar as redondezas da cidade, as proximidades da casa, as proximidades do colégio até a grande aventura da estrada.

 

O menino e o cinema, com os seriados semanais no cine Poeira, Roy Roges, Ulysses, Zorro, Super Homem, depois do filme, o seriado e a continuação na próxima semana com o artista principal ou um seu aliado correndo sério risco.

 

Lembro do menino na Rua das Putas com as puas velhas e com a puta gordona.

 

Acompanhei este menino pelas estradas de Teófilo Otoni a Pavão.

 

* Com Tcioran aconteceram muitas coisas, muitas aventuras, muitas paixões e mais do que tudo uma fabulosa aventura na imaginação, além do mais complicado uma persistente e dolorosa interrogação de si e de ideias, de pessoas e de sonhos. Pude acompanhar alguma coisa de perto. Vou falar do que vi e dos nossos diálogos, conversei algumas vezes com Tcioran, do que anotei tenho memória, do que apenas falamos em nossas muitas caminhadas não tenho mais nada.

 

 

* Eu caminhei Belo Horizonte milhares de vezes, mil ruas e avenidas, subi e desci muitos morros e ainda não conheço a cidade.

 

Se me surpreendo dentro de uma casa, cuja fachada sei de cor, seria capaz, como um bom detetive, de falar sobre a estrutura da casa, disposição dos quartos, da sala, aventurando-me sobre seus primeiros donos, seus primeiros inquilinos e até mesmo passar a mão em uma parede onde uma mocinha deu seu primeiro beijo na boca de um namorado perfumado e suado.

 

 

Estou perdido e distribuído por toda a cidade, se meu perder não for total é porque a própria cidade me acha e me recolhe acolhe. Se reclamo das minhas caminhadas repetidas, mil vezes, para lá e para cá na mesma avenida dos Andradas, eu dou o troco e falo de cada milímetro do seu chão, de cada perspectiva do seu vale, de todas as frases de seus imensos cartazes, ditos inteligentes e bons de venda porque se vê e se lê.

 

 

* De Tcioran tenho notícias constantemente são os amigos comuns e suas ex-mulheres (ele não chamava-as de ex-mulheres, dizia minha mulher Isabel de Teófilo Otoni, minha mulher Isabel de 68, minha mulher Isabel de Belém, não existia ex- ou passado para ele em se tratando de amor e de vida).

 

Vejo seu nome sendo discutido em rodas de políticos, uns a favor falando com euforia e alegria, outros contra, outros  detratores, outros inimigos elogiando para fazer aparecer o ridículo das posições de Tcioran ou as suas contradições, apontando com fúria seus pés de barro. Vejo seu nome em uma lista de professores ou em um dicionário biográfico de jornalista do Estado de Minas Gerais.

 

Eu e Tcioran.

 

Agradam-me uma boa conversa, um bom amigo, ouvir relatos dos antigos e as experiências dos jovens, a coragem e a audácia dos jovens, os erros e a visão que os jovens têm de seus erros, principalmente as bem humoradas, os livros de aventura e os livros dos filósofos;

 

Tcioran compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as transforma em atributos de um ator.

 

Qual seria a nossa relação? Eu acompanho a vida de Tcioran e sempre estive com ele em todos os seus momento. Não há nem conflito e nem hostilidade, como não há acordo e nem desacordo. Nossa relação se pauta, da minha parte, pela observação, e o que se pode dizer de alguém  e o que se pode conhecer de alguém pela observação, por uma e outra conversa, por um e outro encontro, em sua maioria, ocasionais.

 

Observo essa obsessão de Tcioran pela palavra, sua insistência em escrever, em se dizer, intimamente, poeta, e em usar da poesia para apenas sobreviver.

 

Observo e leio tudo o que ele escreve, porque ele insiste em me mostrar. Ainda não posso avaliar. Ele está em permanente intervenções em tudo o que pensa, fala e escreve, reavalia o feito e reinterpreta cada fato, ato ou pessoa.

 

Reescreve permanentemente, ele é só um reescrevedor em busca da clareza e da síntese, da pouca palavra. Essa vulcanização do seu viver e fazer é que me empolga e me justifica.

 

Ele ainda não publicou, nem pensa concretamente nesta hipótese, nem teme o que possa acontecer caso tudo venha a se perder. Não porque não considere válidas as suas páginas. Não fechou nenhuma avaliação e teme, treme, ainda diante do universo planejado, das ideias concebidas e dos sonhos anotados.

 

Eu estou destinado a perder-me, definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver em Tcioran.

 

Tcioran desenvolveu elementos de sobrevivência nos relacionamentos e, embora não concorde com nenhum deles, eles devem ser melhor examinados, como, por exemplo, “seu perverso costume de falsear e magnificar”.

 

“Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar em seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra e o tigre um tigre”.

 

Tcioran não, ele quer ser Borges, ele quer ser Shakespeare, ele quer ser Marx, quer ser Sartre, quer ser Kierkegaard, quer ser Heráclito e Heidegger, quer ser Mao e Che, quer ser sempre o outro, está sempre copiando, como faz agora, quer ser a pedra e/ou o tigre, mas sobretudo quer ser Espinosa.

 

Querer perseverar em seu ser, ele entendeu em ser depois dos diálogos com aquelas inteligências, com aqueles espíritos, com aquelas consciências e com aqueles seres fundadores do homem que se constrói aos poucos, muito aos poucos nestes longos tempos de se ser e de se fazer o homem.

 

Eu permanecerei eu e jamais serei Tcioran. Sei que sou alguém. Reconheço eu e ele, minha participação no seu trabalho, minha estreita colaboração com o seu pensar e ser. Eu me encontro em muitas de suas palavras, em quase todos os seus gestos. A identificação é maior do que imagino, pois me percebo até no seu olhar e quando compõe seu melhor poema.

 

Nunca tentei livrar-me dele.

