A arte de caminhar
E as possibilidades da vida escrita a partir de Musil
Rufino
Fialho Filho
"Os primeiros esboços de "O Homem Sem Qualidades", de
Robert Musil, datam de meados da década de 1910, o primeiro volume foi
publicado em 1930 e o segundo, sob insistência do editor, dois anos mais tarde,
ainda inacabado.
"Cerca de cinco mil páginas manuscritas, entre material publicado,
variantes de capítulos e anotações foram sendo acumuladas ao longo dos anos,
formando o arcabouço de uma obra cuja elaboração se tornava cada vez mais
complexa."
"A história desse romance é aquela que deveria ser contada nele,
mas não o será" - com essas palavras o escritor austríaco Robert Musil
procurava apresentar, numa entrevista, o tema de seu romance O homem sem qualidades, obra
cuja elaboração estendeu-se por mais de trinta anos, e que permaneceu
inacabada.
O romance
possível - ensaísmo e narração em O homem sem qualidades, de Robert
Musil Érica Gonçalves de Castro (*)
1.
Dos peripatéticos até
os carteiros
Não há outro meio de
levar a ideia, a notícia, a carta, senão caminhando e, quando se caminha, em
qualquer caminho, até no espanhol, se caminha para ligar, religar, fundir,
dizer, transmitir, criar, anunciar, interpretar
No relato da experiência
da terapeuta Anna Sharp, a experiência de caminhar é uma forma de autoconhecimento
e reflexão.
Anna criou um
trabalho cuja chave é ensinar cada um a aprender a conhecer os sinais do seu
caminho
Caminhar, caminhar e
caminhar pelo menos durante 2 horas para o organismo fabricar a endorfina,
droga segregada pelos tecidos nervosos que é expansora da
consciência.
O andarilho
Tcioran e Nietszche
Um andarilho vai pela
noite
(Um andarilho anda
apenas pela noite?)
A passos largos;
(andarilho que anda
rápido, tem objetivo, lugar para chegar, andarilho não)
Só curvo vale e longo
desdém
São seus encargos.
A noite é linda -
Mas ele avança e não
se detém.
Aonde vai seu caminho
ainda?
Nem sabe bem.
Um passarinho canta
na noite:
“Ai, minha ave, que
me fizeste!
(Ah! Minha estrela,
sai daí!)
Que meu sentido e pé
retiveste,
E escorres mágoa de
coração
Tão docemente no meu
ouvido,
Que ainda paro
E presto atenção? -
Por que me lanças teu
chamariz?” -
A boa ave se cala e
diz:
“Não andarilho! Não é
a ti, não,
Que chamo aqui
Com a canção -
Chamo uma fêmea de seu
desdém -
Que importa isso, a
ti também?
Sozinho, a noite não
está linda -
Que importa a ti?
Deves ainda
Seguir, andar,
E nunca, nunca, nunca
parar!
Ficas ainda?
O que te fez minha
flauta mansa,
Homem da andança?”
A boa ave se cala e
pensa:
“O que lhe fez minha
flauta mansa,
Que fica ainda? -
O pobre, pobre homem
da andança!”
O homem da
andança
Tcioran e Nietszche
Naquela esquina, ele
dominava a cidade
e o céu
O que mais quer ainda
este pobre
homem da andança?
Um andarilho atravessa
a noite,
diz Nietszche
Um andarilho não anda
apenas pela noite
Anda no amanhecer
de Zaratustra
entre todos e ninguém
e não a passos largos
Andarilho que anda
rápido tem objetivo, lugar para chegar.
Andarilho, não!
Andarilho fala com o
vento
e com as aves
“Ai, minha estrela,
que me fizeste!
aceleras meu
caminhar,
atropelas minhas
pegadas
e não corres, voas
parada, sempre no mesmo lugar
e eu em todos os
lugares,
sempre no mesmo lugar
Eu percorro caminhos
e as estrelas?
Dos Poemas, 1871-1888
2
O andarilho
“Andarilho é o homem,
seu dever é vagar
Para descobrir em
outro lugar um lar imutável.”
As palavras da
loucura, Schiller
"Ora, se o conteúdo de um
romance, como diz a célebre formulação de Lukács, "é a história de uma
alma que sai a campo para conhecer a si mesma", o que esperar de uma
narrativa na qual o conflito do herói consista na perda do "fio
narrativo" de sua vida, na busca por uma outra forma de vida, mais
legítima, dentro dos limites impostos pela realidade empírica?
Esse complexo projeto romanesco
tinha por tarefa responder a duas questões fundamentais: como o homem moderno
deve se comportar espiritualmente em relação à realidade e qual seria o romance
possível naquele mundo entre guerras, onde a literatura não podia mais atribuir
à vida uma causalidade da qual ela mesma não é capaz". (*)
Excluído da família,
um sem-família, caminha pela cidade, completamente solto, livre....
Não sei se livre. Desarvorado,
sim, em meio às árvores das avenidas, com mil sofrimentos, mil pensamentos.
Eu pisava as ruas da
capital como todos os outros andarilhos as percorrem, com o mesmo sofrimento de
todos eles, olhando pessoas, não olhando, olhando casas, prédios, lugares, não
olhando, estando lá, passando por lá. Lembrando-me de Dostoievsky de Noites Brancas e de
Steimberg de um livro de histórias sobre um vale e a sua cidade -
principalmente da aproximação.
As casas e seus
habitantes, a vida e as suas manifestações. As alegrias e as tristezas.
Caminho em direção
permanente ao outro. Muitas vezes percorria distâncias incríveis apenas dentro
de mim e assustava-me quando descobria onde havia chegado, o caminho que
percorrera sem ver, sem ser abordado e sem ser atropelado (exatamente isto:
sobrevivente do acaso).
Aos poucos percebia
meus parceiros, os outros andarilhos, muitos tão profundamente dentro de suas
vidas e de suas histórias que os imaginava maravilhosos embora soubesse, como
poucos, a imensa profundidade daquelas descidas - este é, não sei se, o mais
desastrado de todos os mergulhos.
Percebia-os pelas
roupas, pelos cheiros, barbas grandes, pelo caminhar (vi neste trajeto muitos
ex-andarilhos e perdi de vista alguns andarilhos, não aqueles que faziam
sempre, infinitamente os mesmos percursos, os mesmos trechos).
Sentia-os na não solidariedade,
na indiferença, mergulhados em seus mundos, às vezes, lado a lado, cansados, em
um banco de praça, comunicávamos nossos silêncios, nossas profundidades,
perdidos e dostoievskianamente humilhados e ofendidos... ou não.
Captava-os, amigo,
nas suas sombras e nos seus lugares, sabia-os por locais baldios e em
podridões, onde outros homens não aventuram se aproximar, narizes sensíveis e
almas limpas.
Capturava-os em mim,
na minha aventura para o descobrimento das avenidas largas e das imensidões dos
céus nos vales de uma cidade comprimida pelas construções e pelo cinza de suas
paredes.
Aqueles que
conhecerão os percursos possíveis das mentes sofridas, um dia dirão de que é
capaz este imensurável mergulho. Se suas cabeças caem para o chão, isto não
significa nada. Se falam sozinhos, isto não significa nada. Para os estudiosos
do cérebro hoje pode significar uma alucinação, um complexo diálogo com o
inferno e/ou com o céu.
“... o pobre irmão se levantava, a boca apodrecida,
os olhos arrancados - tal como ele se sonhava! -
e me arrastava pela sala,
berrando seu sonho de idiota aflição”.
Arthur Rimbaud
3
O homem inacabado
“A metade que parecia dele ficou
a esperar a outra,
que se forjava na cidade dividida.
Não conseguia juntá-las...”
Cadernos de João, de Aníbal Machado
"Ao assumir o desafio de
adotar a forma romanesca para narrar uma aventura intelectual, a obra parece
ter sido, desde o início, destinada ao inacabamento. Mas o esforço de Musil em
representar, com a maior amplitude possível, o homem moderno em sua dicotomia
essencial - "capaz da mais elevada exatidão e da mais extrema
dissolução"-, torna O homem
sem qualidades uma obra de fato interminável, "um admirável
monumento em ruínas" , mas com linhas de força muito bem definidas, que
apontam com toda clareza para a catástrofe eminente."
"Ele via no romance uma
forma de intervenção na realidade muito mais eficaz do que as ciências ou a
filosofia - que, segundo ele, não estariam devidamente habilitadas para o
desafio de superar a alienação e a inércia predominantes. "(*)
Eu conheci um homem
inacabado. Era um sujeito altivo. Ele não buscava nem mesmo a sua
outra metade, que sabia existir. Isto já seria demais. Buscava-se quase na
totalidade do mínimo ser. Qualquer traço já seria alguma coisa, um ponto de
partida. Um traço de caráter. Uma renúncia. Uma glória. Nada.
