
A revolução do sonho e a razão radical

I
Todo poeta é um revolucionário
Todo poeta é um revolucionário
1. A luta política espalha poetas por todos os cantos. São os sonhadores, os utópicos. A tragédia está (ou começa) na consciência, quando o homem assume o destino. Os limites não são o labirinto e nem a realidade. Muito menos a imaginação ou o mistério. O limite é o destino. O limite é o sonho, que não acaba, e é a permanência do sonho que faz o homem revolucionário, o cidadão indignado, além do homem revoltado.
2. O que nos dá a política? Nos dá o sonho. Nos dá a realidade (também sonho?). O que nos dá o romance? Sonho e realidade. Assim a poesia (sonho, realidade e mais ainda: explode os limites, as fronteiras e a própria linguagem). Guimarães Rosa mostra em razões explosivas toda a nossa tragédia contemporânea e joga a consciência e com o que faz a consciência: as palavras.
3. Seria inútil o rio Urucuia? Seria inútil o Riobaldo? Seria inútil o personagem? Quem é mais forte, o criador ou o personagem criado? Assim, Manuelzão escapuliu, saiu das páginas e está por aí, nos rondando, falando sua filosofia, nos versos do seu poetar de todo dia. O personagem está solto, vivo e fazendo política, dizendo que é cidadão também, que vota, que sonha. Cidadão e personagem. Vice versa. Não importa a ordem, o nascer e o ser. A palavra exige pensar, exige filosofar, exige procedência. Quem são Diadorim e Riobaldo?
4. Na chave deste enigma de dupla face, de única razão, está o enredo. Na tradução do filólogo, o personagem duplo é palavra, tem raízes, tem sedução, tem explicação e ele (s) é o próprio romance de Minas, do homem, e é, sem frases construídas, síntese de nossa história como homem-cidadão. É, enfim, dia dor in, rio baldo - um estranho caminho, que nos leva até o fundo de um rio inútil, rio baldo, um rio perdido. E o novo caminho é este rio.
5. Assim é o sentido da luta cotidiana que nos traz a explosão das águas e das palavras de Guimarães Rosa, poeta, filósofo, revolucionário. Sonho inútil, a arte poética é arte política. Há que se entender, então, a alma deste homem e buscar na política, na vida, o caminho da revolta.
6. O romance Grande Sertão Veredas começa com a antropofagia, o homem deve devorar o homem, mesmo que isto o inquiete. Como Guimarães Rosa, começa seu Grande Sertão? Começa com uma cena de canibalismo. Um engano? Os sertanejos pensaram que avistaram um macaco correndo no campo. Abateram o macaco visto. Destrincharam o macaco imaginado, capturado, morto. Comeram o macaco saboroso. Tudo vencido, a fome aplacada, descobriram o engano(?): haviam comido um homem, um ser humano, uma criança.
7. A antropofagia está no relato dos sobreviventes do desastre aéreo da década de setenta nos Andes, está a antropofagia no relato de Cabeza de Vaca, Alvar Nuñez.
“do último fizemos charque...” (1)
8. A caminhada que durou dez anos, da Flórida à Cidade do México, continuou, depois da fartas e saborosas refeições, e Alvar Nunez Cabeza de Vaca venceu, sobreviveu comendo os que não sobreviveram.
9. A antropofagia, mais que realidade, é símbolo. Hoje, o homem devora o homem, permanentemente. A estatística e a história recente nos permitirão, em breve, ter um cálculo de quantos são devorados por segundo com a nova escravidão, com os novos recursos da culinária antropomórfica.
10. Como se devora um homem? Rosa trabalha com pesquisa de campo e com a construção a partir das palavras, com sons recuperados, com um gravador a tiracolo e com seus conhecimentos etimológicos e filosóficos, um hegeliano sem opiniões, carregado de verdades do seu povo, razão radical de seu existir. Estamos frente a frente com o escultor pigmaleônico. Vide Manuelzão. Ele está ai. Está solto, fala e tem opinião. Vota. (*)
11. Seria o personagem que escapou do autor? Depois do autor, qual a trajetória do personagem senão a vida? O que faz Manuelzão é isto. Ele pulou das linhas do livro, como de um trampolim, para a vida. É o inverso e é a grandeza de Guimarães Rosa. Ele não limita o homem, ele não perpetua o ritual antropomórfico. Ele não consome. Ele não confunde. Ele possibilita a vida. Faz nascer. É o inverso, mas não é a verdade única. Haverá um momento em que o trampolim deixará de existir e em que as páginas do livro se fecharão sem reservas sobre o personagem, onde ele ficará, mais uma vez, limitado a pontos e vírgulas, num diálogo de imagens e sons com os novos homens.
12. Como Guimarães Rosa, o poeta político devora homens e a cerimônia, sem o rito religioso, é simples. Disto, o melhor exemplo, por símbolo, é o escritor Autran Dourado (in A serviço del-Rei) e o seu outro: Juscelino Kubitschek. A obra é a dor e a mágoa. O escritor quis ser escultor, criador, dono. O personagem sempre escapa, sempre é maior, cresce muito, mas deixa inumeráveis e inúteis complicadores. A relação do político com o intelectual é, deles, o mais significativo complicador. Os limites das responsabilidades políticas dos dois cidadãos se confundem e há apenas um em linha de risco.