 

Muitas vezes nos afastamos mas a troca de correspondência era mais do que diária, era um escrever contínuo, um entender-se pela razão sem a razão. Muitas vezes percebi que Tcioran tinha muito mais domínio sobre mim do que eu poderia aceitar, assim pude perceber que muitas das minhas análises e visões de sua vida na realidade eram visões e análises produzidas e estimuladas a partir dele. Decodifiquei isto e tranquilizei-me.

 

“A minha vida é uma fuga e tudo eu perco e tudo é do esquecimento, ou do outro”.

 

Conto de “O fazedor” , Jorge Luiz Borges Obras Completas Volume II, Editora Globo

 

Borges e eu

 

Ao outro, a Borges, é que sucedem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e me demoro, talvez já mecanicamente, para olhar o arco de um vestíbulo e o portão gradeado; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo seu nome em uma lista tríplice de professores ou em um dicionário biográfico.

 

Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o gosto do café e a prosa de Stevenson; o outro compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as transforma em atributos de um ator.

 

Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me justifica. Não me custa nada confessar que alcançou certas páginas válidas, mas estas páginas não podem salvar-me, talvez porque o bom já não seja de ninguém, nem mesmo do outro, mas da linguagem ou da tradição.

 

Além disso, eu estou destinado a perder-me, definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou cedendo-lhe tudo, embora conheça seu perverso costume de falsear e magnificar.

 

Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar em seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra e o tigre um tigre. Eu permanecerei em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas me reconheço menos em meus livros do que em muitos outros ou do que no laborioso rasqueado de uma guitarra.

 

Há alguns anos, tentei livrar-me dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei que imaginar outras coisas. Assim minha vida é uma fuga e tudo eu perco e tudo é do esquecimento, ou do outro.

 

Não sei qual dos dois escreve (ou escreveu) esta página.                        

 

"Seria preciso, pois, encontrar um caminho que mostrasse o sujeito como parte de um todo e, ao mesmo tempo, acenasse com a possibilidade de uma desvinculação dessa mesma ordem. Essa terceira possibilidade, em que "novas constelações" se fundam, em que "as esferas interior e exterior condicionam-se mutuamente" (ibidem, p.1249) é o programa que uma obra como O homem sem qualidades pretende cumprir, ao subordinar a narração de eventos - ou a representação de situações e personagens num contexto específico - à narração de uma aventura intelectual de um herói que tenta escapar dos perigos da razão moderna."

Nesse sentido, Musil compõe o entorno de seu protagonista como um campo de forças que, através do entrelaçamento das partes reflexivas e narrativas, reproduz o ritmo autêntico da experiência humana, transformando o "fio da épica" em seu próprio tema." (*)

 

 

11

 

O caráter do sexo

 

"A marca característica do gênio é a lembrança universal de todas as suas experiências. Através da lembrança, a experiência vivida se torna atemporal. A memória transcende o tempo. E aquilo que transcende o tempo é somente aquilo que interessa o indivíduo, aquilo que tem significado para ele, em suma,aquilo a que ele dá valor. É o valor  que cria a atemporalidade. Assim, o gênio é o único homem atemporal. Com seu desejo apaixonado e urgente pela atemporalidade, ele é o homem com maior desejo pelo valor. Exemplo de gênios são o artista e o filósofo, que criam uma apresentação do mundo que é imperecível, imutável e atemporal. A memória se relaciona com a lógica e a ética. Por um lado, a memória constitui a base para o pensamento lógico. Assim, se o homem fosse desprovido de memória, ele perderia a capacidade de pensar logicamente, pois esta possibilidade está encarnada num meio psicológico. A memória constitui uma parte necessária da faculdade lógica. A lembrança contínua nada mais é do que a expressão psicológica do princípio de identidade. Por outro lado, a base de todo erro na vida é o fracasso da memória. Somente ela garante o arrependimento. Todo esquecimento é imoral. Nesta perspectiva, a verdade deve ser considerada como valor real da lógica e da ética. Assim, a memória não constitui um ato lógico e ético, mas é um fenômeno, simultaneamente, lógico e ético"

 

"Sexo e caráter, Otto Weininger, citado por Paulo Roberto Margutti Pinto, in "Aspectos da influência de Weininger sobre Wittgenstein, Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 24 n77,1997, página 203

 

 

12

 

As encruzilhadas da razão

 

"Seria preciso, pois, encontrar um caminho que mostrasse o sujeito como parte de um todo e, ao mesmo tempo, acenasse com a possibilidade de uma desvinculação dessa mesma ordem. Essa terceira possibilidade, em que "novas constelações" se fundam, em que "as esferas interior e exterior condicionam-se mutuamente" (ibidem, p.1249) é o programa que uma obra como O homem sem qualidades pretende cumprir, ao subordinar a narração de eventos - ou a representação de situações e personagens num contexto específico - à narração de uma aventura intelectual de um herói que tenta escapar

dos perigos da razão moderna."

Nesse sentido, Musil compõe o entorno de seu protagonista como um campo de forças que, através do entrelaçamento das partes reflexivas e narrativas, reproduz o ritmo autêntico da experiência humana, transformando o "fio da épica" em seu próprio tema." (*)

 

 

 

-          Eu voltei de um outro mundo...Então, você quer saber o que existe do outro lado da vida...

 

-          ...Muitos tiveram a mesma experiência que eu, muitos que morreram e que voltaram a viver. Depois da morte, o que eu vi? O que é o outro lado. O outro lado era eu...

 

-          ...Eu estive comigo todo este tempo. Era eu e eu sozinhos. Estive apenas comigo, horas e horas...

 

-          ...passei mal, vomitei, senti cheiros horríveis. É triste, você dormir e acordar só com você mesmo. Horas e horas, você olha para o lado e quem está ali? Você. Do outro lado, a mesma coisa, no teto, no chão, em todos os lugares...

 

-          ...Você descobre que mais de duas horas com você mesmo, é preferível a morte. Mas eu estava morto, não havia escapatória para mim, nenhuma fuga possível.

 

-          A minha morte era eu estar diante de mim. Terrível condenação! Como fazer? O jeito foi voltar a viver...

 

-          E viver é isto, é a possibilidade de você encontrar o outro, poder encontrar o outro, poder dialogar.