Não era nem mesmo
metade e nem mesmo inacabado. Absurdo seria dizer que este homem não
conseguiria jamais ser nem mesmo um homem começado. Como não é esta a linguagem
que falo agora, digamos que este homem que eu conheci muito de perto tenha sido um projeto, um homem projeto, um
homem projetado, pensado e que quase começou.
Uma construção
imaginada, projeto de arquiteto, diante do papel branco, já desenhado. Cada
pedaço encontrado pouco preenchia.
Assim, tudo era
incompleto, inacabado, insustentavelmente inapelavelmente inacabado porque não
completamente começado, nem mesmo pensado, sequer imaginado.
Sua tragédia ou seu
talento estava em ter tomado conhecimento desta impossibilidade de
completar-se, da sua impossibilidade de começar.
Ele aceitou o
inacabado e aventurou-se em supor-se completo, na possibilidade de
visualizar-se como metade em busca de uma outra metade, quis que a metade
existente tornar-se conhecida de si.
Incrível aventura.
Conhecer-se a si mesmo... pela metade ou pelo menos a metade ou quase a metade.
Examinou todos os
homens completos possíveis, como examinou modelos plutarquianos e não
plutarquianos além dos modernos modelos virtuais.
Mais do que uma
escalada a mil Everest - fato possível - era chegar ao cume da metade de si
mesmo - fato impossível - mas imaginável, potencializável, não por ele, mas por
um homem, ou por todos, algum dia.
*
“Absurdo seria dizer
que este homem nem mesmo era um homem começado”.
Homem individuado é
um ser único, total, completo. Individuado em que? Único em que? Completo em
que? É indivíduo enquanto é um ser especial, diferente, não repetição, não
referência de um, embora passível de referência para outro. Ser indivíduo, ser
especial, significa que é e esgota-se como ser.
Assim, não haveria
possibilidade de não ser começado. Ao ser já é. Impossível de
ser projeto? De querer ser algo, supostamente, criado a partir da
vontade, de dados, de conceitos, de hipóteses estudadas, descartadas e
aproveitadas, de possibilidades, da razão. Não há querer no ser, se o ser é, se
ser já é, se ser totaliza-se apenas no ser, na simples essência de ser.
Se um homem existe ,
ele o é integralmente homem e o seu destino, suas possibilidades, suas
aventuras e suas totalidades. O homem ao
ser, acaba-se; ao existir já é. Se não é individuado está aberto, pronto, a
todas as individuações e/ou coletivizações possíveis.
Ao ser seria dada
todas as possibilidades existentes na concretização do ser homem, ao homem
seria dada todas as possibilidades de ser um homem feliz em meio a todas as
condições adversas e a todo um destino adverso.
Não importa, há a
possibilidade e o ser feliz ou o ser infeliz está em aberto. Vale a
vontade.
“Uma obra consumada não seria necessariamente
acabada e uma obra acabada
não seria necessariamente consumada”.
Baudelaire citado por Malraux,
citado por Merleau-Ponty
“A cultura jamais nos
dá, pois, significações absolutamente transparentes, a gênese do sentido jamais
se conclui”.
“Ora, se expulsarmos
do espírito a ideia de um texto original, do qual a linguagem seria
a tradução ou a versão cifrada, veremos que a ideia de uma expressão completa é
um contrassenso, que toda a linguagem é indireta ou alusiva e, se
quisermos, silêncio”.
Maurice Merleau-Ponty, in A linguagem indireta e as vozes do
silêncio, Editora Abril
“Como sempre em arte, fingir para tornar verdadeiro”.
Sartre citado por Merleau-Ponty
“O poeta é um
sofredor,
finge que é dor, a
dor
que deveras sente”
Fernando Pessoa
4
A água sobe no rio
Solimões e entra nas cidades à margem, as casas são invadidas e os homens
sobrevivem espremidos entre o piso de madeira de suas casas de palafita e o
teto. Eles foram subindo os assoalhos à medida que a água subia. Agora estavam
a menos de um metro do teto. Não se prepararam e nem se preparavam para depois
do teto. Não se afastavam de suas “coisas”, da casa, dos utensílios domésticos,
das roupas, dos mantimentos do dia a dia, de cada peça duramente conquistada.
5
O silêncio de pai
Depois da segunda
operação e de ficar com a abertura no intestino, colostomizado, pai não mais
falava. A voz não saía. Explicação médica: devia-se ao processo de entubamento
de oxigênio durante a operação. As cordas vocais foram afetadas.
Não consigo entender
seu silêncio. Parado na sua frente, olhando o seu corpo magro, pele e osso,
braços finos, ombros à mostra, rosto seco. Pai se cala para tudo.
Acredito que ele
optou por calar, falar para ele tornou-se cansativo, sem sentido, impossível ou
desnecessário.
Agora os diálogos possíveis
estão nos olhos - se quisermos ouvi-lo devemos olhar em seus olhos.
Alguns dias depois,
pai levantou falando normalmente. Recuperara a voz.
Naquele dia,
tornou-se crítico e ácido com Mirtes, “aqui, eu mando”, percorrendo um caminho
em que seu rosto revelava seu inconformismo.
Ele não sustentou
durante muito tempo a sua voz normal e não durou nada a sua vontade de
manifestar-se.
Calou mais
uma vez. Já era uma voz cansada, já era um raciocínio quebrado por
esquecimentos. Mais esquecia do que lembrava.
Já era uma voz diante
de uma porção de vozes de jovens e de pessoas maduras, que se expressavam, com
talento, sem esquecimentos e com vida.
Ele calou-se e ele,
se ouvia, pouco ouvia.
"Musil tinha a clara convicção de que era preciso superar a ideia
corrente de que existem duas formas opostas de conhecimento, para que os
métodos e práticas das ciências exatas pudessem ser transpostos para domínios
mais "inexatos", como o do sentimento e do espírito. Somente dessa
forma seria possível uma reflexão sobre os fenômenos que não excluísse a esfera
subjetiva.
Sua missão é "descobrir constelações, novas variantes, construir
modelos atrativos para o homem; enfim, criar o homem interior".
O que o homem vive e experimenta depende, porém, de condições
exteriores; esse "homem interior" a ser criado é, portanto, aquele
que vislumbra formas de vida que não as familiares, ou as da realidade
efetiva." (*)
6
O homem adia a vida
Viverei amanhã
Amanhã, terei uma
casa
Amanhã, viverei
Adiando a vida
Agora é lutar,
ralar, se ralar
Vou viver no final de
semana
Aí, olho o sol e o
céu
Depois é trabalho
ou não trabalhar
É não viver
Vou viver no final do
mês
aí vou ao
supermercado
Vou adiando a vida
Minha mulher está aí
amanhã vou amá-la
Vou adiando a vida
sem entender
o que é a vida
7
Veja, este homem que
caminha
apressado, passos
curtos, sua pasta
debaixo do braço
Este é ele
Um homem arquivo
Chama-se Charles,
Charles Maurice
Menescal
Ele tem todos os
documentos
É um homem arquivo
Veja como ele caminha
É o caminhar de quem
recolhe
todos os papéis,
todos os dados
para a sua grande
pesquisa
é pesquisar,
arquivar, sonhar,
Enquanto isto, o
lixeira escreve
suas histórias e
ganha prêmios,
transforma-se,
torna-se talento
Enquanto isto, a
mulher desespera-se
e à noite deita-se ao
lado do homem metal
Charles ergue-se
sobre todos
e arquiva tempos e
nomes
datas e tudo o que
sonhas,
em todos os tempos,
O homem arquivo
arquivou a vida
8
As questões de um homem de oitenta
Quando eu crescer, eu
serei... serei a flecha veloz, o touro bravo ou sentado, eu serei médico, um
homem das almas e dos sonhos, o intérprete da loucura e de todas as
alucinações.
Quando eu voltar de
Kiev, traçarei outros caminhos, nada, nada me amarrará. O que me amarra?
Me amarra a placidez
de Hemengarda, a viuvez de Estergilda, a voz rouca de Lenora, tudo me segura
nesta cidade, o rio destruído e a ainda bela paisagem, correndo entre pedras em
seus mil quilômetros de gritos indeléveis.
O que me amarra é o
sonho de Petrarca em busca de sua Laura. (Dante fique
esperto).
Não posso me prender
em séculos que não me dizem mais nada. O que faço nos trecentos se nem em
inferno posso sonhar?
Quando eu crescer...?
9
O homem bom
"Cabe à literatura imaginar uma tal forma, suscitando condições de
transformação da experiência humana - e não apenas de descrevê-las ou
representá-las com a pretensão de forjar uma realidade explicada." (*)
- Meu nome é Nogueira...
- Nogueira?
- Basta, só Nogueira
como o Ulrich
bastou para Musil. Tenho mais de 50 anos, 53, sou hoje. Agora, sou um homem
sozinho. Estar só tem a complexidade da solidão. A solidão, a complexidade do
necessário. Sou um homem e o seu deserto. Um homem com saudades de si mesmo.
