quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O MATADOURO









Ora, direis! 

Ouvir os bois?



A turma da lavoura acorda uma hora antes. Ela vai para o pátio em frente ao portão externo. Outra turma de presos vai para a base, onde o trabalho é duro, enxada, pintura, asfalto.

Nova divisão, da turma da lavoura uma parte fica na horta lá embaixo. Desta, grupos menores dirigem-se para os pequenos serviços, manutenção dos canteiros, limpeza e garagem. O restante da turma da lavoura, geralmente os últimos a sair, vai para o matadouro, arrendado a um particular.

No matadouro, o pessoal ganha bem. Eles recebem por cabeça de gado abatida. No fim do mês sobra mais de oitenta cruzeiros para cada um. O matadouro não é longe, em menos de vinte minutos caminhando por um chão de terra batida chega-se ao acampamento, depois à construção precária de tijolo e madeira, o matadouro.

João era novo no serviço e era a primeira vez que lhe davam oportunidade de sair fora daqueles muros cinzentos da penitenciária. “Dentro de mim acontece alguma coisa quando passo por estes muros,” sempre dizia o Tigrão, e isto era repetido sempre que estava a vinte metros do portão.

Depois Tigrão comparava. “ É a mesma coisa que ver uma mulher bonita” .

­­- Eu também sinto-me diferente quando tem uma mulher bonita por perto.

- É uma dor em cima do estômago – afirma Tigrão.

- É como se a gente tivesse engolido algo bom mas que incomoda.

- Olha, João, quando eu saia para a rua, lá na comarca, eu não conseguia controlar minhas pernas, dava cada pressão. A mesma coisa aconteceu da vez que fui no Hospital das Clínicas com Jefferson. Ficamos, eu e o Batista em frente ao prédio, os carros passavam, sabe como é o trânsito perto daqueles hospitais? Pois é, João, os carros passavam, freiavam, arrancavam e eu ia suando frio, tremendo e me apavorava todo. Eu me mandava para dentro do hospital. As paredes pareciam me proteger, mas eu tinha ódio daquelas paredes que me lembravam estas daqui.

João parou antes do Cacique, uma pequena vila, para entregar a correspondência do Isaltino que estava na pior e sem nenhuma oportunidade. A mulher de Isaltino se emocionava todas as vezes que recebia as cartas do companheiro.

Este era o sétimo dia de trabalho de João. No primeiro dia, João desmaiara ao ver toda aquela sangreira, a brutalidade, a habilidade dos esquartejadores. No terceiro dia, todos esqueceram do fato, no entanto, ficara a impressão da insistência com que João comunicava suas idéias.

- Isto é covardia.

- Vocês não têm pena dos animais?

- Eles parecem conosco, todos sabem que vão morrer, dêem ouvido ao grito de agonia destes animais, eles são animais tão humanos quanto nós, eles são bravos. Veja, eles não cedem na hora da morte.

- Quem ensinou aos bois que chegou a hora da morte? Eles sabem a hora da morte. Como eles sabem que vão morrer?

- Como eles conhecem a morte?

Intrigado João passou as dúvidas dele para os outros. Até este dia João nunca executara um animal. Hoje não haveria escapatória, ele teria que matar. Afinal, não ganharia nada no final do mês. Muitos que folgavam hoje queriam estar lá no Matadouro para ver o que iria fazer o João nesta situação. Tigrão se ofereceu para ajudar João. Os dois matariam melhor.

Tigrão levantara pensando nisto, sonhara com um animal varando o seu amigo. Ele estaria ali do lado. No pátio, não notara diferença no companheiro, a não ser aquela conversa sobre a dor no estômago e as mulheres, em que ele João dera a sua opinião. E sobre o conhecimento, que o boi tinha do momento da morte. Bobagens! Tudo aquilo era bobagens.

- João, eu fui marreteiro muito tempo, devo ter matado para mais de mil bois, por isso, escuta o que eu digo, é conselho de amigo. Cuidado, aquilo é uma luta, é perigoso, o boi arranca a marreta da mão da gente, da mesma maneira como ele sabe que vai morrer ele sabe quem vacila. Se o boi tirar a marreta, a gente escorrega, perde o equilíbrio, e se cair no chão é o fim. O boi furioso mata, mata porque sabe que vai morrer, mata para vingar. Tem que acertar a primeira marretada, não pode ter pulso mole ou pensar em agilidade, nós estamos em vantagem, ficamos no alto, uma só esmorece o bicho, ele bambeia, não resiste mais.

- Eu devo matar - João afirmou? Perguntou?