 

 

13

 

Identidade,

a questão do ano 6528

 

"Trilhões de seres humanos habitam o espaço e sobrevivem, multiplicando-se e desenvolvendo novas técnicas genéticas de multiplicação, pois mesmo com as últimas possibilidade de prolongamento da vida, com homens já atingindo até 580 anos de idade e mesmo com o mínimo de desperdício de espermas e óvulos, as necessidades de um maior número de homens e mulheres, ocupando o vasto espaço, novas áreas estão sendo implantadas a cada 50 anos e a demanda de homens pode atingir a cerca de 50% da atual população galática. Isto é, a cada meio século registra-se a carência de cerca de 1 trilhão e 500 milhões de seres humanos.

 

"A conquista do ano 2025, que revolucionou a reprodução humana através da sobrevivência de todos os espermatozoides em todas as ejaculações, ainda repercute no Universo.

 

"A valorização do homem, do cérebro e das suas potencialidades intrínsecas na 23ª Revolução Científica permitiu, ainda, que a idade média pulasse dos míseros 150 anos para os 556,8 anos atuais.

 

"Em meio à expansão da população explode a monumental importância da questão das individualidades. Em meio a trilhões de seres, o um ganhou muito mais força e projeção.

 

"O respeito às individualidades é uma das denominadas potencialidades intrínsecas, com fortes repercussões no conjunto. Todos contemplam o um. O ser é vital para todos, pois a inteligência foi a grande descoberta das 23ª Revolução."

 

"O homem não é uma ilusão".

Gregório P. Pasquali, Edições Cidades, 1850

 

14

 

O andarilho Jesus

 

“Perambulo através

dos dias como uma puta

em um mundo sem trottoirs”

Emil Cioran

 

"Se, por um lado, O homem sem qualidades dissolve as categorias narrativas de tempo, ação e espaço, colocando-as em questão, ou decompõe intencionalmente as situações narrativas clássicas; por outro, o texto dispõe de um narrador autoral, que usa toda a amplitude de suas possibilidades de representação, numa linguagem que se coloca acima do relato, dispondo de diferentes formas de distância, que renovam continuamente a narração como médium. "

"E, assim, uma nova forma de narrar surge justamente do cerne daquilo que parecia inviabilizar por completo o papel da narração: não se trata mais de descrever fatos reais ou que poderiam sê-lo, mas de explorar possibilidades." (*)

 

 

 

José Luís de Jesus, 65, andarilho, viúvo.

17 anos fora de casa, 6 anos nas ruas de BH

 

Saiu de SP, em 82, viveu em vários lugares e exerceu diversas profissões, músico, caixeiro viajante etc. (1999)

 

“Quando abandonei tudo é porque estava desesperado e achei que a minha vida não tinha mais sentido. Minha mulher me acompanhava em todos os momentos e eu fugi para evitar as lembranças. Depois, as coisas foram ficando difíceis e, quando eu decidi voltar, não tive mais condições”.

 

Seria a fuga das lembranças do amor, seria a fuga dos dias de felicidade, da insuportável ausência, o medo de acordar e a certeza de que acordaria.

 

Duro não é deixar de ser feliz, duro é não poder compartilhar a felicidade, duro é não mais poder amar, saber que nunca mais terá junto de si a sua mulher amada.

 

Como ficar dentro daquela casa, dentro do lugar da felicidade? Como conversar com pessoas que conheceram a nossa felicidade?

 

A impossibilidade de não lembrar - a vida só lembrança e lágrimas.

 

 

“Abandonei tudo

 

- estava desesperado

 

- minha vida não tinha sentido

 

- Minha mulher me acompanhava em todos os momentos

 

fugi para evitar as lembranças

 

- as coisas ficaram difíceis

 

- quando eu decidi voltar, não tive condições”.

 

 

Sem dinheiro, José Luís ligava para uma das filhas, (Maria Honório de Jesus, 41) dizia que estava bem, tinha emprego e que um dia voltaria para ver todos.

 

O número do telefone da filha era a sua única relíquia.

 

Maria de Fátima Cardoso de Oliveira, funcionária pública, encontrou José Luís, em frente à PBH, e restabeleceu o contato dele com a família.

 

Banho tomado, roupa limpa

 

“É revoltante saber que meu pai passou por tanta dificuldade e tanta miséria” disse a filha.

 

 

15 

 

 

Desafios às 12h45

 

 

Jorge, meu filho, está triste. Não pode estudar. Não temos dinheiro. Ele me espera, sentado no banco em frente à janela da casa. Chamo-o até o carro. Ele se aproxima, mal cabe na poltrona.

 

- Pai, vocês acham que eu sou culpado pela separação de vocês.

 

- Acham que eu sou culpado.

 

Por que Jorge pensaria que, por ser culpado, então, estaria sendo penalizado, estaria sendo prejudicado?

 

Culpado, responsável?

 

Por que essa visão?

 

Talvez pelos diálogos que trava, frases que ouve  (eu não tenho dinheiro, é obrigação do seu pai) e dos jogos que percebe e não pode revelar para não prejudicar ninguém.

 

Como retirá-lo desta situação e deste raciocínio? Ele não é culpado. Ele é vítima? Ele se sente vítima? Prejudicado? Quantos desafios para o meu filho?                                  

 

16

 

A maratona do sobrevivente

 

"Ao abrir mão de uma estrutura épica tradicional em favor de um estilo ensaístico, o romance de Musil visa representar as condições de assimilação da realidade por um indivíduo sensível e disposto a "amar todas as manifestações da vida".

Em um mundo em que nada é sólido ou definitivo, o indivíduo hesita em agir e em fazer escolhas, só restando-lhe ser um homem sem qualidades." (*)

 

 

 

- O que vier, agora, é lucro!

 

Esta frase, ele a repetiu tanto que, mais tarde, ao relembrar aqueles momentos, depois que despertou no chão cinzento da cela, acreditou que ela era o seu mantra, sua memória, sua oração, sua vida resgatada em meio a corpos que vira saírem carregados, empapados de sangue, corpos no chão do pátio, corpos no corredor, em que os torturados encapuzados tropeçavam.