Por que? Tive muitos filhos. Não fui um bom homem de família. Nem
chefe de família. Recusava a relação de chefia com pessoas íntimas e chegadas.
Nem pai de família, queria ser apenas um da família.
Isto é, não se pode
dizer, categoricamente, que eu não tenha sido um bom pai, me esforcei e me
esforço muito por isso.
Pode-se, entretanto
dizer categoricamente que, muitas vezes, muitas vezes, não agi em função da
família, da sobrevivência do grupo organizado e estabilizado em torno de
pessoas. Esta questão me intriga. Gosto dos meus filhos, de todas as minhas
ex-mulheres. Nas relações, as crises sucessivas atingiram pontos de difícil
superação e o seu final foi um acontecimento, aparentemente, natural.
Explodiu o grupo em
uma manhã. Não foi cada um para um lado. Foram todos para um lado e eu para o
outro lado: para fora.
Saí de casa, saí da
minha casa, saí da casa onde morei uns bons anos, saí da casa onde estão os
quartos dos meus filhos e a cama da minha ex-mulher. Ela já não era mais a
minha mulher, mas ainda era uma pessoa querida, admirada e sempre perdoada,
valia para ela e era natural (?) que assim fosse, pois assim caminhávamos.
A partir daí os laços
foram se esgarçando, meus filhos, por mais insistência, por mais presença,
foram se tornando pessoas estranhas, talvez eu não compreendesse o crescimento
deles, eles também sofriam e cresciam. Amadureciam? Isto é muita covardia.
Enfim, hoje, anos depois, sou um homem sem família.
Não que não tenha
procurado a minha estabilidade e as minhas novas emoções, como não quer dizer
que não tenha procurado refazer-me, o que sempre havia feito. Procurei. Com uma
mulher, passei a reconstruir-me. Aí talvez resida a dificuldade de hoje.
Não tenho conseguido
esta reconstrução, talvez porque eu me procure e na reconstrução a lógica que
impera é a lógica do conhecido e não a lógica do novo, do desconhecido. Cada um
para um lado.
Uma criança nasceu,
uma nova filha. Ela está aí, vida, alegria. Pura felicidade.
Pela primeira vez, faço
o que sempre mais gostei de fazer, estar perto, demasiado perto do crescimento
de uma criança. Ela se desenvolve e eu acompanho. Ela é hoje a minha única
tábua de salvação. E na tempestade, o tufão. No oceano, estou sozinho, sem
nada, senão ondas e abismos, quedas e escalas.
É um homem e o
deserto. É um homem com saudades de si mesmo. Saudades de alguém que ele viveu,
imaginou viver, criou e/ou a expectativa futura de ser.
A solidão do deserto
quando não produz profetas, produz homens. É a dimensão verdadeira do homem,
suas reais possibilidades.
Traduzir solidão por
dor, desespero, é caracterizar uma demanda: a demanda do outro.
A solidão do outro em
si não é solidão, é ser e ser o outro, há quem não consegue ser só, só é ser se
o outro existe, o outro passa a ser sua cara, mais ainda sua pele, seu suor.
A tragédia só ganha
todos os ares de grandiosidade, quando o ser só consegue ser pela cabeça, pelos
pensamentos do outro: fato muito comum nas religiões e nas relações simbióticas
com os mitos e astros, com os sonhos e dogmatismos.
10
Tcioran e eu
Apud Borges
"Pois é interessante observar que numa conferência proferida cerca
de vinte anos antes - "O escritor nos dias de hoje", de 1934)
- Musil já desenvolvia reflexões análogas: segundo ele, o romance
contemporâneo não podia mais focalizar apenas "destinos individuais"
(ibidem, p.1248) porque, àquela altura da história, o indivíduo passara a ser
apenas mais um elemento num grande todo, e suas forças morais teriam se tornado
muito frágeis em relação ao mundo que o cerca, de modo que a literatura não
podia correr o risco de "reforçar seu enquadramento" nessa ordem
opressora." (*)
Eu conheci Tcioran
ainda menino, menino preto queimado de sol, correndo descalço pelas ruas da
cidade de Teófilo Otoni, no Mucuri. Via aquele menino de longe, quase sempre de
muito longe, pois são ainda esparsas as notícias que eu tenho dele.
Lembro dele deitado
no chão da varanda em conversas demoradas com as nuvens, lendo nos céus gente e
animais em formas e composições às vezes belas, outras
monstruosas. (A palavra que diz isso, total imaginação)
Também deitado sobre
uma mesa enorme no terreiro de secar café, à noite, segurando uma montoeira
imensa de estrelas no céu, até se fixar em uma - era difícil. Lendo naquele céu
imenso e iluminado pelas estrelas histórias fantásticas e deliciosas.
Lembro do menino do
porão e de suas muitas fantasias, cada canto do porão, organizando os espaços.
Debaixo da casa real uma casa iria surgir para amar e para guerrear.
Aquele menino e suas
amizades com os gatos, cachorros, cavalos e bois. A tragédia do enterro do
gato, quando os pequenos atores levavam a sério a história e o
gato não. Ele reagiu. Apavorado, não aceitou o seu enterro.
O menino negocia com
os ciganos e parte para explorar as redondezas da cidade, as proximidades da
casa, as proximidades do colégio até a grande aventura da estrada.
O menino e o cinema,
com os seriados semanais no cine Poeira, Roy Roges, Ulysses, Zorro, Super
Homem, depois do filme, o seriado e a continuação na próxima semana com o
artista principal ou um seu aliado correndo sério risco.
Lembro do menino na Rua
das Putas com as puas velhas e com a puta gordona.
Acompanhei este
menino pelas estradas de Teófilo Otoni a Pavão.
* Com Tcioran
aconteceram muitas coisas, muitas aventuras, muitas paixões e mais do que tudo
uma fabulosa aventura na imaginação, além do mais complicado uma persistente e
dolorosa interrogação de si e de ideias, de pessoas e de sonhos. Pude
acompanhar alguma coisa de perto. Vou falar do que vi e dos nossos diálogos,
conversei algumas vezes com Tcioran, do que anotei tenho memória, do que apenas
falamos em nossas muitas caminhadas não tenho mais nada.
* Eu caminhei Belo
Horizonte milhares de vezes, mil ruas e avenidas, subi e desci muitos morros e
ainda não conheço a cidade.
Se me surpreendo
dentro de uma casa, cuja fachada sei de cor, seria capaz, como um bom detetive,
de falar sobre a estrutura da casa, disposição dos quartos, da sala,
aventurando-me sobre seus primeiros donos, seus primeiros inquilinos e até
mesmo passar a mão em uma parede onde uma mocinha deu seu primeiro beijo na
boca de um namorado perfumado e suado.
Estou perdido e
distribuído por toda a cidade, se meu perder não for total é porque a própria
cidade me acha e me recolhe acolhe. Se reclamo das minhas caminhadas repetidas,
mil vezes, para lá e para cá na mesma avenida dos Andradas, eu dou o troco e
falo de cada milímetro do seu chão, de cada perspectiva do seu vale, de todas
as frases de seus imensos cartazes, ditos inteligentes e bons de venda porque
se vê e se lê.
* De Tcioran tenho
notícias constantemente são os amigos comuns e suas ex-mulheres (ele não
chamava-as de ex-mulheres, dizia minha mulher Isabel de Teófilo Otoni, minha
mulher Isabel de 68, minha mulher Isabel de Belém, não existia ex- ou passado
para ele em se tratando de amor e de vida).
Vejo seu nome sendo
discutido em rodas de políticos, uns a favor falando com euforia e alegria,
outros contra, outros detratores, outros inimigos elogiando para
fazer aparecer o ridículo das posições de Tcioran ou as suas contradições,
apontando com fúria seus pés de barro. Vejo seu nome em uma lista de
professores ou em um dicionário biográfico de jornalista do Estado de Minas
Gerais.
Eu e Tcioran.
Agradam-me uma boa
conversa, um bom amigo, ouvir relatos dos antigos e as experiências dos jovens,
a coragem e a audácia dos jovens, os erros e a visão que os jovens têm de seus
erros, principalmente as bem humoradas, os livros de aventura e os livros dos
filósofos;
Tcioran compartilha
essas preferências, mas de um modo vaidoso que as transforma em atributos de um
ator.
Qual seria a nossa
relação? Eu acompanho a vida de Tcioran e sempre estive com ele em todos os
seus momento. Não há nem conflito e nem hostilidade, como não há acordo e nem
desacordo. Nossa relação se pauta, da minha parte, pela observação, e o que se
pode dizer de alguém e o que se pode conhecer de alguém pela
observação, por uma e outra conversa, por um e outro encontro, em sua maioria,
ocasionais.
Observo essa obsessão
de Tcioran pela palavra, sua insistência em escrever, em se dizer, intimamente,
poeta, e em usar da poesia para apenas sobreviver.
