E ela chegou
Rufino Fialho Filho
Vivo um
tempo diferente. Sempre sozinho a maior parte dos dias e das noites. De repente
uma jovem abre a porta e entra na minha vida.
Magrinha
como você (ainda é?). Ela tem 24 anos. É do final do século XX. Nasceu em 1999.
Passamos a
conviver. O impacto desta presença complicou um pouco minha cabeça. Havia
desaprendido a viver com uma moça dentro de casa.
Percebi,
imediatamente, foi minha sorte, que eu é que teria que aprender com ela e seus
hábitos. Focada na conclusão do seu curso, ela estuda 90% do tempo em que
estamos juntos.
Se sujou,
limpa.
Esta
diretriz que sempre nos acompanhou foi para o espaço. Até que ela lava e guarda
- tudo fora de ordem.
Mas se
acorda, se prepara seu lanche, tudo ficará sujo, só lavará quando voltar da
universidade, às 19h.
Espalha
calcinhas e sutiãs na sala, no quarto, na cama dela e na minha (dormimos em
quartos separados – ela ronca).
Carinhosa,
meiga, gentil, não se nega a fazer nada que eu peça. Quero muito pouco além da
presença feminina na minha vida e na casa.
Se ela ainda
não aprendeu as guardar os talheres em suas respetivas gavetas, tudo bem. Eu
guardo.
Se ela não
arruma a cama. Tudo bem. Eu arrumo.
Afinal, se
estes são os afazeres a fazer, faço-o eu. A contrapartida é tão grande pelo
doce prazer que ela trouxe para nossa vida.
A conversa é
sempre curta, rápida.
Monossilábica.
Gosto muito
do seu abraço. Tão pouco para o tamanho da expectativa e o tanto que sempre
gostei de me aconchegar e ter em meus braços um corpo quente.
Nossos
diálogos só tiveram um momento de "diálogo" quando comentamos o filme
Mucize.
O vazio
chega como esta chuva aí em Connecticut. Cai de montão e ininterrupta quando
ela anuncia que irá para a casa dela.
Entendo que
a companhia desta menina, moça e mulher é tão ou mais importante para a mãe
dela do que para mim.
Filha de
pais separados, pouco conviveu com o pai. A maior parte da vida vivida com a
mãe consolidou uma relação harmoniosa e cheia de cumplicidades.
Hoje, ela
viajou e aproveitei para resgatar alguns momentos vividos para cumprir uma
experiência ditada pelo meu mestre de “passados” Walter Benjamim
Raramente
ela me abraça. Raramente ela me beija. Hoje, ao nos despedir, ela não me
abraçou e nem me beijou.
Assim, minha
filha Ana Luísa, mais uma vez, saiu pela porta que ela mesma abriu
É Walter
Benjamim quem diz que a esperança é olhar para o passado e fazer o
“presente”.
Das
Teses sobre o conceito da história, 1940, de Walter Benjamin
Separei
estas
3
O cronista que narra os acontecimentos, sem
distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada
do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem
dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu
passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é
citável, em cada um dos seus momentos.
18
"Comparados
com a história da vida orgânica na Terra", diz um biólogo contemporâneo,
"os míseros 50 000 anos do Homo sapiens representam algo como dois
segundos ao fim de um dia de 24 horas.
Por essa
escala, toda a história da humanidade civilizada preencheria um quinto do
último segundo da última hora." O "agora", que como modelo do
messiânico abrevia num resumo incomensurável a história de toda a humanidade,
coincide rigorosamente com o lugar ocupado no universo pela história humana.
2 do apêndice
Certamente,
os adivinhos que interrogavam o tempo para saber o que ele ocultava em seu seio
não o experimentavam nem como vazio nem como homogêneo.
Quem tem em
mente esse fato, poderá talvez ter uma ideia de como o tempo passado é vivido
na rememoração: nem como vazio, nem como homogêneo.
Sabe-se que
era proibido aos judeus investigar o futuro. Ao contrário, a Torá e a prece se
ensinam na rememoração.
Para os
discípulos, a rememoração desencantava o futuro, ao qual sucumbiam os que
interrogavam os adivinhos.
Estas
foram a últimas reflexões deixadas por ele no ano do seu suicídio em 1940 na
fronteira da França com a Espanha.