 

- O que vier, agora, é lucro!

 

Como ele podia concordar com aquela frase? Lucro, um ganho a mais, mais valia. O que vivera, então, tivera preço justo. Agora, ele tinha direito a jogar tudo para o alto, sem temer a lei da gravidade. Nada era mais leve do que o sobreviver, nada mais aéreo do que a vida conquistada, além da resistência. Todo o corpo era um imenso hematoma, partes em carne viva, queimaduras entre as pernas, dores dentro e fora do corpo.

 

Agora era agora e ele estava vivo. Não precisava debochar da sorte. Lucro? A sobrevivência como lucro. Que visão capitalista, cara! Linguagem imperdoável. Era por onde, descobrira mais tarde, ganhara forças para encarar aquela oportunidade de sobreviver. Talvez, não passasse da próxima etapa, ele vencera esta, isto é, sobrevivera às sessões de tortura da PCA, da Biblioteca, do Túnel, estas três ele vencera.

 

Todas elas, PCA, Biblioteca e Túnel eram locais e níveis de tortura organizados no Aeroporto do Galeão pelo grupo de torturadores do Ministério da Aeronáutica. A cada pouso de um jato no Aeroporto do Galeão era como se a terra desabasse sobre sua cabeça. A sala de tortura do Túnel, a mais violenta delas, se houvesse possibilidade de uma ser mais violenta do que a outra, era debaixo da pista de pouso do aeroporto. Um avião atrás do outro. Uma loucura. Dali poucos saiam vivos e os que saiam vivos traziam alguma marca.  Agora, ele respirava mais uma vez, enchendo os pulmões.

 

- O que vier, agora, é lucro!

 

Tempos depois, sentiu fome. Não sabia quanto tempo passara. Ali, raramente serviam qualquer coisa, além de pancadas a qualquer hora, sem qualquer razão, sem qualquer pretexto. Sentiu a chegada da fome como mais um sinal de sobrevivência.

 

Não se preocupou com a fome, tão certo de que sobrevivera. Mexeu a perna e sentiu como se sua calça fosse uma madeira, dura. Uma madeira que machucava, pois arranhava a carne viva. A calça dura, agora madeira, era o sangue que secara e deixara sua calça como as roupas engomadas que vestia nos dias de desfile cívico lá na sua distante Jampruca, no Vale do Mucuri.

 

- Se tudo o que vier é lucro, o mais a fazer é sustentar esta hipótese de sobrevivência. Ele tinha certeza absoluta de que sobrevivera. Lógico, não era um jogo de azar e nem o regime militar havia terminado. Resistir não é prova de força e nem pode ser parâmetro de medida de força. Não há explicação plausível para este fenômeno, pois muitos, muito mais fortes do que ele, muito mais resistentes do que ele, não aguentaram. Quantos somos?

 

- O que vier, agora, é lucro!

 

Por que aquela frase batera em sua cabeça e não mais saíra?

 

- Era às vezes como uma provocação a mim mesmo e aos meus agressores. Havia agora a vida, depois desta loucura, que deveria ser vivida. Sobrevivida.

 

- O que vier, agora, é lucro!

 

- O que vier, agora, é lucro!

 

O mundo mudou, muita coisa passou, muitas etapas foram percorridas. Às vezes, ele se surpreendia ouvindo distante, longínqua, a frase maluca.

 

- O que vier, agora, é lucro!

 

- Vinha como se chamasse a minha atenção, como uma voz tímida e baixinha, a alertar-me de que talvez eu tivesse esquecido algo fundamental.

 

Outras vezes sobrevivera.

 

Aos 12 anos, em suas aventuras de menino, mergulhara para retirar um homem afogado, e voltara abraçado em um porco inchado, desmanchando. Dias e dias de febre. Fizera um pacto com a vida.

 

Optara por sobreviver. Acreditou que a vida era um ato da vontade, do querer viver.

 

Ninguém jamais soube explicar sua recuperação, nem a mãe, desesperada, e nem o médico, que já alertara a família para o desfecho final.

 

E a febre desapareceu. 


 - Zenila, este menino fez um pacto com o diabo.

 

Conclusão e a única explicação do doutor Luiz Boali para aquela inusitada sobrevivência.


Que pacto misterioso foi este? Com quem negociou ou tramou a sobrevivência?

 

Outra vez, depois de dois meses amarrado em uma cama no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, fora retirado para a “execução”. Colocado no chão de um automóvel, com os pés dos policiais sobre o corpo, pés no pescoço e nos rins.

 

Horas e horas rodando pelas ruas e avenidas molhadas do Rio de Janeiro, numa noite de chuva fina, até chegar ao local da execução.

 

No pátio, parecia um pátio, encapuzado, o seu corpo já encharcado de gasolina e álcool.

 

“Não vou morrer, sem lutar”.

 

A pouca chance que teve foi o bastante para despertar na cama do hospital militar.

 

Ao abrir os olhos, viu o rosto amigo do general Figueiredo, irmão do Nelson, amigo da família. Os olhos do general estavam  úmidos e uma lágrima escapuliu.

 

Mais uma vez sobrevivera.


Com quem teria feito aquele pacto no Hospital Central do Exército, no Rio de Janeiro? 


Agora, quando despertou na cela da PE da Barão de Mesquita, teve a certeza de que o jogo continuaria e que ainda estava a seu favor.

 

- O que vier, agora, é lucro!

 

Ele tinha certeza. Mais do que isto, ele tinha uma linguagem com o que ele não entendia, em que um diálogo inexplicável, fora do entendimento, se passava e, por mais fraco que estivesse, a vida venceria sempre.

 

Era profundo. Nunca fora místico, não tinha raízes para isto e nem formação. Era preguiçoso. Nunca fora o melhor em nada, não tinha motivações para qualquer tipo de disputa, nem tesão para ser vencedor de competições e nem saco para comemorações.

 

- O que vier, agora, é lucro!

 

- O que vier, agora, é lucro!

 

- O que vier, agora, é lucro!

 

Nunca cedera em nada do que acreditava, mas acreditava em tão poucas coisas, que sempre era visto como inadequado na convivência.