Observo e leio tudo o
que ele escreve, porque ele insiste em me mostrar. Ainda não posso avaliar. Ele
está em permanente intervenções em tudo o que pensa, fala e escreve, reavalia o
feito e reinterpreta cada fato, ato ou pessoa.
Reescreve
permanentemente, ele é só um reescrevedor em busca da clareza e da síntese, da
pouca palavra. Essa vulcanização do seu viver e fazer é que me empolga e me
justifica.
Ele ainda não
publicou, nem pensa concretamente nesta hipótese, nem teme o que possa
acontecer caso tudo venha a se perder. Não porque não considere válidas as suas
páginas. Não fechou nenhuma avaliação e teme, treme, ainda diante do universo
planejado, das ideias concebidas e dos sonhos anotados.
Eu estou destinado a
perder-me, definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver em
Tcioran.
Tcioran desenvolveu
elementos de sobrevivência nos relacionamentos e, embora não concorde com
nenhum deles, eles devem ser melhor examinados, como, por exemplo, “seu
perverso costume de falsear e magnificar”.
“Spinoza entendeu que
todas as coisas querem perseverar em seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra
e o tigre um tigre”.
Tcioran não, ele quer
ser Borges, ele quer ser Shakespeare, ele quer ser Marx, quer ser Sartre, quer
ser Kierkegaard, quer ser Heráclito e Heidegger, quer ser Mao e Che, quer ser
sempre o outro, está sempre copiando, como faz agora, quer ser a pedra e/ou o
tigre, mas sobretudo quer ser Espinosa.
Querer perseverar em
seu ser, ele entendeu em ser depois dos diálogos com aquelas inteligências, com
aqueles espíritos, com aquelas consciências e com aqueles seres fundadores do
homem que se constrói aos poucos, muito aos poucos nestes longos tempos de se
ser e de se fazer o homem.
Eu permanecerei eu e
jamais serei Tcioran. Sei que sou alguém. Reconheço eu e ele, minha
participação no seu trabalho, minha estreita colaboração com o seu pensar e
ser. Eu me encontro em muitas de suas palavras, em quase todos os seus gestos.
A identificação é maior do que imagino, pois me percebo até no seu olhar e
quando compõe seu melhor poema.
Nunca tentei
livrar-me dele.
Muitas vezes nos
afastamos mas a troca de correspondência era mais do que diária, era um
escrever contínuo, um entender-se pela razão sem a razão. Muitas vezes percebi
que Tcioran tinha muito mais domínio sobre mim do que eu poderia aceitar, assim
pude perceber que muitas das minhas análises e visões de sua vida na realidade
eram visões e análises produzidas e estimuladas a partir dele. Decodifiquei
isto e tranquilizei-me.
“A minha vida é uma
fuga e tudo eu perco e tudo é do esquecimento, ou do outro”.
Conto de “O fazedor”
, Jorge Luiz Borges Obras Completas Volume II, Editora Globo
Borges e eu
Ao outro, a Borges, é
que sucedem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e me demoro, talvez já
mecanicamente, para olhar o arco de um vestíbulo e o portão gradeado; de Borges
tenho notícias pelo correio e vejo seu nome em uma lista tríplice de
professores ou em um dicionário biográfico.
Agradam-me os
relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o
gosto do café e a prosa de Stevenson; o outro compartilha essas preferências,
mas de um modo vaidoso que as transforma em atributos de um ator.
Seria exagerado
afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me deixo viver, para que Borges
possa tramar sua literatura, e essa literatura me justifica. Não me custa nada
confessar que alcançou certas páginas válidas, mas estas páginas não podem
salvar-me, talvez porque o bom já não seja de ninguém, nem mesmo do outro, mas
da linguagem ou da tradição.
Além disso, eu estou
destinado a perder-me, definitivamente, e só algum instante de mim poderá
sobreviver no outro. Pouco a pouco vou cedendo-lhe tudo, embora conheça seu
perverso costume de falsear e magnificar.
Spinoza entendeu que
todas as coisas querem perseverar em seu ser; a pedra eternamente quer ser
pedra e o tigre um tigre. Eu permanecerei em Borges, não em mim (se é que sou
alguém), mas me reconheço menos em meus livros do que em muitos outros ou do
que no laborioso rasqueado de uma guitarra.
Há alguns anos,
tentei livrar-me dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o
tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei que
imaginar outras coisas. Assim minha vida é uma fuga e tudo eu perco e tudo é do
esquecimento, ou do outro.
Não sei qual dos dois
escreve (ou escreveu) esta página.
"Seria preciso, pois, encontrar um caminho que mostrasse o sujeito
como parte de um todo e, ao mesmo tempo, acenasse com a possibilidade de uma
desvinculação dessa mesma ordem. Essa terceira possibilidade, em que
"novas constelações" se fundam, em que "as esferas interior e
exterior condicionam-se mutuamente" (ibidem, p.1249) é o programa que uma
obra como O homem sem qualidades pretende cumprir, ao
subordinar a narração de eventos - ou a representação de situações e
personagens num contexto específico - à narração de uma aventura intelectual de
um herói que tenta escapar dos perigos
da razão moderna."
Nesse sentido, Musil compõe o entorno de seu protagonista como um campo
de forças que, através do entrelaçamento das partes reflexivas e narrativas,
reproduz o ritmo autêntico da experiência humana, transformando o "fio da épica" em seu próprio
tema." (*)
11
O caráter do sexo
"A marca
característica do gênio é a lembrança universal de todas as suas experiências.
Através da lembrança, a experiência vivida se torna atemporal. A memória
transcende o tempo. E aquilo que transcende o tempo é somente aquilo que
interessa o indivíduo, aquilo que tem significado para ele, em suma,aquilo a
que ele dá valor. É o valor que cria a atemporalidade. Assim, o
gênio é o único homem atemporal. Com seu desejo apaixonado e urgente pela
atemporalidade, ele é o homem com maior desejo pelo valor. Exemplo de gênios
são o artista e o filósofo, que criam uma apresentação do mundo que é
imperecível, imutável e atemporal. A memória se relaciona com a lógica e a
ética. Por um lado, a memória constitui a base para o pensamento lógico. Assim,
se o homem fosse desprovido de memória, ele perderia a capacidade de pensar
logicamente, pois esta possibilidade está encarnada num meio psicológico. A
memória constitui uma parte necessária da faculdade lógica. A lembrança
contínua nada mais é do que a expressão psicológica do princípio de identidade.
Por outro lado, a base de todo erro na vida é o fracasso da memória. Somente
ela garante o arrependimento. Todo esquecimento é imoral. Nesta perspectiva, a
verdade deve ser considerada como valor real da lógica e da ética. Assim, a
memória não constitui um ato lógico e ético, mas é um fenômeno,
simultaneamente, lógico e ético"
"Sexo e caráter,
Otto Weininger, citado por Paulo Roberto Margutti Pinto, in "Aspectos da
influência de Weininger sobre Wittgenstein, Síntese Nova Fase, Belo Horizonte,
v. 24 n77,1997, página 203
12
As encruzilhadas da
razão
"Seria preciso, pois, encontrar um caminho que mostrasse o sujeito
como parte de um todo e, ao mesmo tempo, acenasse com a possibilidade de uma
desvinculação dessa mesma ordem. Essa terceira possibilidade, em que
"novas constelações" se fundam, em que "as esferas interior e
exterior condicionam-se mutuamente" (ibidem, p.1249) é o programa que uma
obra como O homem sem qualidades pretende cumprir, ao
subordinar a narração de eventos - ou a representação de situações e
personagens num contexto específico - à narração de uma aventura intelectual de
um herói que tenta escapar
dos perigos da razão
moderna."
Nesse sentido, Musil compõe o entorno de seu protagonista como um campo
de forças que, através do entrelaçamento das partes reflexivas e narrativas,
reproduz o ritmo autêntico da experiência humana, transformando o "fio da épica" em seu próprio
tema." (*)
- Eu voltei de um outro mundo...Então,
você quer saber o que existe do outro lado da vida...
- ...Muitos tiveram a mesma experiência
que eu, muitos que morreram e que voltaram a viver. Depois da morte, o que eu
vi? O que é o outro lado. O outro lado era eu...
- ...Eu estive comigo todo este tempo.
Era eu e eu sozinhos. Estive apenas comigo, horas e horas...
- ...passei mal, vomitei, senti cheiros
horríveis. É triste, você dormir e acordar só com você mesmo. Horas e horas,
você olha para o lado e quem está ali? Você. Do outro lado, a mesma coisa, no
teto, no chão, em todos os lugares...
- ...Você descobre que mais de duas horas
com você mesmo, é preferível a morte. Mas eu estava morto, não havia
escapatória para mim, nenhuma fuga possível.
- A minha morte era eu estar diante de
mim. Terrível condenação! Como fazer? O jeito foi voltar a viver...
- E viver é isto, é a possibilidade de
você encontrar o outro, poder encontrar o outro, poder dialogar.
