domingo, 12 de junho de 2022

DIA DE VENTANIA

 



 

 

A linguagem da cidade e do vento

 

Rufino Fialho Filho

 

 

1º Tempo

 

Na infância, o dia dos mortos será sempre um dia diferente. Dia em que a natureza de alguma forma se manifesta.

 

Dia triste e antecedido sempre por muitos dias tristes. Mais do que dias tristes, dias de ventania, de ventos fortes.

 

Nem sempre ficava em casa, queria a rua e o vento. Vê-lo levantando poeira, devolvendo folhas para as árvores, zunindo, dobrando a rua como se moleque esperto fosse, desaparecendo com as casas envolvidas em nuvens de chão.

 

Podia captar este silêncio com o olhar, com o assombrar, brincando de espreitar de onde o vento mais uma vez surgiria.

 

Hoje, é de novo um dia de mortos, vou sair, vou para a rua, trafegar e caminhar pelas avenidas da cidade grande onde mais de dois milhões de pessoas vivas (muitas estão mortas e não sabem) articulam-se, caminham como eu e, fundamental, pensam (não como eu, graças a deus).

 

Mais uma vez,

já agora em um dia frio,

sairei atrás do vento

e das manifestações da natureza neste dia.

 

Muitos anos, muitos anos,

muitos dias dos mortos,

sobre a terra bilhões de pessoas mortas,

muitas vidas vividas.

Um único homem caminha na cidade.

 

Acompanho teu caminhar solitário e observo o vento se aproximar. Vejo que ele beija a sua face e o envolve em uma nuvem de folhas secas em um dia de céu azul, sol claro, belo, limpo, doce de uma manhã ainda primavera, quase verão tropical, mas ainda inverno, mexo com a palavra que não sei dizer, nem escrever, falo com quem não me escuta, e interrogo sobre a morte sem dizer da morte o que dela penso.

 

A verdade é que eu quero saber de você, de mim não sei nada. Melhor: pouco sei, muito desconfio, como diz Guimarães Rosa.

 

Na margem esquerda do ribeirão do Arrudas, as árvores guardam marcas do outono, algumas carregam suas montanhas de folhas amarelas, secas, mantendo um ar de já era, aguardando o verde dela que não chega e que já chegou em outras.

 

O vento bate naquela curva antes da ponte, passa debaixo da passarela de acesso ao metrô.

 

Vento que arranca palavras das folhas secas, que resistem. Não caem. Ainda não será este vento das 9h da manhã.

 

Outro virá, em outra hora, deste dia, mais forte e, quem sabe, abrirá caminho para o novo.

 

 

2º Tempo

 

A beleza das árvores, todas floridas e aquelas que ainda não têm flores, têm um verde forte, cheio de vida e é a vida que percorre esta cidade nos dia dos mortos.

 

Souberam cuidar da cidade e fazê-la um jardim. São muitas as flores e um vermelho contagiante cobre as árvores e atapeta o asfalto.

 

É a beleza em meio a um clima temperado, ora quente, ora frio, em meio também ao dia ora seco ora chuvoso.

Tinha sol e sol forte quando observava do carro as pessoas que floriam o cemitério, caminhando pela avenida Jovelino Lanza indo a um encontro marcado, uma vez por ano, com lembranças e é a alegria que vejo naqueles grupos, famílias, crianças e velhos, poucos jovens.

 

A beleza da cidade me toma o fôlego e o coração treme e eu temo.

 

Vejo que há poesia solta, poesia marota, sacana e alegre também.

 

A Jovelino é uma subida, na primeira encosta da serra. Subida suave que eu percorro leve e rápido mil vezes.

 

Agora, o casal segue vagaroso. A menina corre. Nas mãos, flores.

 

Em todo lugar, imagens, gestos, movimentos, palavras que se recuperam, modo de falar, jeito de sorrir, implicâncias, compreensão – caminhando, muitas vezes em silêncio, até mesmo conversando, aquilo que se foi, volta, é eterna a lembrança.

 

Percebo um homem sozinho. É um homem bonito. Caminha só. Não leva nada em suas mãos. Tantas flores na cidade. Ele segue sem pressa. Caminha. Apenas caminha. Tudo são cores, flores e alegria.

 

É apenas, ali, um homem que caminha

 

em meio às sepulturas do cemitério novo.

 

Um descampado, sem mausoléus, um cemitério simples, aberto para todos que passam por ali e todos os dias.

 

Eu passo por aquele cemitério em muitas madrugadas. Mudo de calçada, vou para o outro lado.

 

Não, não, não é medo.

 

Eu prefiro caminhar do outro lado. Iria dizer, eu gosto de... mas não se trata de gostar ou de não gostar.

 

Prefiro caminhar, naquele trecho, do outro lado da rua, de madrugada ou mesmo de dia.

 

Corto o trajeto, subindo ou descendo.

 

Evito a proximidade do cemitério.

 

Assim foi ao longo do tempo em todas as cidades que morei.

 

Evitava morar nas proximidades do lugar onde os homens constroem espaços para os seus mortos.

 

Há um dia para se pensar nos mortos.

 

Quem bolou isto? Por que? Para que?

 

Eu sempre pensei nos meus mortos e eu os carrego comigo, de alguns a lembrança é diária, de outros é uma lembrança direta e eles me sustentam, alegram-me.

 

Talvez aquele que bolou isto, em seu sentimento religioso, buscasse a ideia de pensar a morte no coletivo dos homens, em cerimônias, em rituais e em resultados comerciais - para um setor do comércio o negócio da morte é lucrativo e, quase sempre, excludente de concorrência.

 

Ouço aquela mulher que anuncia a ida ao cemitério para visitar o túmulo do pai.

 

Ela nunca foi lá, sequer sabe onde fica, sabe que a lápide está com a escrita errada.

 

“Ele deixou escrito o que queria gravado em sua lápide, mas o operário não sabia escrever e fez algumas correções para adaptar letras ao espaço disponível”.

 

Ouço a menina repetir histórias de um avô que ela não conheceu.

 

Vejo a cidade e as suas árvores, o tempo e a sua memória.

 

O tempo e os homens.

 

Quanto tempo perdem os homens com memórias imaginadas.

 

 

 

02.11.99                                                06.11.2000                      13.06.2022