 

Incrédulo?

 

Nem tanto, porque nem ao não havia sim.

 

 

 

17

 

Final de julho

 

Quem sou eu?

 

Insisto ainda nesta manhã de domingo

 

- Kierkgaard sabem quem ele é?

 

Eu não sou filósofo

 

E eu?

 

Eu não sou escoteiro

 

Não sou ginecologista

 

Não sou militar, nem político

 

Não sou o amante da minha argentina

 

Não sou um homem

 

verdadeiramente triste

 

Não sou trapezista e nem aviador

 

Não sou piloto de jato e nem de helicóptero.

 

Não sou piloto.

 

Quais são, então, os meus voos?

 

Não sou o que serei amanhã

 

Amanhã, eu não sou o que sou hoje

 

Crise total de identidade

 

É o homem do século

 

Perdidos em si (são sempre muitos)

 

Encontrando-se em espelhos

 

em tempos virtuais

 

Esmagado pelos heróis

 

de películas e plásticos

 

horizontalizados em imagens

 

que devora os próprios heróis

 

que não se reconhecem

 

em tanta beleza e força

 

Eu não sou saudoso

 

nem dos tempos futuros

 

Eu não me apaixono

 

por mais de 24 horas

 

Não sou um poeta

 

Não sou um bom poeta

 

cujos versos são belos versos

 

Não sou um bom poeta

 

não sei ser romântico

 

Nem chego a ser poeta social

 

íntegro

 

na revolta e em suas consequências

 

Sou desconfiado com a palavra

 

a da medida e a do som

 

da beleza dos poetas músicos

 

cheios de muitas

 

profundidades e melodias

 

belos versos, belos poemas

 

belas palavras, belas palavras

 

 

 

A palavra é bela

 

é a beleza das sereias

 

e eu não sou Ulysses

 

 

Nem retorno e nem resgatei

 

a honra da minha cidade

 

Passo olhando, olhos que já custo abrir,

 

os homens e suas obras

 

 

- Há homens que constroem igrejas,

 

túmulos, prisões, colégios, museus,

 

palácios e igrejas, casas e igrejas

 

Constroem homens e mulheres

 

vícios e domínios, vícios e sonhos

 

que serão sempre sonhos, sonhos

 

e nada mais

 

Quem sou eu? Nesta doce, silenciosa

 

e pura manhã de domingo em julho?

 

Quem sou eu?

 

Eu sou a minha liberdade

 

a possibilidade concreta

 

de negar

 

recusar ser o que não sou

 

Sou a liberdade

 

O homem é liberdade

 

Todos podem negar

 

negar em si o artista que não é

 

o protótipo midializado

 

e até negar a ser o contrário

 

 

 

Eu não sou poeta

 

todo poeta é um revolucionário

 

Eu não consigo ser revolucionário

 

por mais de algumas horas

 

Eu sei que eu não sou um poeta,

 

um bom poeta.

 

 

Talvez, eu consiga ser

 

um homem.

 

Em algum amanhã.

 

 

"Definindo-se como um homem "sem qualidades", no sentido de ser privado dos atributos que ordinariamente conferem ao eu moderno o que se convencionou chamar de "existência" - profissão, família, círculos sociais -, Ulrich decide tirar "férias da vida" justamente a fim de descobrir o sentido da sua.

Uma das poucas "qualidades" que o narrador atribui ao protagonista é a de ser uma "mente viril", um "ser pensante". Isso lhe garante a "capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser"atribuindo o mesmo valor ao real e ao possível.

A constatação de sua falta de qualidades - ou de características próprias, como indica claramente o sentido da palavra alemã Eigenschaft5 - e um senso aguçado para as possibilidades o levam a formular as utopias do ensaísmo e da exatidão." (*)

 

18

 

Meu pai quer viver

 

 

"Desde seu momento inaugural no âmbito da Era moderna, em Thomas Morus, a utopia se constitui como uma tentativa de preencher uma falta.

"Ela carrega, ao mesmo tempo, um princípio de negação e de construção, pois apenas o processo de negação da realidade constituída permite uma construção racional passível de transformá-la

"Assim, se por um lado o senso de possibilidade difundido pelo romance tem a pretensão de ultrapassar os limites da realidade; por outro, este não pode ignorá-la - afinal, é nela que estão contidas as possibilidades.

"Para Wieqmann, a noção musiliana de utopia é mais abrangente do que a de possibilidade justamente porque se insere no campo da literatura, e não da realidade mesma.

"Sendo originariamente um não lugar (U-topos), a utopia se converte assim em uma zona intermediária, o lugar do possível, onde as "amarras" da realidade podem ser rompidas; enfim, o lugar da literatura." (*)

 

 

 

(Na segunda-feira, ele foi internado e à noite submetido à segunda cirurgia do abdome, diagnosticado abdome agudo, para combater uma infecção interna na sutura da cirurgia intestinal anterior. Pai está entre a vida e a morte. Seu quadro clínico é definido pelos médicos como grave, “ele corre risco” e ele quer viver.)

 

Quem é o meu pai? Eu o conheço.

 

É uma criança. É um menino levado - estou dizendo para dar-lhe entusiasmo, para sermos otimistas.

 

Cito, então, situações em que ele tenta enganar o enfermeiro, controlando a velocidade do soro fisiológico, controlando a presença dos enfermeiros, as ações do médico, querendo saber de tudo, o que vai ser feito, o porquê, os resultados e fazendo questão de ser cortês e agradecido às ações de todas as pessoas que se aproximam do leito.

 

A um enfermeiro novato que chegou, formal, se apresentando, indicando tudo o que faria e registrando os seus “sinais vitais”, no final do expediente, pai chamou-o e elogiou o seu trabalho, “foi o melhor enfermeiro que eu tive até agora”.

 

O rapaz desmanchou-se, surpreso. Não estava acreditando. Parecia que naquele momento, efetivamente, ele recebia o seu diploma.  

 

Quem é meu pai? Você o conhece? 