13
Identidade,
a questão do ano 6528
"Trilhões de
seres humanos habitam o espaço e sobrevivem, multiplicando-se e desenvolvendo
novas técnicas genéticas de multiplicação, pois mesmo com as últimas
possibilidade de prolongamento da vida, com homens já atingindo até 580 anos de
idade e mesmo com o mínimo de desperdício de espermas e óvulos, as necessidades
de um maior número de homens e mulheres, ocupando o vasto espaço, novas áreas estão
sendo implantadas a cada 50 anos e a demanda de homens pode atingir a cerca de
50% da atual população galática. Isto é, a cada meio século registra-se a
carência de cerca de 1 trilhão e 500 milhões de seres humanos.
"A conquista do
ano 2025, que revolucionou a reprodução humana através da sobrevivência de
todos os espermatozoides em todas as ejaculações, ainda repercute no Universo.
"A valorização
do homem, do cérebro e das suas potencialidades intrínsecas na 23ª Revolução
Científica permitiu, ainda, que a idade média pulasse dos míseros 150 anos para
os 556,8 anos atuais.
"Em meio à
expansão da população explode a monumental importância da questão das
individualidades. Em meio a trilhões de seres, o um ganhou muito mais força e
projeção.
"O respeito às
individualidades é uma das denominadas potencialidades intrínsecas, com fortes
repercussões no conjunto. Todos contemplam o um. O ser é vital para todos, pois
a inteligência foi a grande descoberta das 23ª Revolução."
"O homem não é
uma ilusão".
Gregório P. Pasquali,
Edições Cidades, 1850
14
O andarilho Jesus
“Perambulo através
dos dias como uma puta
em um mundo sem trottoirs”
Emil Cioran
"Se, por um lado, O homem sem qualidades dissolve
as categorias narrativas de tempo, ação e espaço, colocando-as em questão, ou
decompõe intencionalmente as situações narrativas clássicas; por outro, o texto
dispõe de um narrador autoral, que usa toda a amplitude de suas possibilidades
de representação, numa linguagem que se coloca acima do relato, dispondo de diferentes
formas de distância, que renovam continuamente a narração como médium. "
"E, assim, uma nova forma de narrar surge justamente do cerne
daquilo que parecia inviabilizar por completo o papel da narração: não se trata
mais de descrever fatos reais ou que poderiam sê-lo, mas de explorar
possibilidades." (*)
José Luís de Jesus,
65, andarilho, viúvo.
17 anos fora de casa,
6 anos nas ruas de BH
Saiu de SP, em 82,
viveu em vários lugares e exerceu diversas profissões, músico, caixeiro
viajante etc. (1999)
“Quando abandonei
tudo é porque estava desesperado e achei que a minha vida não tinha mais
sentido. Minha mulher me acompanhava em todos os momentos e eu fugi para
evitar as lembranças. Depois, as coisas foram ficando difíceis e, quando eu
decidi voltar, não tive mais condições”.
Seria a fuga das
lembranças do amor, seria a fuga dos dias de felicidade, da insuportável
ausência, o medo de acordar e a certeza de que acordaria.
Duro não é deixar de
ser feliz, duro é não poder compartilhar a felicidade, duro é não mais poder
amar, saber que nunca mais terá junto de si a sua mulher amada.
Como ficar dentro
daquela casa, dentro do lugar da felicidade? Como conversar com pessoas que
conheceram a nossa felicidade?
A impossibilidade de
não lembrar - a vida só lembrança e lágrimas.
“Abandonei tudo
- estava desesperado
- minha vida não tinha sentido
- Minha mulher me acompanhava em todos os momentos
- fugi para evitar as lembranças
- as coisas ficaram difíceis
- quando eu decidi voltar, não tive condições”.
Sem dinheiro, José
Luís ligava para uma das filhas, (Maria Honório de Jesus, 41) dizia que estava
bem, tinha emprego e que um dia voltaria para ver todos.
O número do telefone
da filha era a sua única relíquia.
Maria de Fátima
Cardoso de Oliveira, funcionária pública, encontrou José Luís, em frente à PBH,
e restabeleceu o contato dele com a família.
Banho tomado, roupa
limpa
“É revoltante saber
que meu pai passou por tanta dificuldade e tanta miséria” disse a filha.
15
Desafios às 12h45
Jorge, meu filho,
está triste. Não pode estudar. Não temos dinheiro. Ele me espera, sentado no
banco em frente à janela da casa. Chamo-o até o carro. Ele se aproxima, mal
cabe na poltrona.
- Pai, vocês acham
que eu sou culpado pela separação de vocês.
- Acham que eu sou
culpado.
Por que Jorge
pensaria que, por ser culpado, então, estaria sendo penalizado, estaria sendo
prejudicado?
Culpado, responsável?
Por que essa visão?
Talvez pelos diálogos
que trava, frases que ouve (eu não tenho
dinheiro, é obrigação do seu pai) e dos jogos que percebe e não pode revelar
para não prejudicar ninguém.
Como retirá-lo desta
situação e deste raciocínio? Ele não é culpado. Ele é vítima? Ele se sente
vítima? Prejudicado? Quantos desafios para o meu
filho?
16
A maratona do sobrevivente
"Ao abrir mão de uma estrutura épica tradicional em favor de um
estilo ensaístico, o romance de Musil visa representar as condições de
assimilação da realidade por um indivíduo sensível e disposto a "amar todas as manifestações da vida".
Em um mundo em que nada é sólido ou definitivo, o indivíduo hesita em
agir e em fazer escolhas, só restando-lhe ser um homem sem qualidades." (*)
- O que vier, agora,
é lucro!
Esta frase, ele a
repetiu tanto que, mais tarde, ao relembrar aqueles momentos, depois que
despertou no chão cinzento da cela, acreditou que ela era o seu mantra, sua
memória, sua oração, sua vida resgatada em meio a corpos que vira saírem
carregados, empapados de sangue, corpos no chão do pátio, corpos no corredor,
em que os torturados encapuzados tropeçavam.
- O que vier, agora,
é lucro!
Como ele podia
concordar com aquela frase? Lucro, um ganho a mais, mais valia. O que vivera,
então, tivera preço justo. Agora, ele tinha direito a jogar tudo para o alto,
sem temer a lei da gravidade. Nada era mais leve do que o sobreviver, nada mais
aéreo do que a vida conquistada, além da resistência. Todo o corpo era um
imenso hematoma, partes em carne viva, queimaduras entre as pernas, dores
dentro e fora do corpo.
Agora era agora e ele
estava vivo. Não precisava debochar da sorte. Lucro? A sobrevivência como
lucro. Que visão capitalista, cara! Linguagem imperdoável. Era por onde,
descobrira mais tarde, ganhara forças para encarar aquela oportunidade de
sobreviver. Talvez, não passasse da próxima etapa, ele vencera esta, isto é,
sobrevivera às sessões de tortura da PCA, da Biblioteca,
do Túnel, estas três ele vencera.
Todas elas, PCA,
Biblioteca e Túnel eram locais e níveis de tortura organizados no Aeroporto do
Galeão pelo grupo de torturadores do Ministério da Aeronáutica. A cada pouso de
um jato no Aeroporto do Galeão era como se a terra desabasse sobre sua cabeça.
A sala de tortura do Túnel, a mais violenta delas, se houvesse
possibilidade de uma ser mais violenta do que a outra, era debaixo da pista
de pouso do aeroporto. Um avião atrás do outro. Uma loucura. Dali poucos saiam
vivos e os que saiam vivos traziam alguma marca. Agora, ele
respirava mais uma vez, enchendo os pulmões.
- O que vier, agora,
é lucro!
Tempos depois, sentiu
fome. Não sabia quanto tempo passara. Ali, raramente serviam qualquer coisa,
além de pancadas a qualquer hora, sem qualquer razão, sem qualquer pretexto.
Sentiu a chegada da fome como mais um sinal de sobrevivência.
Não se preocupou com
a fome, tão certo de que sobrevivera. Mexeu a perna e sentiu como se sua calça
fosse uma madeira, dura. Uma madeira que machucava, pois arranhava a carne
viva. A calça dura, agora madeira, era o sangue que secara e deixara sua calça
como as roupas engomadas que vestia nos dias de desfile cívico lá na sua
distante Jampruca, no Vale do Mucuri.
- Se tudo o que vier
é lucro, o mais a fazer é sustentar esta hipótese de sobrevivência. Ele tinha
certeza absoluta de que sobrevivera. Lógico, não era um jogo de azar e nem o
regime militar havia terminado. Resistir não é prova de força e nem pode ser
parâmetro de medida de força. Não há explicação plausível para este fenômeno,
pois muitos, muito mais fortes do que ele, muito mais resistentes do que ele,
não aguentaram. Quantos somos?
- O que vier, agora,
é lucro!
Por que aquela frase
batera em sua cabeça e não mais saíra?
- Era às vezes como
uma provocação a mim mesmo e aos meus agressores. Havia agora a vida, depois
desta loucura, que deveria ser vivida. Sobrevivida.
