quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A CAPTURA


Martin Esquacre

“Todas as coisas humanas possuem dois aspectos,
à moda dos silenos de Alcibíades, que tinham
duas caras inteiramente opostas. Por essa razão
é que, freqüentes vezes, o que ao primeiro golpe
de vista parece a morte, na realidade, observado
atentamente, é vida. E desse modo, freqüentemente,
o que parece a vida é a morte; o que parece belo é
deformidade; o que semelha rico é pobre; o infame
parece glorioso; o que aparenta ser douto é
ignorante; o robusto parece fraco; o que parece
nobre é ignóbil; o que parece alegre é triste;
o favorável é contrário; o que aparente ser amigo
é inimigo; aquilo que parece salutar é nocivo;
em resultado, virado o Sileno em seguida muda a cena”.

Erasmo de Rotterdam, Elogios da Loucura

A estrada da pequena fazenda de Dona Laurinha de Seu Rodrigo até a cidade era longa; cansava uma caminhada por aquelas bandas. Na volta, terminada a entrega do leite, tudo era mais fácil e sol não era tão quente. A estrada sempre foi bonita, acompanhava um brejo, acompanhava um riacho e as margens, da estrada e do riacho, limpas e abertas, deixavam escapulir, para os olhos enormes dos que vêem a natureza e mistura-a aos sonhos, os morros cinzentos lembrando ao orgulhoso a força da terra, aos envelhecidos, um campo arado, que apontavam as marcas da terra, as marcas dos escoadores artificais.

Estes morros porém não eram cinzentos para os olhos de Tião Bagre que agora dizia que os morros eram vermelhos. As casinhas de velhos agregados apareciam aos pedaços, ora um pedaço de parede branca, ora entre as árvores e atrás de uma cerca as telhas vermelhas da casa de Joana, aquela que viveu com Duda. Ninguém sabe para onde o Duda foi. É comum aqui em nossas terras as pessoas desaparecerem. Joana não se preocupou e a fumaça que sai de suas chaminés corre em grossos volumes aos céus para, assumindo os formatos das nuvens, transportar até o longe onde estiver o Duda as notícias de uma vida alegre e de cinco filhos que Joana teve com Zé da Venda, com o Seu Antenor, com o pequeno que joga de ponteiro, com este jogador ela teve dois, e, finalmente, a filhinha que nasceu depois do seu tempo com o homem de barbas grandes, que chegou, trabalhou apenas nas terras de Joana e que nunca saiu das terras de Joana, a não ser para seguir o caminho de Duda.

Seu Zé da Venda dizia que o homem de barba era o Duda, mas Dona Olímpia não acreditava. Duda era forte, Seu Zé respondia que foi, “ele foi”, Duda era magro não tinha aquele barrigão. Seu Zé dizia que ele foi magro. Dona Olímpia se irritava. Duda! Duda nunca pôs um pingo de cachaça na boca, Duda não era desses “conversador” que a gente encontra por aí, Duda tinha voz, sabia cantar, cantava mesmo trabalhando na roça. Seu Zé da Venda calou, ele entendeu quem Dona Olímpia podia estar descrevendo. Seu Zé lembrou que Duda gostava de chupar cana. Para Dona Olímpia, em definitivo, o barbudo calado não era Duda, era apenas mais um e não seria o último, estava apenas depois do jogador de futebol. Tião seguia na estrada, e, desde que Arlete voltou, a estrada mudou de cores, era como se molhassem um pano, assim é que suas cores apareciam para Tião Bagre.

O azul coloriu pela primeira vez as suas faces. As nuvens que nunca lhe tinham dado atenção o convocavam para um passeio ao sabor do vento, um passeio por aí a fora, á toa. Tião Bagre completara 13 anos na semana passada e ninguém lhe contara isso. Não havia ninguém para lhe lembrar a sua idade. Ele crescia sem saber que com o tempo se tornava mais velho. De uns tempos para cá, as fêmeas surgiram em seus sonhos, em tudo o que via, até nas coisas que ouvia. Segundo o que ele aprendera com o vaqueiro Jovino, a fêmea pertence ao macho.

Um ano passara com Tião trabalhando para Dona Laurinha, em troca da sobrevivência, trabalho pesado. Todo dia, cedinho, ajudava a boa mulher, que surgia cercada e amarrada em panos, os olhos remelentos. Juntos recolhiam o gado do pasto. Enquanto Dona Laurinha tirava o leite, ele fazia o trabalho mais pesado, rachava a lenha. Por fim, arriava o animal. Colocava os tambores e ia para a cidade. Dona Laurinha proibiu Tião de tirar leite, porque dele as vacas escondiam o leite. Os animais acostumam com as pessoas e, segundo Dona Laurinha, os seus animais a respeitavam.