 

Ele tem 87 anos. Ou 90? Eu tirei esta dúvida, diz Rita empolgada. Nininha me disse que se pai tivesse 90 anos, ele seria irmão-gêmeo do Afonso. Tem mesmo é 87 anos.

 

Minha irmã Rita de Cássia é a mão esquerda, mão direita, braços e pernas de pai. Faz tudo, resolve tudo. Para Rita, ele é o homem que não aceita ficar esclerosado, envelhecido mentalmente, que, surpreendido em atitudes duras, admoestado, alertado, consegue mudar, reconhecer o erro ou de avaliação de pessoa ou de condenação precipitada de fala e gesto.

 

Para ela, ele é um homem bom.

 

Quem é o meu pai?

 

 

19

 

"Do que elas gostam?"

 

"No entanto, a literatura sempre corre o risco de reduzir as possibilidades contidas na realidade ao pretender imitá-la. A obra literária é uma via de acesso a um conhecimento que não depende de uma elaboração conceitual, mas que acontece como uma parábola.

Sendo um recorte, o conhecimento que ela gera será necessariamente limitado em comparação às ambições da ciência.

Ao ser introduzido no seio do romance como seu princípio formal, o ensaísmo será o medium que possibilita reescrituras da experiência que não se subordinam à lógica causal e que, portanto, ampliam o potencial gnosiológico da literatura." (*)

 

Amanhã é aniversário de Jorge. Fará 19 anos. Hoje, na pista de Cooper da avenida dos Andradas, na margem esquerda do rio Arrudas, afluente do rio das Velhas, na bacia do rio São Francisco, na manhã cedo e ainda vazia, encontrei-me com Régis. ,

 

Régis falou, falou muito e queria falar. Falaria mais se tivesse ainda mais uma manhã, mais um dia e mais um século.

 

Estou separado, agora estou morando na casa de um amigo e em diversas casas. Você se lembra do Washington, fotógrafo? Às vezes moro no apartamento dele, durmo lá umas noites. Durmo também no apartamento de Teresa, a mãe de Ana Luisa, minha filha de três anos e meio.

 

Na minha casa ninguém queria casar, somos cinco irmãos homens, agora começaram a nascer as crianças.

 

A última vez que fui ao Norte, Amapá, foi em 95 quando levei Ana Luisa a Macapá para o meu pai conhecer a neta. Levei mulher e filha. Meu pai bateu direto, ele não aconselhava mulher nenhuma a casar com nenhum dos filhos dele. Nenhum era certo. Todos só viviam de pau duro, se era para ter orgasmos direto, então tudo bem, só para e por causa do orgasmo, para viver e ter plano de vida não, não valia a pena. Ele desaconselhava.

 

Separar foi duro. É duro.

 

E separou da mulher e da filha.

 

Meu avô dizia que não se devia por muito óleo no pavio, era encharcar o pavio e o fogo apagava. Não acenderia fácil. Nos dias seguintes à última separação, na primeira semana, foi duro.

 

Sofri o diabo, não conseguia pensar outra coisa e só arranjava razões para telefonar. Ela já me atendia com rispidez e com enfado. Segui o ensinamento do meu avô e dosei o óleo. Não liguei mais. O que fazia? Impus-me uma rotina espartana, horário de acordar, caminhar, ler, trabalhar, comia a mulher que me ligasse à tarde e comia desesperadamente. Vamos trepar de novo, eu não sou objeto, não é isso, você não imagina o tamanho da minha dor.

 

Um tempo depois, ela aparece no jornal. "Precisamos conversar". Não temos nada mais que falar.

 

- Poderíamos almoçar?

 

- Vamos, está na hora.

 

Depois do almoço ela me convida para passar na casa dela, que foi nossa, à noite. Agora, ela é uma das que ficam após a triagem que fiz e em que eliminei as mulheres da pesada e das drogas.

 

Hoje, estou vivendo a liberdade, morando ainda aqui e ali. Nem sempre, por exemplo, posso dormir no apartamento do Washington. Ele está noivo e eu já disse para ele não casar. Quando ele leva a noiva para o apartamento, eu não posso ficar, é constrangedor. Agora, quando ele vai dormir no apartamento dela, eu durmo no apartamento dele.

 

Assim, às vezes durmo no centro da cidade, no apartamento de Washington, outras vezes no Sion, na rua Estados Unidos, outras vezes no apartamento de Tereza aqui no São Lucas.

 

Cheguei à conclusão de que é verdade aquilo que dizem que quem gosta de pica mesmo é viado e de que mulher gosta mesmo é de dinheiro. É por aí, este raciocínio chega perto da verdade, daí porque existe e se chegou ao casamento. O casamento é um papel que garante o dinheiro para a mulher, um relacionamento em que ela tem um homem para sustentá-la, bancar a boa vida, daí porque com o tempo, as mulheres casadas acabam procurando um homem com cacete suficiente para administrar suas tesões.

 

Cansei de sair com noivas. Uma noiva uma semana antes do casamento fez questão de dormir três noites comigo. Eu entendia, ela precisava garantir sua vida, sua estabilidade, sua segurança.

 

Agora, uma menina do Tempo, que saiu comigo durante um ano, mandou um convite de casamento e dentro um bilhete fixado com cola. "Precisamos nos encontrar antes da minha lua de mel".  São os cornos pré-datados.

 

O que mais me impressiona é a quantidade de mulher mal comida, mal amada e mal relacionada. São mulheres com camisinhas, com data de vencimento, vencidas. Elas têm as camisinhas na expectativa de que um homem determinado apareça e as camisinhas acabam vencidas. São trepadas com prazo de validade vencida. Aí há um grave risco, todas estas camisinhas rompem e é uma merda.

 

Estou livre e preciso construir esta minha liberdade com trabalho e organização. Parei de beber e estou emagrecendo, vou fazer 38 anos e tenho que tomar alguns cuidados e fazer alguns exames tipo chekup. Cheguei a pesar 20 quilos a mais do que o meu peso normal, já perdi 10 quilos e vou emagrecer mais. Voltei a caminhar e a correr todos os dias. Morando aqui e ali, já fiz um mapa das  pistas de Cooper das imediações dos apartamentos onde durmo.