- O que vier, agora,
é lucro!
- O que vier, agora,
é lucro!
O mundo mudou, muita
coisa passou, muitas etapas foram percorridas. Às vezes, ele se surpreendia
ouvindo distante, longínqua, a frase maluca.
- O que vier, agora,
é lucro!
- Vinha como se
chamasse a minha atenção, como uma voz tímida e baixinha, a alertar-me de que
talvez eu tivesse esquecido algo fundamental.
Outras vezes
sobrevivera.
Aos 12 anos, em suas
aventuras de menino, mergulhara para retirar um homem afogado, e voltara
abraçado em um porco inchado, desmanchando. Dias e dias de febre. Fizera um
pacto com a vida.
Optara por
sobreviver. Acreditou que a vida era um ato da vontade, do querer viver.
Ninguém jamais soube
explicar sua recuperação, nem a mãe, desesperada, e nem o médico, que já alertara
a família para o desfecho final.
E a febre
desapareceu.
Conclusão e a única
explicação do doutor Luiz Boali para aquela inusitada sobrevivência.
Que pacto misterioso
foi este? Com quem negociou ou tramou a sobrevivência?
Outra vez, depois de
dois meses amarrado em uma cama no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, fora
retirado para a “execução”. Colocado no chão de um automóvel, com os pés dos
policiais sobre o corpo, pés no pescoço e nos rins.
Horas e horas rodando
pelas ruas e avenidas molhadas do Rio de Janeiro, numa noite de chuva fina, até
chegar ao local da execução.
No pátio, parecia um
pátio, encapuzado, o seu corpo já encharcado de gasolina e álcool.
“Não vou morrer, sem
lutar”.
A pouca chance que
teve foi o bastante para despertar na cama do hospital militar.
Ao abrir os olhos,
viu o rosto amigo do general Figueiredo, irmão do Nelson, amigo da família. Os
olhos do general estavam úmidos e uma lágrima escapuliu.
Mais uma vez
sobrevivera.
Agora, quando
despertou na cela da PE da Barão de Mesquita, teve a certeza de que o jogo
continuaria e que ainda estava a seu favor.
- O que vier, agora,
é lucro!
Ele tinha certeza.
Mais do que isto, ele tinha uma linguagem com o que ele não entendia, em que um
diálogo inexplicável, fora do entendimento, se passava e, por mais fraco que
estivesse, a vida venceria sempre.
Era profundo. Nunca
fora místico, não tinha raízes para isto e nem formação. Era preguiçoso. Nunca
fora o melhor em nada, não tinha motivações para qualquer tipo de disputa, nem
tesão para ser vencedor de competições e nem saco para comemorações.
- O que vier, agora,
é lucro!
- O que vier, agora,
é lucro!
- O que vier, agora,
é lucro!
Nunca cedera em nada
do que acreditava, mas acreditava em tão poucas coisas, que sempre era visto
como inadequado na convivência.
Incrédulo?
Nem tanto, porque nem
ao não havia sim.
17
Final de julho
Quem sou eu?
Insisto ainda nesta
manhã de domingo
- Kierkgaard sabem
quem ele é?
Eu não sou filósofo
E eu?
Eu não sou escoteiro
Não sou ginecologista
Não sou militar, nem
político
Não sou o amante da minha
argentina
Não sou um homem
verdadeiramente
triste
Não sou trapezista e
nem aviador
Não sou piloto de
jato e nem de helicóptero.
Não sou piloto.
Quais são, então, os
meus voos?
Não sou o que serei
amanhã
Amanhã, eu não sou o
que sou hoje
Crise total de
identidade
É o homem do século
Perdidos em si (são
sempre muitos)
Encontrando-se em
espelhos
em tempos virtuais
Esmagado pelos heróis
de películas e
plásticos
horizontalizados em
imagens
que devora os
próprios heróis
que não se reconhecem
em tanta beleza e
força
Eu não sou saudoso
nem dos tempos
futuros
Eu não me apaixono
por mais de 24 horas
Não sou um poeta
Não sou um bom poeta
cujos versos são
belos versos
Não sou um bom poeta
não sei ser romântico
Nem chego a ser poeta
social
íntegro
na revolta e em suas
consequências
Sou desconfiado com a
palavra
a da medida e a do
som
da beleza dos poetas
músicos
cheios de muitas
profundidades e
melodias
belos versos, belos poemas
belas palavras, belas
palavras
A palavra é bela
é a beleza das
sereias
e eu não sou Ulysses
Nem retorno e nem
resgatei
a honra da minha
cidade
Passo olhando, olhos
que já custo abrir,
os homens e suas
obras
- Há homens que
constroem igrejas,
túmulos, prisões,
colégios, museus,
palácios e igrejas,
casas e igrejas
Constroem homens e
mulheres
vícios e domínios,
vícios e sonhos
que serão sempre
sonhos, sonhos
e nada mais
Quem sou eu? Nesta
doce, silenciosa
e pura manhã de
domingo em julho?
Quem sou eu?
Eu sou a minha
liberdade
a possibilidade
concreta
de negar
recusar ser o que não
sou
Sou a liberdade
O homem é liberdade
Todos podem negar
negar em si o artista
que não é
o protótipo
midializado
e até negar a ser o
contrário
Eu não sou poeta
todo poeta é um
revolucionário
Eu não consigo ser
revolucionário
por mais de algumas
horas
Eu sei que eu não sou
um poeta,
um bom poeta.
Talvez, eu consiga
ser
um homem.
Em algum amanhã.
"Definindo-se como um homem
"sem qualidades", no sentido de ser privado dos atributos que
ordinariamente conferem ao eu moderno o que se convencionou chamar de
"existência" - profissão, família, círculos sociais -, Ulrich decide
tirar "férias da vida" justamente a fim de descobrir o sentido da
sua.
Uma das poucas "qualidades" que o narrador atribui ao
protagonista é a de ser uma "mente viril", um "ser
pensante". Isso lhe garante a "capacidade de pensar tudo aquilo que
também poderia ser"atribuindo o mesmo valor ao real e ao possível.
A constatação de sua falta de qualidades - ou de características
próprias, como indica claramente o sentido da palavra alemã Eigenschaft5 - e um
senso aguçado para as possibilidades o levam a formular as utopias do ensaísmo
e da exatidão." (*)
18
Meu pai quer viver
"Desde seu momento inaugural
no âmbito da Era moderna, em Thomas Morus, a utopia se constitui como uma
tentativa de preencher uma falta.
"Ela carrega, ao mesmo tempo,
um princípio de negação e de construção, pois apenas o processo de negação da
realidade constituída permite uma construção racional passível de transformá-la
"Assim, se por um lado o senso de possibilidade difundido pelo
romance tem a pretensão de ultrapassar os limites da realidade; por outro, este
não pode ignorá-la - afinal, é nela que estão contidas as possibilidades.
"Para Wieqmann, a noção musiliana de utopia é mais abrangente
do que a de possibilidade justamente porque se insere no campo da literatura, e
não da realidade mesma.
"Sendo originariamente um não lugar (U-topos), a utopia se
converte assim em uma zona intermediária, o lugar do possível, onde as
"amarras" da realidade podem ser rompidas; enfim, o lugar da
literatura." (*)
(Na segunda-feira,
ele foi internado e à noite submetido à segunda cirurgia do abdome,
diagnosticado abdome agudo, para combater uma infecção interna na sutura da
cirurgia intestinal anterior. Pai está entre a vida e a morte. Seu quadro
clínico é definido pelos médicos como grave, “ele corre risco” e ele quer
viver.)
Quem é o meu pai? Eu
o conheço.
É uma criança. É um
menino levado - estou dizendo para dar-lhe entusiasmo, para sermos otimistas.
Cito, então,
situações em que ele tenta enganar o enfermeiro, controlando a velocidade do
soro fisiológico, controlando a presença dos enfermeiros, as ações do médico,
querendo saber de tudo, o que vai ser feito, o porquê, os resultados e fazendo
questão de ser cortês e agradecido às ações de todas as pessoas que se aproximam
do leito.
A um enfermeiro
novato que chegou, formal, se apresentando, indicando tudo o que faria e
registrando os seus “sinais vitais”, no final do expediente, pai chamou-o e
elogiou o seu trabalho, “foi o melhor enfermeiro que eu tive até agora”.
O rapaz
desmanchou-se, surpreso. Não estava acreditando. Parecia que naquele momento,
efetivamente, ele recebia o seu diploma.
Quem é meu pai? Você
o conhece?
Ele tem 87 anos. Ou
90? Eu tirei esta dúvida, diz Rita empolgada. Nininha me disse que se pai tivesse
90 anos, ele seria irmão-gêmeo do Afonso. Tem mesmo é 87 anos.