Hoje, Arlete desceria para a cidade com Tião Bagre. Era dia de compras no armazém. Na noite anterior, Tião acordara várias vezes pensando que já estava na hora de sair. Acabou dormindo até depois da hora, quando acordou, o animal já estava arriado e foi Arlete que veio despertá-lo.

- Tião, venha me ajudar a pegar a Lourinha.

O dia ainda estava escuro, Tião Bagre levantou assustado, em sua frente estava Arlete. Ali, dentro do seu quarto, do quarto de arreios. Como ela era bonita! Ele estava sonhando com ela. Ele ainda tentou se cobrir, mas Arlete não prestava atenção em nada e sequer viu o gesto de Tião. Arlete ria constantemente, Tião Bagre nunca a encontrou triste ou com a cara fechada.

- Levanta, Tião, preguiça de manhã é um perigo, faz mal.

Tião ficou nervoso, não gostava que rissem dele. Acompanhou os sons das gargalhadas de Arlete como se fossem uma parte do aquecer para o frio da manhã. Jogou as cobertas no chão e saiu.

Lourinha era a égua de montar e que servia para trazer as compras feitas na cidade.

No campo, molhado com o orvalho depositado nas plantas, Tião Bagre andava como o dono da sabedoria, sentia-se o senhor, o único dono da mata.

- Arlete, você vai por aí. Eu sei onde Lourinha fica esta hora.
- Na chapada?
- Não.
- No brejo?
- Ignorante, onde já se viu...
- Por que não? Égua nunca vai pro brejo?
- Lourinha nunca foi ao brejo?
- Lourinha nunca foi ao brejo? Nunca – afirmou Tião Bagre já com medo de vacilar.
- E onde ela bebe água, seu bobo?
- No pé da serra.


Arlete e Tião avançavam pelo campo. As tonalidades de azul do céu, a madrugada acabando, os cantos dos pássaros, uma estrela esquecida de que a noite acabou, a tinta que o pintor jogou de qualquer jeito nos prados, os animais despertando, no meio daquele silêncio dos dois: Arlete e Tião, ali no meio daquilo tudo.

- Preste atenção, Arlete.
Arlete não o ouvia.
Ouça Arlete: eu vou pela porteirona. Você fica aqui. Eu subo a serra e volto tocando Lourinha.

A égua desceu galopando, atrás Tião vinha aos pulos. Arlete jogou o laço. A corda descreveu um círculo no azul e bateu como uma taca no pescoço de Lourinha, que aumentou sua velocidade, o laço resvalou, subiu e caiu no chão preso a um arbusto.

Arlete deixou a corda no chão e procurou cercar a passagem da égua. Era a mulher contra o animal. A égua voltou em sua direção. Arlete estendeu os braços, a égua se aproximava devagar. Um metro do animal e o susto. A égua driblou Arlete e ganhou o campo em um galope que parecia ser só chacota.
Afinal, estavam todos os três brincando.

- Ah, ah, ah... Ria Tião.

Riso livre. Suave, igual uma melodia.

Arlete pôs as mãos na cintura, empurrou os quadris para a frente, completou a mímica com um desafio

- Vamos ver quem pega?

Tião aceitou o desafio. Os dois partiram atrás de Lourinha. Agora era cada um por si. Lourinha galopava, passou correndo perto deles. Lourinha também aceitou o desafio. Arlete experimentou o laço mais uma vez. Inútil. A cena corria no cenário da manhã. Arlete levantava os braços, fazia girar o laço. Lourinha abaixava e erguia o pescoço, cavalgava com garbo. Tião percorria com os olhos a distância entre Arlete e Lourinha. É um momento em que apenas a beleza importa. O mundo não podia acabar nunca. O rosto moreno de Arlete, onde uma gota de orvalho deslizava para cair tornando-se mancha em seus seios, a roupa branca cobrindo a pele, o verde colorindo o chão, os pés firmes de Tião Bagre, menino de treze anos, a carne musculosa da égua, a corrida no meio do vento, a manhã, o frio do orvalho, a roupa molhada, a corrida envolvendo Lourinha, o cerco apertando.

A égua parou. Tião Bagre está próximo. Parou também de correr e foi aproximando-se com cuidado. Ele afastava o mato. Evita o barulho. É a aproximação. Procurou dar um outro tom à voz. Chamou a égua.

- Lou rin... nha!

Ela voltou-se atendendo ao chamado. Tião concentrou-se. Os dois aproximavam-se cada vez mais. Lourinha era dele. Ganhava o desafio. Pôs a mão sobre a crina e a acariciou.

- Lou ri nha, se ja boa zi nha pa ra mim – disse sílaba por sílaba.

Bruscamente, a égua escapuliu. Soltou-se na corrida. Tião Bagre deixou cair os braços. Com um pedaço de pau, Arlete afugentara o animal.