13. O outro será sempre o escriba, como lembra Régis Debray (2). O escriba, um braço. Parte do corpo. Do outro lado, o outro braço, o arquiteto, o braço esquerdo. O escriba e o arquiteto complementam a ação imagística do líder político. O canibal é um único. O conteúdo da ação política fica por conta do discurso. A forma de ação política por conta dos Colossos (3) necessários. O Colosso, uma obra sempre grande, majestática, imponente, cuja matéria prima será sempre a pedra.
14. Hoje, para o cidadão é importante saber identificar na produção literária, na poesia, radicalmente, os caminhos da liberdade, tão grave e importante quanto o caminho da dúvida, das verdades axiomáticas e das belezas estabelecidas pelas formas e pelas sugestões. Às vezes tudo se resumirá num múltiplo caminho holístico que, inegavelmente, pode nos levar a um rio inútil – ao Urucuia. Mas sempre será um novo caminho, uma nova interrogação, um novo superar, um novo vencer, um nascer de desafios, com a imperiosa imposição da aventura radical. Ser radical como essencial à vida, ao homem, o procurar permanentemente, como nas revoluções, a procura da raiz, do homem, da nossa natureza essencial. O ser. A integralidade do ser. O estar aí também. Dassein.
15. No filme Revolution (4) que conta a história da revolução americana, a epopéia do cidadão e do seu filho – criança se tornando adulto vivendo símbolos, empunhando bandeira, se arriscando para a vida e para a morte – é a epopéia de todas as lutas e de todos os romances. É o sempre indagar da nossa farta loucura, onde a razão, louca razão, onde o possível. Tudo é possível, tudo é história e história é romance, é luta, é poesia. Termina o filme e a luta não acaba. O narrador não é dono da verdade, da vida. Democraticamente, ele tem opiniões. Não há como registrar final feliz, não há final, nem mesmo quando se acaba o filme e nem mesmo quando se acaba uma revolução – uma revolução que se preza não se limita em cursos e em fins políticos.
Revolution termina com uma nova luta começando em um ringue, com uma luta de boxe, onde se defrontam selvagens um branco e um preto. A revolução americana vencera. O personagem fizera um empréstimo à revolução, cedera seu patrimônio - fé é cessão de algo, agora aquela revolução acabara. No acerto das contas, o pagamento do barco requisitado pelo exército rebelde, agora exército da nova nação, valia metade. A terra, prometida do alistamento, não mais existia. Aí nasce a profunda irritação e indignação do cidadão da nação nascente. A sociedade começava por uma revolução (?) terminal. Começava mal. Em meio à festa, à alegria do fim da luta, no ringue explodia o racismo. Os homens, companheiros de luta pela liberdade da pátria (que pátria?) agora se dividiam em pretos e brancos, em superiores e inferiores, em poderosos e fracos, em aqueles que sabiam ler e os que não sabiam ler.
16. É a frustração da luta revolucionária? É uma nova etapa de uma luta que traz a humanidade em guerra permanente, séculos por séculos? É a vitória do certo revelando, ainda no instante mesmo da vitória, corpo suado, mãos inchadas e doloridas, pés pesados, que o certo guarda – não muito bem escondido - muitos erros, muitos desacertos. É uma nova etapa, superior, da luta que revela o novo certo e o novo errado, tornando a luta mais trágica e cansando os heróis, desesperando os comandantes?
17. Por que Che Guevara deixou Cuba e subiu as montanhas da Bolívia? Qual foi a grande interrogação do homem rebelde, revoltado e revolucionário?
18. Por que a necessidade de continuar a luta? O sonho político tem o seu despertar. A luta política, a vitória. O desafio do poder está na capacidade do homem de exercê-lo. Todos sonham. Todos lutam pelo poder, sendo que o vencedor, a idéia vencedora, o partido vencedor, o grupo vencedor, desperta, venceu. Os vencedores foram vencidos, acabam-se, evaporam-se, metamorfoseiam-se. Novos sonhos se apresentam, chegam crianças; novos inimigos se apresentam, nus. Sem inimigos concretos à vista, como exercer o poder? O exercício do poder não é o exercido da força? Contra quem?
- A favor da sociedade.
19. A sociedade são muitos. Quem luta por direitos, conquista-os e não vê razão em quem concede, não dispõe da visão do outro lado, não fala em magnanimidade e nem aceita mais a submissão.
20. É a luta que mobiliza a sociedade. Quem está no poder corre o risco de perdê-lo. O risco é permanente para qualquer um, numa visão maniqueísta do poder ou dialética. Tendo o poder, pode-se perdê-lo. Perde-se o poder até mesmo no seu exercício, na omissão, no abuso. Quem está no poder pode ser afastado do poder. Há que mantê-lo. Há que exercê-lo. Nem mesmo o príncipe sabe como, jamais aprenderá.