Minha irmã Rita de
Cássia é a mão esquerda, mão direita, braços e pernas de pai. Faz tudo, resolve
tudo. Para Rita, ele é o homem que não aceita ficar esclerosado, envelhecido
mentalmente, que, surpreendido em atitudes duras, admoestado, alertado,
consegue mudar, reconhecer o erro ou de avaliação de pessoa ou de condenação
precipitada de fala e gesto.
Para ela, ele é um
homem bom.
Quem é o meu pai?
19
"Do que elas
gostam?"
"No entanto, a literatura sempre corre o risco de reduzir as
possibilidades contidas na realidade ao pretender imitá-la. A obra literária é
uma via de acesso a um conhecimento que não depende de uma elaboração
conceitual, mas que acontece como uma parábola.
Sendo um recorte, o conhecimento que ela gera será necessariamente
limitado em comparação às ambições da ciência.
Ao ser introduzido no seio do romance como seu princípio formal, o
ensaísmo será o medium que possibilita reescrituras da
experiência que não se subordinam à lógica causal e que, portanto, ampliam o
potencial gnosiológico da literatura." (*)
Amanhã é aniversário
de Jorge. Fará 19 anos. Hoje, na pista de Cooper da avenida dos Andradas, na
margem esquerda do rio Arrudas, afluente do rio das Velhas, na bacia do rio São
Francisco, na manhã cedo e ainda vazia, encontrei-me com Régis. ,
Régis falou, falou
muito e queria falar. Falaria mais se tivesse ainda mais uma manhã, mais um dia
e mais um século.
Estou separado, agora
estou morando na casa de um amigo e em diversas casas. Você se lembra do
Washington, fotógrafo? Às vezes moro no apartamento dele, durmo lá umas noites.
Durmo também no apartamento de Teresa, a mãe de Ana Luisa, minha filha de três
anos e meio.
Na minha casa ninguém
queria casar, somos cinco irmãos homens, agora começaram a nascer as crianças.
A última vez que fui
ao Norte, Amapá, foi em 95 quando levei Ana Luisa a Macapá para o meu pai
conhecer a neta. Levei mulher e filha. Meu pai bateu direto, ele não
aconselhava mulher nenhuma a casar com nenhum dos filhos dele. Nenhum era
certo. Todos só viviam de pau duro, se era para ter orgasmos direto, então tudo
bem, só para e por causa do orgasmo, para viver e ter plano de vida não, não
valia a pena. Ele desaconselhava.
Separar foi duro. É
duro.
E separou da mulher e
da filha.
Meu avô dizia que não
se devia por muito óleo no pavio, era encharcar o pavio e o fogo apagava. Não
acenderia fácil. Nos dias seguintes à última separação, na primeira semana, foi
duro.
Sofri o diabo, não
conseguia pensar outra coisa e só arranjava razões para telefonar. Ela já me
atendia com rispidez e com enfado. Segui o ensinamento do meu avô e dosei o
óleo. Não liguei mais. O que fazia? Impus-me uma rotina espartana, horário de
acordar, caminhar, ler, trabalhar, comia a mulher que me ligasse à tarde e
comia desesperadamente. Vamos trepar de novo, eu não sou objeto, não é
isso, você não imagina o tamanho da minha dor.
Um tempo depois, ela
aparece no jornal. "Precisamos conversar". Não temos nada mais que falar.
- Poderíamos almoçar?
- Vamos, está na
hora.
Depois do almoço ela
me convida para passar na casa dela, que foi nossa, à noite. Agora, ela é uma
das que ficam após a triagem que fiz e em que eliminei as mulheres da pesada e
das drogas.
Hoje, estou vivendo a
liberdade, morando ainda aqui e ali. Nem sempre, por exemplo, posso dormir no
apartamento do Washington. Ele está noivo e eu já disse para ele não casar.
Quando ele leva a noiva para o apartamento, eu não posso ficar, é
constrangedor. Agora, quando ele vai dormir no apartamento dela, eu durmo no
apartamento dele.
Assim, às vezes durmo
no centro da cidade, no apartamento de Washington, outras vezes no Sion, na rua
Estados Unidos, outras vezes no apartamento de Tereza aqui no São Lucas.
Cheguei à conclusão
de que é verdade aquilo que dizem que quem gosta de pica mesmo é viado e de que
mulher gosta mesmo é de dinheiro. É por aí, este raciocínio chega perto da
verdade, daí porque existe e se chegou ao casamento. O casamento é um papel que
garante o dinheiro para a mulher, um relacionamento em que ela tem um homem
para sustentá-la, bancar a boa vida, daí porque com o tempo, as mulheres
casadas acabam procurando um homem com cacete suficiente para administrar suas
tesões.
Cansei de sair com
noivas. Uma noiva uma semana antes do casamento fez questão de dormir três
noites comigo. Eu entendia, ela precisava garantir sua vida, sua estabilidade,
sua segurança.
Agora, uma menina do
Tempo, que saiu comigo durante um ano, mandou um convite de casamento e dentro
um bilhete fixado com cola. "Precisamos nos encontrar antes da minha lua
de mel". São os cornos pré-datados.
O que mais me
impressiona é a quantidade de mulher mal comida, mal amada e mal relacionada.
São mulheres com camisinhas, com data de vencimento, vencidas. Elas têm as
camisinhas na expectativa de que um homem determinado apareça e as camisinhas
acabam vencidas. São trepadas com prazo de validade vencida. Aí há um grave
risco, todas estas camisinhas rompem e é uma merda.
Estou livre e preciso
construir esta minha liberdade com trabalho e organização. Parei de beber e
estou emagrecendo, vou fazer 38 anos e tenho que tomar alguns cuidados e fazer
alguns exames tipo chekup. Cheguei a pesar 20 quilos a mais do que o meu peso
normal, já perdi 10 quilos e vou emagrecer mais. Voltei a caminhar e a correr
todos os dias. Morando aqui e ali, já fiz um mapa das pistas de
Cooper das imediações dos apartamentos onde durmo.
No centro, a pista do
parque é uma pista popular que está melhorando a frequência. A pista da avenida
Bandeirantes é de pessoas com uma faixa de renda melhor, a pista
aqui da avenida dos Andradas é de um pessoal inferior economicamente ao pessoal
da Bandeirantes. É a nossa cidade, ela se divide, se exclui e se contamina.
Depois
de três separações, aprendi a viver com poucas coisas, tenho duas
malas e uma mochila. As malas guardam um pouco mais de coisas e as mochilas têm
o essencial, é a escova de dentes e duas mudas de roupas limpas.
20
Só me resta a
felicidade
[...] nenhuma coisa, nenhum eu, nenhuma forma, nenhum princípio é certo,
tudo se encontra numa transformação invisível e incessante, no instável há mais
futuro do que no estável, e o presente não é senão uma hipótese que ainda não
superamos. O que [Ulrich] poderia fazer de melhor senão manter-se livre desse
mundo, naquele bom sentido com que um pesquisador se mantém livre diante dos
fatos que o querem seduzir e fazer acreditar neles precipitadamente?!
A exatidão será, paradoxalmente, o reconhecimento da imprecisão dos
fatos e da impossibilidade de verdades definitivas. (*)
Quem sou eu?
O que serei?
O que posso ser?
A identidade me foge
e onde me perco?
O que o passado impõe
e limita?
O que serei?
É uma pergunta que
pretende uma resposta acabada? Serei Y, algo que me contenta e me faz feliz e
livre.
O que serei? Indaga
possibilidades, alternativas, pressupõe alternativas. Serei o que posso ser ou
poderei ser além do que posso ser?
(E o aquém? Serei
aquém das minhas possibilidades de homem, de ser humano?)
A um homem que só lhe
restar a felicidade, responderia positivamente?
- Só me resta a
felicidade.
Soa como uma
condenação.
- O homem está condenado
à liberdade - diz o francês.
O que posso ser? É
indagação que sugere a elaboração de uma lista de possibilidade e de
possibilidades relacionadas a oportunidades.
Na coluna de
possibilidades, a felicidade. Na coluna de oportunidades de se ser feliz,
total. As oportunidades são amplas e percorrem todas as coordenadas, todos os
pontos e momentos de uma vida.
Ao longo da vida, o
homem sempre desperta com este tipo de questionamento. Nem sempre dá
importância a este fato.
Há a possibilidade de
mudanças e de aprimoramento. Não respondem, de imediato, a este
questionamento.
Aos oitenta anos
ainda pode questionar-se, ainda lhe restará algumas possibilidades, às vezes
radicais.
Há cada tempo, este
questionar-se traduz-se pelo, permanente, avolumar-se, pelo permanente crescer.
Chega a tornar-se maior do que a vida, dominar a vida, impedir a vida,
paralisar a vida.
“Eu preciso responder
e andar, fazer alguma coisa”.
O que o passado
impõe? Está na feitura da lista das possibilidades. Há uma “riqueza”
construída, há um caminho feito e que indica um caminho a fazer, há relações
construídas e há uma malha tecida. Aí as limitações e/ou as fabulosas aberturas
liberadas pelo passado. Serão limitações e elas, certamente, existem, quando
consideradas impeditivas do crescimento e/ou destruidoras de qualquer futuro...