Dona Laurinha apareceu lá no alto e gritou com os dois.

- Vocês sabem quantas horas são? Arlete deixe-o, você atrapalha mais do que ajuda.

Na cidade, Arlete foi até o armazém do Seu Hernani. Todas as vezes que Arlete chegava ou saia o comentário de Seu Hernani era o mesmo. Ele gostava de falar palavra por palavra daquelas frases.

- Eu conheci esta menina quando ela nasceu. Ela era muito feia. Cresceu um pouco e ficou bonitinha. Cresceu mais e ficou mais bonita. Hoje, ela é bela.

- Entre menina, cada vez mais bonita!

Seu Hernani, um bigodão, uma fala alta e arrastada; ao lado disso tudo, ele tinha a convicção de que a cidade era um único mercado e que este mercado possuía uma única venda e que esta venda lhe pertencia. Ninguém seria capaz de tirar um freguês de sua casa.

- Sou respeitador.

Tanto era verdade que nunca perdeu um freguês, quanto eram mentirosas suas histórias sobre o respeito às famílias. Seu Hernani andava o tempo todo de antenas ligadas para saber quem era de quem e quem andava na vacilação para poder dedicar a estas pessoas a sua boníssima atenção e crédito

Nos últimos três anos, vários comerciantes vieram enfrentá-lo. Instalaram-se 90 dias, 100 dias. Não mais. Não houve propriamente uma competição. Os comerciantes chegavam, instalavam com técnicas e artifícios suas casas comerciais. Faziam a secular propaganda. Pintavam frases nos muros, ofereciam preços atraentes, traziam a última moda da capital. Tempos depois, procuravam ficar num setor que Seu Hernani não explorava. Tempos depois, como todos esperavam, a casa anunciava a transferência para outra localidade, falência, abandono, concordata.

A loja do Seu Hernani tinha um único balcão. Um grande balcão. Vinte metros de balcão, ali faziam os embrulhos, mostravam as mercadorias, conversavam, liam os últimos jornais. Todas as manhãs chegava o jornal da capital. Virgulino era o único que lia alguma coisa. Andava muito interessado em política internacional. Depois que saía o secretário da prefeitura, Virgulino fazia ligeiras observações sobre a guerra no sudeste da Ásia.

Seu Hernani, um dia se pilhou fazendo uma observação que o deixou preocupado e ansioso vários dias. Qualquer pessoa estranha que aparecia na cidade seria, para o Seu Hernani, um misterioso policial que viria levá-lo sem formalidades. Seu Hernani dissera na roda de cerveja que os viets eram o orgulho da humanidade e que, por isso, ele se sentia contente por ser homem e de saber que nesta época trágica para a humanidade existia um povo como aquele, do qual ele se sentia irmão por ser contemporâneo. Foi o medo que despertou seu Hernani para uma observação. Por que Virgulino não fazia nenhum comentário na presença do secretário? Existiam homens perigosos. Três ajudantes de Seu Hernani percorriam aqueles vinte metros de balcão vendendo latas de conserva, que ficavam amontoadas numa prateleira pintada de amarelo, vendendo as mercadorias de consumo que um armazém e armarinho possuíam.

- O amarelo e o vermelho são cores chocantes. Vocês não vêem que os grandes supermercados estão cheios de vermelho e amarelo. Até o amarelo das faz parte da teia montada para venda.

As disposições das latarias não eram perfeitas, Antônio Doido, barbeiro estabelecido, não passava por ali de jeito nenhum.

- Qualquer dia: o desastre. O desastre.

Dona Jaci, a costureira, só comprava com o Seu Hernani. Dela, diziam que costurava para fora e depois sorriam maliciosamente. Quando falava sobre o armazém de Seu Hernani, dona Jaci dizia que ali ela havia descoberto o maior estoque de linhas que conhecera em sua vida. Botões, vestidos, Seu Hernani a princípio não quis negociar com roupas feitas, devida a sua amizade com Dona Jaci, “a excelente Dona Jaci, uma artista, uma mulher competente”. Porém, como todos sabem, as roupas feitas se impuseram. Dona Jaci se sentiu traída, mas mesmo assim ainda continua negociando com seu Hernani. A seção de roupas feitas tornou-se o maior orgulho de seu Hernani. Encimando os mostruários está o cartaz

ROUPAS PRET-A-PORTER

Cartaz desenhado pelo sobrinho, um desenhista de capital, “um crânio em publicidade” ouviu várias vezes um dizendo pro outro e o outro dizendo de novo para um novo outro. Seu Hernani muitas vezes pensou naquele crânio.

- Se eu tivesse aquele crânio! E aqueles bons amigos todos sempre repetindo, sempre repetindo!

