sexta-feira, 16 de junho de 2023

O PASSADO JAMAIS ESCAPA DO PRESENTE

 





E ela chegou

 

 Rufino Fialho Filho

 

Vivo um tempo diferente. Sempre sozinho a maior parte dos dias e das noites. De repente uma jovem abre a porta e entra na minha vida.

 

Magrinha como você (ainda é?). Ela tem 24 anos. É do final do século XX. Nasceu em 1999.

 

Passamos a conviver. O impacto desta presença complicou um pouco minha cabeça. Havia desaprendido a viver com uma moça dentro de casa.

 

Percebi, imediatamente, foi minha sorte, que eu é que teria que aprender com ela e seus hábitos. Focada na conclusão do seu curso, ela estuda 90% do tempo em que estamos juntos.

 

Se sujou, limpa.

 

Esta diretriz que sempre nos acompanhou foi para o espaço. Até que ela lava e guarda - tudo fora de ordem.

 

Mas se acorda, se prepara seu lanche, tudo ficará sujo, só lavará quando voltar da universidade, às 19h.

 

Espalha calcinhas e sutiãs na sala, no quarto, na cama dela e na minha (dormimos em quartos separados – ela ronca).

 

Carinhosa, meiga, gentil, não se nega a fazer nada que eu peça. Quero muito pouco além da presença feminina na minha vida e na casa.

 

Se ela ainda não aprendeu as guardar os talheres em suas respetivas gavetas, tudo bem. Eu guardo.

 

Se ela não arruma a cama. Tudo bem. Eu arrumo.

 

Afinal, se estes são os afazeres a fazer, faço-o eu. A contrapartida é tão grande pelo doce prazer que ela trouxe para nossa vida.

 

A conversa é sempre curta, rápida.

 

Monossilábica.

 

Gosto muito do seu abraço. Tão pouco para o tamanho da expectativa e o tanto que sempre gostei de me aconchegar e ter em meus braços um corpo quente.

 

Nossos diálogos só tiveram um momento de "diálogo" quando comentamos o filme Mucize.

 

O vazio chega como esta chuva aí em Connecticut. Cai de montão e ininterrupta quando ela anuncia que irá para a casa dela.

 

Entendo que a companhia desta menina, moça e mulher é tão ou mais importante para a mãe dela do que para mim.

 

Filha de pais separados, pouco conviveu com o pai. A maior parte da vida vivida com a mãe consolidou uma relação harmoniosa e cheia de cumplicidades.

 

Hoje, ela viajou e aproveitei para resgatar alguns momentos vividos para cumprir uma experiência ditada pelo meu mestre de “passados” Walter Benjamim

 

Raramente ela me abraça. Raramente ela me beija. Hoje, ao nos despedir, ela não me abraçou e nem me beijou.

 

Assim, minha filha Ana Luísa, mais uma vez, saiu pela porta que ela mesma abriu

 

 

 

 

É Walter Benjamim quem diz que a esperança é olhar para o passado e fazer o

“presente”.

 

Das Teses sobre o conceito da história, 1940, de Walter Benjamin

Separei estas

 

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 O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos.

 

 

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"Comparados com a história da vida orgânica na Terra", diz um biólogo contemporâneo, "os míseros 50 000 anos do Homo sapiens representam algo como dois segundos ao fim de um dia de 24 horas.

Por essa escala, toda a história da humanidade civilizada preencheria um quinto do último segundo da última hora." O "agora", que como modelo do messiânico abrevia num resumo incomensurável a história de toda a humanidade, coincide rigorosamente com o lugar ocupado no universo pela história humana.

 

 

 

2  do apêndice

 

Certamente, os adivinhos que interrogavam o tempo para saber o que ele ocultava em seu seio não o experimentavam nem como vazio nem como homogêneo.

Quem tem em mente esse fato, poderá talvez ter uma ideia de como o tempo passado é vivido na rememoração: nem como vazio, nem como homogêneo.

Sabe-se que era proibido aos judeus investigar o futuro. Ao contrário, a Torá e a prece se ensinam na rememoração.

Para os discípulos, a rememoração desencantava o futuro, ao qual sucumbiam os que interrogavam os adivinhos.

 

Estas foram a últimas reflexões deixadas por ele no ano do seu suicídio em 1940 na fronteira da França com a Espanha.