- “Eu posso ir embora. O senhor não pode. Eu tenho
o mundo, o senhor tem aquela mesa pesada. Para sair, o senhor teria que se desfazer
dela ou arrastá-la sempre. Eu sou um homem leve e o senhor é um homem pesado. Ppreso
naquele pé de abiu, que alimentou suas fantasias de menino e a sua juventude.
Eu estou leve e nenhuma árvore de frutas me prende porque eu não tenho e nunca
tive um pé de abiu. O mundo todo é meu, o senhor tem apenas esta fazenda e por
ela o senhor perde a vida”
(O empregado da fazenda do tio da Áurea, ao ser
despedido)
... ou poderão
metamorfosear-se, de limitações passarem a ser trampolins para maiores e mais
distantes saltos, fabulosas aberturas - é a aventura do intelecto, do espírito
em crescimento permanente, mesmo na mais profunda obscuridade, mesmo nas
limitações do apenas registrar, registrar, acumular, acumular. É a grande
aventura, a fabulosa aventura do crescimento vertiginoso do espírito e de sua
história e de um homem só.
O que um homem mais
velho, tendo ultrapassado etapas de iniciação e de produção, avaliaria, em
função de permitir a outros reduzir etapas, eliminar volteios e tempos
perdidos?
- Digamos, eu me
assusto com a quantidade de pessoas atrás de uma profissão, de um documento
profissional, de uma definição de atividade.
- De uma qualidade. Um
carimbo.
Outra questão:
A declaração de amor.
Por que declarar amor? A pessoa precisa dizer o amor que sente?
Rita conta histórias
de pessoas que tiveram a experiência de sobreviver depois de um
período entre a vida e a morte. Um programa do “Globo Repórter”: uma
mulher no CTI percebe o que acontece em volta do seu leito, o drama dos outros
pacientes, cenas que apenas ela assistia, que mais tarde checou, a relação dos
pacientes próximos. O episódio do seu grande amor pela “vó Gorda”. A família
não havia avisado o que acontecera com a neta, preocupados com a saúde da avó.
Ela imagina-se e se vê indo até a avó, vê a avó e ela a ouve chamá-la. Em seguida,
quase instantaneamente, a avó liga procurando saber notícias.
- Entra o que indago:
o amor deve ser declarado?
Já imaginou, você que
vive um grande amor por outra pessoa e que nunca se revela, nunca se declara?
Os amores de Dante e
de outros grande apaixonados, que sempre viveram apaixonados e que jamais
declararam, em tempo útil, o amor amado à pessoa amada.
21
Como um jogo de xadrez
"A exatidão será, paradoxalmente, o reconhecimento da imprecisão
dos fatos e da impossibilidade de verdades definitivas."
"Quando associada ao espírito ensaístico, promove a convivência
entre os âmbitos objetivo e subjetivo, sem que um se sobreponha ao outro, de
modo que, no seio da obra, funda-se um campo intermediário entre pensamento e
alma, ou ciência e arte." (*)
Esta estranha
sensação em que não se consegue ficar mais em lugar nenhum. Em todos os lugares
que chega, logo depois tem vontade de sair, e sai por toda a cidade, sonhando
em chegar na caverna, no seu esconderijo, onde, ultimamente, se sentia melhor,
sozinho.
Mesmo ali não
consegue ficar mais do que algumas horas.
Sair para a casa
paterna. Na casa paterna é difícil quase impossível ficar, já pensa em ir para
a casa dos filhos. Na casa dos filhos pensa em ir para a casa da Pula, na casa
da Pula é pular e sair, sair para a rua, onde o que mais faz é caminhar. Caminha,
caminha e já que ir para outro lugar, deste outro lugar já pensas em ir para o
Tribunal. Do Tribunal ir para a editora.
Da editora para a caverna, para o esconderijo. Em lugar nenhum sente bem, não
se sente bem com o ar, com a terra, com o mundo, com este mundo. Então por que
não fazes um outro mundo? O que o impede? O que o impossibilita?
Fazer um outro mundo
exige apenas criatividade - só.
Às vezes ser criativo
é cansativo, e se os instrumentos da criatividade se se limitarem às palavras. Ah!,
então, é como assegura-nos Balzac, escrever é mais difícil do que conduzir
exércitos na mais grandiosa das batalhas de Napoleão.
Observo as pessoas
que escrevem, os escritores de histórias infantis, os poetas, os romancistas
que passam pela editora.
Chega um senhor, já
velho, quase morto, cansado, trazendo um livro pronto, o seu livro - apanho
este porque ele não é um escritor profissional.
Hoje, temos
escritores com 27 anos e 31 livros publicados. Alguns com boa vendagem em todo
o País.
Este senhor que
carrega sua história tem do livro uma outra dimensão. Se decidiu sair de casa,
com aquele calhamaço debaixo do braço, está certo de que tem o livro, o seu
livro, concluído.
O que é um livro para
ele? É um bem precioso, suas palavras, com toda a certeza, foram garimpadas,
não estão entrando de qualquer jeito nas frases e as frases foram escritas mil
vezes, desde que ele muito jovem, anotava, num pedaço de papel, em qualquer
pedaço de papel, suas histórias, suas reflexões.
Tudo o que está
anotado no seu livro tem vida e é verdade. É a sua verdade, mesmo aqueles casos
estranhos, contados a ele por pessoas de credibilidade.
O "eterno artifício" da épica
"Sendo a realidade uma utopia, a representação da história como uma
sucessão lógica e linear não passa de um artifício que obedece à necessidade
humana de solidez e segurança.
"Nesse sentido, o romance apresenta também o mundo dos eventos,
mas, antes, visando revelá-lo como eterno retorno, como um mundo em que
"sempre acontece a mesma coisa" ("Seinesgleichen
geschieht", título da segunda parte do livro).
"O problema da fabulação épica do escritor corresponde ao conflito
existencial da personagem porque, no bojo de ambos, está o ocaso da experiência
e a perplexidade diante de um processo crescente de "abstração da
vida".
"No fim da primeira parte, o
pressuposto de composição da obra se converte na grande revelação de Ulrich: a
de ter perdido o "fio narrativo" da própria existência - essa
necessidade de "enfileiramento de tudo que acontece no tempo e no
espaço", que não é apenas uma convenção literária." (*)
(*) O romance possível - ensaísmo
e narração em O homem sem qualidades, de Robert Musil Érica Gonçalves de Castro
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142017000100361
Ainda Musil
1. A articulação entre intelecto e sentimento, entre elementos
ensaísticos e narrativos, reproduz, necessariamente, o ritmo autêntico dos
fenômenos da realidade efetiva, que não é, de modo algum, linear.
Dentro de uma realidade que é a realização momentânea de uma história
entre outras possíveis, toda empresa humana será um ensaio e toda existência,
um poema - ou romance - a ser escrito.
2. A semelhança promovida pela imagem não corresponde a uma lógica usual;
ela é, antes, "aquela ligação de ideias que reina no sonho, a deslizante lógica da alma,
à qual corresponde o parentesco das coisas nas intuições da arte e da
religião".
"A alma 'desliza' porque
jamais uma fórmula, seja uma lei científica, uma regra moral ou um termo
linguístico é capaz de prever a transformação que atinge o universal por meio
do individual".
3. A vida se tornou "insuportável para seres
pensantes"
Assim, o romance não almeja a
utopia, e sim torna-se ela própria: ao adotar uma forma singular, mas numa
linguagem clássica, ele nos faz experimentar a nossa própria realidade, só que
de uma outra maneira.
4. Das "lacunas entre catástrofe e redenção", a obra constrói uma
"utopia do aqui e agora"em que o universal é passível de ser
transformado por meio do individual. E o
porta-voz dessa utopia só poderia ser um personagem cujas qualidades mais
flagrantes fossem o espírito ensaístico e o senso de possibilidade.
5. O homem
sem qualidades é um dos romances do século XX que mais
exigem "capacidade e desejo de abstração" de seus leitores -
condições que Musil reivindica em "O escritor nos dias de
hoje"- por representar, de forma plena, a impossibilidade tanto de uma
existência organizada no tempo e no espaço quanto de uma recusa radical desses
limites.
6. Como se pode ler numa anotação
deixada por Musil e que integra a parte inacabada do romance: "Guerra é o mesmo que outro estado, só
que misturada ao mal [...] uma fuga da
paz".
"Guerra é ... uma fuga da paz".
7. "Não que amassem a todos que viam e a tudo o que acontecia: apenas
sentiam a linda sobra do 'como seria' caindo sobre seus corações..."
8 .Na origem do substantivo Eigenschaft está
o adjetivo eigen, que significa "próprio",
"específico", "característico". Não há, portanto, uma
conotação moral, como a tradução por "qualidade" em português pode
dar a entender.