Comi a perna e o joelho de um homem branco
Para Régis Sanchez
Amanhã é aniversário de Thiago. Fará 19 anos. Hoje, na pista de Cooper da avenida dos Andradas, na margem esquerda do rio Arrudas, afluente do rio das Velhas, na bacia do rio São Francisco, na manhã cedo e ainda vazia, encontrei-me com Reginaldo Soares Sanchez.
Reginaldo falou, falou muito e queria falar.
Estou separado, agora estou morando na casa de um amigo e em diversas casas.
Você se lembra do Washington, fotógrafo? Às vezes moro no apartamento dele, durmo lá umas noites.
Durmo também no apartamento de Teresa, a mãe de Ana Luisa, minha filha. Ela está com três anos e meio.
Na minha casa ninguém queria casar, somos cinco irmãos homens.
Agora começaram a nascer as crianças.
A última vez que fui ao Norte foi em 95 quando levei Ana Luisa a Macapá para o meu pai conhecer a sua neta.
Levei mulher e filha.
Meu pai bateu direto, ele não aconselhava mulher nenhuma a casar com nenhum dos filhos dele. Nenhum era certo. Todos só viviam de pau duro, se era para ter orgasmos direto, então tudo bem, só para e por causa do orgasmo, para viver e ter plano de vida não. Não valia a pena. Ele desaconselhava. Na cara dura.
Separar foi barra, é difícil.
Meu avô dizia que não se devia por muito óleo no pavio. Se encharcar o pavio, ele não acende.
Nos dias seguintes à última separação, a primeira semana foi muito sofrida.
Sofri o diabo. Não conseguia pensar outra coisa e só arranjava razões para telefonar.
Ela já me atendia com rispidez e com enfado.
Segui o ensinamento do meu avô e dosei o óleo. Não liguei mais.
Como? Impus-me uma rotina espartana, horário de acordar, caminhar, ler, trabalhar, comia a mulher que me ligasse à tarde e comia desesperadamente.
Vamos trepar de novo! Era o que eu queria. Era o que elas queriam. Eu não sou objeto, não é isso. Ninguém imaginria o tamanho da minha dor.
Um tempo depois, ela, a minha ex, aparece no jornal. Precisamos conversar. Não temos nada mais que falar. Poderíamos almoçar? Vamos, está na hora. Depois do almoço, ela me convida para passar na casa dela, que foi nossa, a noite.
Agora, ela é uma das que ficam após a triagem que fiz e em que eliminei as mulheres da pesada e das drogas.
Hoje, vivo a liberdade, morando ainda aqui e ali. Nem sempre por exemplo posso dormir no apartamento do Washington. Ele está noivo. Disse para ele não casar - repito o conselho do meu pai.
Quando ele leva a noiva para o apartamento, eu não posso ficar. É constrangedor. Agora, quando ele vai dormir no apartamento dela, eu durmo no apartamento dele.
Assim, às vezes durmo no centro da cidade, no apartamento de Washington, outras vezes no Sion, na rua Estados Unidos, outras vezes no apartamento de Tereza aqui no São Lucas.
Cheguei à conclusão de que é verdade aquilo que dizem que quem gosta de pica mesmo é viado e de que mulher gosta mesmo é de dinheiro. É por aí. Este raciocínio chega perto da verdade, daí porque existe e se chegou ao casamento, o casamento é um papel que garante o dinheiro para a mulher, um relacionamento em que ela tem um homem para sustentá-la, bancar a boa vida, daí porque com o tempo, as mulheres casadas acabam procurando um homem com cacete suficiente para administrar suas tesões.
Cansei de sair com noivas. Uma noiva, uma semana antes do casamento, fez questão de dormir três noites comigo. Eu entendia, ela precisava garantir sua vida, sua estabilidade, sua segurança.
Agora, uma menina do Tempo, que saiu comigo durante um ano, mandou um convite de casamento e dentro um bilhete fixado com cola. Precisamos nos encontrar antes da minha lua-de-mel.
São os cornos pré-datados.
O que mais me impressiona é a quantidade de mulher mal comida, mal amada e mal relacionada. São as "mulheres das camisinhas, com a data de vencimento vencida".
Elas têm as camisinhas na expectativa de que um homem determinado apareça. As camisinhas vencidas são as suas armas de pescar seus peixes.
Trepadas com prazo de validade das camisinhas vencidas é merda na certa. Aí a camisinha rompe e é problema pro João de Merda.
Estou livre e preciso construir esta minha liberdade com trabalho e organização. Parei de beber e estou emagrecendo, vou fazer 38 anos e tenho que tomar alguns cuidados e fazer alguns exames tipo chekup. Cheguei a pesar 20 quilos a mais do que o meu peso normal, já perdi 10 quilos e vou emagrecer mais, voltei a caminhar e a correr todos os dias.
Morando aqui e ali, já fiz um mapa das pistas de corrida nas imediações dos apartamentos onde durmo.
No centro, a pista do parque é uma pista popular que está melhorando a frequência. A pista da avenida Bandeirantes é de pessoas com uma faixa de renda melhor, a pista aqui da avenida dos Andradas é de um pessoal inferior economicamente ao pessoal da Bandeirantes.
Esta é a nossa cidade, ela se divide, se exclui e se contamina.
Depois de três separações, aprendi a viver com poucas coisas. Tenho quatro malas, livros e computador, e uma mochila.
As malas guardam um pouco mais de coisas e as mochilas têm o essencial: escova de dentes e duas mudas de roupas limpas.
Isto em 27 de março de 1999.
Em 2005, seis anos depois, novo encontro na avenida Cristóvão Colombo. Reginaldo, depois do Tempo, depois de um desentendimento com o técnico do Cruzeiro e da seleção brasileira, depois de um tempo no Norte.
“Um período louco em que mergulhei em meu povo e vivi 18 meses com a tribo Maxiri, no Amazonas. O grupo de antropólogos foi embora e eu continuei Queria viver mais a vida deles. Meu livro não entraria por ali. Não eram os meus igarapés. Até que, num conflito, bem armado pelos índios, morreram quatro homens brancos. Era a nossa carne. Resisti ao máximo àquelas iguarias. Para sobreviver, ser igual, ser cúmplice, comi parte de uma perna e a rótula de um daqueles homens brancos. Foi o meu alvará para ganhar o rio. Era um deles, e tratei de escapar na coleta de mais uma caça de carne de homem branco. Encontrei com três deles em Brasília, durante a ocupação da sede da FUNAI. “Volta com a gente?” Eles têm uma memória diferente, um juízo particular sobre os seus feitos e apetites. Não entendia direito aquela pergunta do Carlo Maxiri. "Volta com a gente?" Não conseguia explicar aquilo. Eles comiam gente e tudo bem, tudo normal. Eu pirava. Cara, fui obrigado a comer a perna e o joelho de um homem. Anh! Se é saborosa? É carne.”
27.03