sexta-feira, 29 de abril de 2022

A ALQUIMIA VERDADEIRA

 





Na cadeia, havia um pássaro preto

Ele caminhava em meu corpo

 

 

Rufino Fialho Filho

 

 

Muitos domingos passamos juntos

No laboratório, só nós dois

 

O silêncio e os livros,

A alquimia misteriosa

 

 

O pássaro preto sanzava e eu lia

Lia, lia, palavras, palavras

Só palavras

Ao lado, o pássaro preto pulava, silencioso,

Das prateleiras e dos vidros para o meu ombro

Subia na minha cabeça

E me acariciava

 

Meu pássaro preto respeitava aquele doido silêncio

 

Quantas vezes, parado no meu ombro, observava

Como o corvo de Poe, Pessoa e Machado

 

Assustava-me a sensação de que ele não era analfabeto

Ficava ali, olhando a página e aquelas manchas pretas

Manchas e diálogos

Universalmente silenciosos e intensos

seculares

 

 

Era carinhoso

Limpava o meu ouvido

Solenemente, delicadamente

Silenciosamente

 

Ali, ao meu lado

No meu ombro

O pássaro preto

Era a minha única chance de liberdade

E eu era ele

 

 

(Toda carícia no ouvido de Ana Luísa

traz de volta o meu pássaro preto)

 

 

22.01.2001