 

No centro, a pista do parque é uma pista popular que está melhorando a frequência. A pista da avenida Bandeirantes é  de pessoas com uma faixa de renda melhor, a pista aqui da avenida dos Andradas é de um pessoal inferior economicamente ao pessoal da Bandeirantes. É a nossa cidade, ela se divide, se exclui e se contamina.

 

Depois de  três separações, aprendi a viver com poucas coisas, tenho duas malas e uma mochila. As malas guardam um pouco mais de coisas e as mochilas têm o essencial, é a escova de dentes e duas mudas de roupas limpas. 

 

 

20

 

 

Só me resta a felicidade

 

[...] nenhuma coisa, nenhum eu, nenhuma forma, nenhum princípio é certo, tudo se encontra numa transformação invisível e incessante, no instável há mais futuro do que no estável, e o presente não é senão uma hipótese que ainda não superamos. O que [Ulrich] poderia fazer de melhor senão manter-se livre desse mundo, naquele bom sentido com que um pesquisador se mantém livre diante dos fatos que o querem seduzir e fazer acreditar neles precipitadamente?!

A exatidão será, paradoxalmente, o reconhecimento da imprecisão dos fatos e da impossibilidade de verdades definitivas. (*)

 

 

 

 

Quem sou eu?

 

O que serei?

 

O que posso ser?

 

 

A identidade me foge e onde me perco?

 

O que o passado impõe e limita?

 

O que serei?

 

É uma pergunta que pretende uma resposta acabada? Serei Y, algo que me contenta e me faz feliz e livre.

 

O que serei? Indaga possibilidades, alternativas, pressupõe alternativas. Serei o que posso ser ou poderei ser além do que posso ser? 

 

(E o aquém? Serei aquém das minhas possibilidades de homem, de ser humano?)

 

A um homem que só lhe restar a felicidade, responderia positivamente?

 

- Só me resta a felicidade.

 

Soa como uma condenação.

 

- O homem está condenado à liberdade - diz o francês.

 

O que posso ser? É indagação que sugere a elaboração de uma lista de possibilidade e de possibilidades relacionadas a oportunidades.

 

Na coluna de possibilidades, a felicidade. Na coluna de oportunidades de se ser feliz, total. As oportunidades são amplas e percorrem todas as coordenadas, todos os pontos e momentos de uma vida.

 

Ao longo da vida, o homem sempre desperta com este tipo de questionamento. Nem sempre dá importância a este fato.

 

Há a possibilidade de mudanças e de aprimoramento. Não respondem, de imediato, a este questionamento. 

 

Aos oitenta anos ainda pode questionar-se, ainda lhe restará algumas possibilidades, às vezes radicais.

 

Há cada tempo, este questionar-se traduz-se pelo, permanente, avolumar-se, pelo permanente crescer. Chega a tornar-se maior do que a vida, dominar a vida, impedir a vida, paralisar a vida.

 

“Eu preciso responder e andar, fazer alguma coisa”.

 

O que o passado impõe? Está na feitura da lista das possibilidades. Há uma “riqueza” construída, há um caminho feito e que indica um caminho a fazer, há relações construídas e há uma malha tecida. Aí as limitações e/ou as fabulosas aberturas liberadas pelo passado. Serão limitações e elas, certamente, existem, quando consideradas impeditivas do crescimento e/ou destruidoras de qualquer futuro...

 

- “Eu posso ir embora. O senhor não pode. Eu tenho o mundo, o senhor tem aquela mesa pesada. Para sair, o senhor teria que se desfazer dela ou arrastá-la sempre. Eu sou um homem leve e o senhor é um homem pesado. Ppreso naquele pé de abiu, que alimentou suas fantasias de menino e a sua juventude. Eu estou leve e nenhuma árvore de frutas me prende porque eu não tenho e nunca tive um pé de abiu. O mundo todo é meu, o senhor tem apenas esta fazenda e por ela o senhor perde a vida”

 

(O empregado da fazenda do tio da Áurea, ao ser despedido)

 

... ou poderão metamorfosear-se, de limitações passarem a ser trampolins para maiores e mais distantes saltos, fabulosas aberturas - é a aventura do intelecto, do espírito em crescimento permanente, mesmo na mais profunda obscuridade, mesmo nas limitações do apenas registrar, registrar, acumular, acumular. É a grande aventura, a fabulosa aventura do crescimento vertiginoso do espírito e de sua história e de um homem só.

 

 

O que um homem mais velho, tendo ultrapassado etapas de iniciação e de produção, avaliaria, em função de permitir a outros reduzir etapas, eliminar volteios e tempos perdidos?

 

- Digamos, eu me assusto com a quantidade de pessoas atrás de uma profissão, de um documento profissional, de uma definição de atividade.

 

- De uma qualidade. Um carimbo.

 

Outra questão:

 

A declaração de amor. Por que declarar amor? A pessoa precisa dizer o amor que sente?

 

Rita conta histórias de pessoas que tiveram a experiência de sobreviver  depois de um período entre a  vida e a morte. Um programa do “Globo Repórter”: uma mulher no CTI percebe o que acontece em volta do seu leito, o drama dos outros pacientes, cenas que apenas ela assistia, que mais tarde checou, a relação dos pacientes próximos. O episódio do seu grande amor pela “vó Gorda”. A família não havia avisado o que acontecera com a neta, preocupados com a saúde da avó. Ela imagina-se e se vê indo até a avó, vê a avó e ela a ouve chamá-la. Em seguida, quase instantaneamente, a avó liga procurando saber notícias.

 

- Entra o que indago: o amor deve ser declarado?

 

Já imaginou, você que vive um grande amor por outra pessoa e que nunca se revela, nunca se declara?

 

Os amores de Dante e de outros grande apaixonados, que sempre viveram apaixonados e que jamais declararam, em tempo útil, o amor amado à pessoa amada.

 

 

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Como um jogo de xadrez

 

 

"A exatidão será, paradoxalmente, o reconhecimento da imprecisão dos fatos e da impossibilidade de verdades definitivas."