O armazém situado na rua Getúlio Vargas, pintado de branco, as portas de vermelho, com luzes na calçada, placa, não era bem iluminado no seu interior. Outro dia Seu Hernani bronqueou com Pedro, um dos ajudantes.

- Sujeito aluado.

Pedro trocara uma lâmpada de 60 watts por uma de 100.

- Maluco, definitivamente maluco – Seu Hernani erguia as mãos. Botem este doido num camburão e levem-no para o hospício.

Outro ajudante, o centro-avante do Atlético, Braga, no almoço, dizia para a família que o Seu Hernani era um homem bom, de coração imenso. E depois de muita conversa, sem parar de comer um segundo, dizia que não conseguia compreender porque, todas as noites, depois de fazer o caixa, Seu Hernani ficava contrariado e nervoso. Nessas ocasiões, Seu Hernani falava de planos de crescimento e empolgado ajuntava palavras esquisitas extraídas de uma revista que ele assinara em São Paulo.

- O progresso exige homens com têmpera de aço.

Soltava uma gargalhada como crítica à frase.

Depois de atender Arlete, passou alguns momentos falando sobre a família de Arlete, Dona Laurinha e do finado Seu Rodrigo.

- Dona Arlete, desde que você deixou aquele homem com quem se casou, aquele sujeito que não comia, observo que a minha menina, pois eu te considero uma filha, anda meio vaga, como se estivesse no ar e sem ar.

- Ao contrário, seu Hernani, estou bem no chão, terra-terra. Até logo.

- Até logo e dê as minhas lembranças a Dona Laurinha. Que aqui não me esqueço do nosso bom Rodrigo.

Arlete caminhava, vinha em sua direção e para Tião a rua sumiu neste momento. Até os postes desapareceram. No mundo, no seu mundo, só tinha Arlete. Ela era uma mulher imensa, linda, seus pés eram tão perfeitos, em volta deles a poeira subiu como uma auréola, mas aquela poeira parecia uma imensa nuvem e que Arlete utilizava a nuvem como um tapete mágico ou como as imagens de santo que ele via na igreja. Ele não sabia se Arlete caminhava ou se ela se deixava levar. Tião pensou se era só ele que percebia a nuvem.

*

Arlete mandou Tião Bagre de volta para a fazenda. Ela ficaria até mais tarde na cidade.
Arlete deixou Tião Bagre se preparando para partir e foi à casa de Dona Maria, mãe de Druílio. Como sempre, Druílio lá estava jogando paciência. Ele fora noivo de Arlete até o dia em que apareceu o Faquir, homem magro que vivia de fome.

Druílio indicou a cozinha e disse que sua mãe estava lá.

Arlete passou duas horas na casa de Dona Maria, almoçou e tentou várias vezes falar com Druílio.
- Desculpe Arlete, vou aumentar o som.

Era o noticiário esportivo da sua rádio preferida.

Druílio não respondia às perguntas. Olhava fixo aquele rosto que segurava os lábios desenhados. Quando ficaram sozinhos, Druílio disse-lhe que ela não devia aparecer mais lá, que o deixasse em paz, que mesmo que ela fosse a mulher, a única mulher do mundo, ele não a queria. Chamou-a de puta e desligou o rádio.

Arlete despediu de todos e seguiu de volta à fazenda. Segurava suas lágrimas com os músculos da face virando pedra, seca. Tinha primeiro que dobrar a esquina, deixar a cidade para trás. Mas depois que dobrou não quis mais chorar. Voltou e passou na padaria. Conversou com o novo padeiro, um rapaz novo na cidade que gostava de contar casos, que ria e que se dizia amigo de Arlete. Arlete comprou algumas surpresas para Tião Bagre e Dona Laurinha.

Tempos depois, numa manhã brumosa, Dona Branca, mulher de seu Argemiro, encontrou o que restou de Arlete.

Ela fora vítima de violências absurdas e depois assassinada. O assassino cumpriu um ritual estúpido e, como em todo ritual, cheio de maldades. Durante vários dias mantivera Arlete com os pés e as mãos amarradas antes de matá-la a golpes de porrete. A polícia suspeitou do Faquir por ele ser Faquir, segundo porque um Faquir seria, essencialmente, um homem mau, nas palavras textuais do sargento, e terceiro devido ao ritual.

Nada se conseguiu apurar. Quem matou Arlete? O Faquir abandonado? Seu ex-noivo, Druílio? O centroavante do Atlético? Seu Hernani? Ou o menino Tião Bagre?

O menino Tião Bagre morreu no mesmo ano em que morreu Arlete e a égua Lourinha.

O Faquir sumiu.
Druílio, o ex-noivo, casou.
Seu Hernani começou uma criação de porcos e já fala em exportar linguiça.
Braga, o centro-avante, joga em São Paulo.

Como ficara difícil e impossível apurar a autoria daquele crime, o assassinato seria atribuído mesmo ao menino.