- Então, vamos lá acabar com isso logo -João saiu decidido.

Ele apanhou a primeira marreta. Os lamentos do animal começaram a fazer parte do seu organismo, um boi, dois, cinco, dez. Aqueles sons atravessavam sua pele, não adiantava ter os ouvidos surdos ou trazê-los tapados com algodão, como fazia. Era inútil. Sua pele, todo o seu ser, recebiam aqueles sons e ele, João, os compreendia, eram lamentos, eram urros de quem ia morrer. Era a percepção da morte. Quem é capaz de perceber a morte, pensa.

Hoje era o seu dia, João devia encerrar aqueles recuos, aquelas vacilações de um bobo, um João Bobo, se seu destino era matar, então mataria, mataria. Ele estava resolvido. E se não conseguisse nada? Fugiria.

Olhou o primeiro boi que devia matar e virou os olhos para um lugar qualquer que fosse capaz de trazer-lhe um outro pensamento, um pensamento como aquele que tivera ao deitar, ele era criança, assistia à perseguição de um ladrão, depois ouviu os lamentos de umas mulheres e não ouviu mais nada, tudo estava escuro, as mulheres haviam gritado com medo dos tiros terem atingido alguém, ele se lembrou do sentido dos gritos das mulheres e percebeu então que estava morrendo.

O boi que entrou era um guzerá velho mas forte e inquieto. O seu lamento era o mais sentido, seu couro brilhava, de seus chifres o Mineiro faria peixes dourados, Antenor faria pentes, os pentes eram mais requisitados, vinha até encomenda da capital, João lembrou do carroção que o Casanova fizera, oito bois na canga, um servição meticuloso, os bois puxando o carroção de apanhar a colheita, atrás estavam as enxadas, as foices, o cantil, os apetrechos dependurados, um pano vermelho balançava na ponta da vara que dois bonecos carregavam. João não entendia o pano vermelho. Para que? Naquela estrada não passaria outro carro de boi.

Alguém gritara o nome do boi. Carioca! Carioca! Cariooooca! A todos os bois, na hora da morte, o pessoal dava um nome e o nome que mais matavam era Carioca, marido de uma mulher conhecidíssima na cidade.

De um pulo os dois João e Tigrão alcançaram o estrado. O touro vinha sendo conduzido para as marretas. Embaixo, o chão não era mais de terra nem de cimento, uma camada cobria o chão, era sangue infiltrado no chão, misturado com a terra e o cimento. Até aquele momento, João era o encarregado de trazer a água ao final de cada matança.

- Aguenta firme, companheiro.

João não reconhecera a voz. Ao seu lado estava o Tigrão vigilante mas silencioso. Debaixo das marretas o boi não ficava quieto um minuto.

Zeca-Miolo-Mole, Binzim e Tiago, também Jucá interromperam suas tarefas. João ergueu a marreta. O boi ficou quieto. A marreta desceu e acertou em cheio a base de sustentação dos marreteiros. João caiu sobre as costas do boi e daí ao chão.

Tigrão viu o amigo sendo pisoteado. Reafirmou mais uma vez a sua calma, pois sobre uma base de sustentação frágil vibrou duas poderosas marretadas no boi que eliminaram imediatamente com o animal. Zeca-Miolo-Mole e Tiago tiraram João para fora do sangue.

- Tigrão, para mim, foi impossível.

As mãos de João foram esbagaçadas pelos pés do boi. Colocaram João em um Jeep.
Tigrão voltou naquele mesmo dia, se apresentou na administração e pediu para ser afastado do Matadouro.

- Por quê?

Tigrão disse qualquer coisa que justificaria ter o seu nome cortado daquela relação de trabalhadores privilegiados dentro do sistema penitenciário. Viu riscarem o seu nome e afastou-se.
Sua cabeça estava tranquila e leve, lembrou do amigo que já estava de volta do hospital. Afastando-se da administração retornou a pergunta por quê?

- Por quê? Ele lembrou da pergunta do funcionário e da sua voz grave, agora respondeu rindo.

- Por quê? Porque eu agora também estou escutando os bois.

- ?????

- "Amai para entendê-los!"





Ouvir Estrelas

Olavo Bilac

Ora ( direis ) ouvir estrelas!
Certo, perdeste o senso!
E eu vos direi, no entanto
Que, para ouví-las,
muitas vezes desperto
E abro as janelas, pálido de espanto

E conversamos toda a noite,
enquanto a Via-Láctea, como um pálio aberto,
Cintila.
E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas?
Que sentido tem o que dizem,
quando estão contigo? "

E eu vos direi:
"Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e e de entender estrelas