"Quando associada ao espírito ensaístico, promove a convivência entre os âmbitos objetivo e subjetivo, sem que um se sobreponha ao outro, de modo que, no seio da obra, funda-se um campo intermediário entre pensamento e alma, ou ciência e arte." (*)

 

 

 

Esta estranha sensação em que não se consegue ficar mais em lugar nenhum. Em todos os lugares que chega, logo depois tem vontade de sair, e sai por toda a cidade, sonhando em chegar na caverna, no seu esconderijo, onde, ultimamente, se sentia melhor, sozinho.

 

Mesmo ali não consegue ficar mais do que algumas horas.

 

Sair para a casa paterna. Na casa paterna é difícil quase impossível ficar, já pensa em ir para a casa dos filhos. Na casa dos filhos pensa em ir para a casa da Pula, na casa da Pula é pular e sair, sair para a rua, onde o que mais faz é caminhar. Caminha, caminha e já que ir para outro lugar, deste outro lugar já pensas em ir para o Tribunal. Do Tribunal  ir para a editora. Da editora para a caverna, para o esconderijo. Em lugar nenhum sente bem, não se sente bem com o ar, com a terra, com o mundo, com este mundo. Então por que não fazes um outro mundo? O que o impede? O que o impossibilita?

 

Fazer um outro mundo exige apenas criatividade - só.

 

Às vezes ser criativo é cansativo, e se os instrumentos da criatividade se se limitarem às palavras. Ah!, então, é como assegura-nos Balzac, escrever é mais difícil do que conduzir exércitos na mais grandiosa das batalhas de Napoleão.

 

Observo as pessoas que escrevem, os escritores de histórias infantis, os poetas, os romancistas que passam pela editora.

 

Chega um senhor, já velho, quase morto, cansado, trazendo um livro pronto, o seu livro - apanho este porque ele não é um escritor profissional.

 

Hoje, temos escritores com 27 anos e 31 livros publicados. Alguns com boa vendagem em todo o País.

 

Este senhor que carrega sua história tem do livro uma outra dimensão. Se decidiu sair de casa, com aquele calhamaço debaixo do braço, está certo de que tem o livro, o seu livro, concluído.

 

O que é um livro para ele? É um bem precioso, suas palavras, com toda a certeza, foram garimpadas, não estão entrando de qualquer jeito nas frases e as frases foram escritas mil vezes, desde que ele muito jovem, anotava, num pedaço de papel, em qualquer pedaço de papel, suas histórias, suas reflexões.

 

Tudo o que está anotado no seu livro tem vida e é verdade. É a sua verdade, mesmo aqueles casos estranhos, contados a ele por pessoas de credibilidade.

 

O "eterno artifício" da épica

"Sendo a realidade uma utopia, a representação da história como uma sucessão lógica e linear não passa de um artifício que obedece à necessidade humana de solidez e segurança.

"Nesse sentido, o romance apresenta também o mundo dos eventos, mas, antes, visando revelá-lo como eterno retorno, como um mundo em que "sempre acontece a mesma coisa" ("Seinesgleichen geschieht", título da segunda parte do livro).

"O problema da fabulação épica do escritor corresponde ao conflito existencial da personagem porque, no bojo de ambos, está o ocaso da experiência e a perplexidade diante de um processo crescente de "abstração da vida".

"No fim da primeira parte, o pressuposto de composição da obra se converte na grande revelação de Ulrich: a de ter perdido o "fio narrativo" da própria existência - essa necessidade de "enfileiramento de tudo que acontece no tempo e no espaço", que não é apenas uma convenção literária." (*)

 

 

(*) O romance possível - ensaísmo e narração em O homem sem qualidades, de Robert Musil    Érica Gonçalves de Castro 

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142017000100361

 

 

Ainda Musil

 

 

1. A articulação entre intelecto e sentimento, entre elementos ensaísticos e narrativos, reproduz, necessariamente, o ritmo autêntico dos fenômenos da realidade efetiva, que não é, de modo algum, linear.

Dentro de uma realidade que é a realização momentânea de uma história entre outras possíveis, toda empresa humana será um ensaio e toda existência, um poema - ou romance - a ser escrito.

 

2.  A semelhança promovida pela imagem não corresponde a uma lógica usual; ela é, antes, "aquela ligação de ideias que reina no sonho, deslizante lógica da alma, à qual corresponde o parentesco das coisas nas intuições da arte e da religião".

"A alma 'desliza' porque jamais uma fórmula, seja uma lei científica, uma regra moral ou um termo linguístico é capaz de prever a transformação que atinge o universal por meio do individual".

3.  A vida se tornou "insuportável para seres pensantes"

Assim, o romance não almeja a utopia, e sim torna-se ela própria: ao adotar uma forma singular, mas numa linguagem clássica, ele nos faz experimentar a nossa própria realidade, só que de uma outra maneira.

 

4.  Das "lacunas entre catástrofe e redenção", a obra constrói uma "utopia do aqui e agora"em que o universal é passível de ser transformado por meio do individual. E o porta-voz dessa utopia só poderia ser um personagem cujas qualidades mais flagrantes fossem o espírito ensaístico e o senso de possibilidade.

5. O homem sem qualidades é um dos romances do século XX que mais exigem "capacidade e desejo de abstração" de seus leitores - condições que Musil reivindica em "O escritor nos dias de hoje"- por representar, de forma plena, a impossibilidade tanto de uma existência organizada no tempo e no espaço quanto de uma recusa radical desses limites.

6. Como se pode ler numa anotação deixada por Musil e que integra a parte inacabada do romance: "Guerra é o mesmo que outro estado, só que misturada ao mal [...] uma fuga da paz".

"Guerra é ... uma fuga da paz".

 

7. "Não que amassem a todos que viam e a tudo o que acontecia: apenas sentiam a linda sobra do 'como seria' caindo sobre seus corações..."

 

8 .Na origem do substantivo Eigenschaft está o adjetivo eigen, que significa "próprio", "específico", "característico". Não há, portanto, uma conotação moral, como a tradução por "qualidade" em português pode dar a entender.