O paciente padre Guerard Dapz
“Ainda o pensamento criminoso
de um malfeitor possui
mais grandeza e nobreza
mais grandeza e nobreza
do que os prodígios dos céus”.
Hegel
1.
Semana do Padre Vieira, no Planalto, em Belo Horizonte, 1997.
Vamirech Chacon, historiador, professor, um homem muito alegre e feliz, fala do pensador e do político-conspirador: o pregador de sermões extensos e com várias citações em latim (1). Na mesa, alguém faz uma observação e amplia o leque da análise de Chacon. Observação erudita. Ao meu lado, um cidadão o identifica: “É o padre Guerard Dapz”. Um homem pequeno, magro, cabelos ralos e brancos. Naquele auditório e no meio de tanta gente não dá para observá-lo melhor.
No centro de Belo Horizonte, avenida Augusto de Lima, na calçada do edifício Maleta, na avenida Carandaí, perto do Instituto de Educação, via distante o caminhar devagar de Eduardo Frieiro, o grande escritor – era pequeno e magro. Nunca me aproximei. A minha admiração era grande demais. Não sabia como me aproximar. Seria sempre ridículo. Jamais seria natural. Ensaiei o que falar com Eduardo Frieiro. Nenhuma fala me convencia. Imaginava, creio que com alguma perfeição, as suas respostas. A minha alegria estava em acompanhá-lo, respeitando a distância. Bastava-me. Ele jamais me viu. Nem me deixei ver. Com outro ser da minha admiração foi diferente, mas não tanto. Para mim, Murilo Rubião era mais do que um grande escritor e um mestre do fantástico. Assim, eu me aproximava. Aproximação cautelosa, distante. Passava perto dele e ouvia as pessoas, as vozes das pessoas falando. Nunca ouvi sua voz. Não me lembro. Eu era um devorador de livros e estava, ali, em Belo Horizonte, muito próximo de autores cuja leitura era mais que um aprendizado, era um desafio. Fui um menino que sonhava a partir das palavras. Já conseguia dominar-me. Vencera alguns desafios. Antes, me acontecera de não conseguir terminar de ler Eça de Queirós, como aconteceu com Os maias, tão desesperado ficara com seu domínio do idioma e com a beleza da construção do seu texto. Agora, já conseguia vencer estes obstáculos.
Hoje, no IST, o Instituto, no bairro Planalto, região da Pampulha, Zona Norte de Belo Horizonte, me encontrava diante de um desafio. Contemporâneo do padre Guerard Dapz, podia, já no lanche, observá-lo. Um metro e 60 centímetros, algo por aí, não mais. A camisa clara estava limpa e bem passada. Uniforme de um estudante colegial. Não pude ficar para a continuação do seminário sobre a obra e a pessoa do padre Vieira, nas comemorações dos seus 300 anos de morte. Ficara contente em ter estado próximo do padre Guerard Dapz e de ter ouvido sua palavra.
Voltei, no final de novembro, numa sexta-feira, ao Instituto. Era a oportunidade de estudar com o padre Guerard Dapz. A secretária Fátima, nestes últimos meses conheci três secretárias e todas se chamavam Fátima, esta era a quarta, olhou para mim e afirmou, fixando-se em um senhor do meu lado no balcão, “O senhor tem que conversar primeiro com o padre Guerard Dapz”. Ela buscou a concordância do moço e ele falou, “ligue para ele e pergunte o que fazer”. Ela ligou e o padre não estava em seu apartamento. “O padre Guerard Dapz caminha no pátio, aguarde um pouco”. Fui para a livraria, uma sala pequena, um conjunto pobre de estantes, alguns poucos livros. (2) À minha esquerda os livros de filosofia, da Editora Loyola, à direita bíblias, muitas bíblias em vários formatos e em edições trabalhadas. O rapaz da livraria se aproxima e observo que agora a estante dos livros de filosofia estão à sua direita e as bíblias à esquerda. Peço para examinar um livro de ética do padre Guerard Dapz e um livro sobre Habermas. O padre Guerard Dapz entra na livraria.
“Você quer fazer o curso? Você já estudou filosofia? Qual a sua formação? O curso começa... são duas aulas... são dois semestres, ética 1 e ética 2. As aulas começarão...” Respondi como um autômato. Ao mesmo tempo em que assumia uma postura crítica.
- Esse cara quer é vender seu curso. O padre Dapz é um bom vendedor de idéias e livros. Charada morta.
Lembrei-me das divergências que tive com um texto dele sobre Marx e sobre o socialismo. Será que um dia eu poderei conversar com o padre Guerard Dapz sobre este tema? Achei sua análise fraca, superficial e não concordava de maneira nenhuma. Era mais uma vez os séculos se repetindo: assim como Hegel, que se mostrou um equilibrista para sobreviver, o padre Guerard Dapz, estrategicamente, batia em Marx. Como também, eu queria entender melhor sua análise sobre a questão do senhor e do escravo em Hegel. Abandonava a apologia do escravo sustentada a sangue, a puro sangue, por séculos pela sua igreja.
No escritório de Cláudio e do Almirante contei diferente este encontro, no ISTI, com o padre Guerard Dapz. Disse que fui submetido a uma sabatina inesperada de mais de três horas, até que ele me perguntou quem me havia indicado. Ao saber que tinha sido o Almirante, seu aluno, levantou, expressando chateação, por perda de tempo. “Por que você não me disse antes que o Almirante o indicou? Vá, matricule-se.”
2.
1. Qual era o público alvo destes sermões? Quem ouvia o padre Vieira? Quem tinha o privilégio de ouvir e entender o padre Vieira? Qual a repercussão de um sermão no século XVI? Qual era a participação daqueles que iam à Igreja, ouviam, mas não entendiam nada do sermão?
2. No conjunto de prédios do ISTI, o Instituto, está uma das maiores e mais sofisticadas bibliotecas da América, com seus mais de 140 mil títulos.
3.
Na praça de São Pedro, em Roma, na manhã do dia 21 de fevereiro de 1999, sábado, dia de sol, de muito sol, o Papa João Paulo II terminava a cerimônia de investidura dos 18 novos cardeais, quando se afastou e com um simples gesto deu como consagrados cardeais a dois religiosos, cujos nomes foram omitidos.
Na linguagem eclesiástica que prevalece, hoje, no mundo católico, estes dois novos cardeais não poderão “desfrutar dessas celebrações, já que suas identidades serão mantidas em sigilo, muito provavelmente por razões políticas”. A partir daí especula-se que seriam religiosos em países comunistas como a China e o Vietnã.
Naquela mesma manhã de sábado, o padre Guerard Dapz caminhava tranquilamente para a biblioteca da sua faculdade de Filosofia. Como o Papa não revelou os nomes dos dois novos cardeais, os seus cardeais in pectoris, decidimos que tínhamos os dois novos cardeais, também in pectoris, mas cujos nomes estavam revelados para nós, os amigos próximos. Iríamos fazer alarde, mas o bom alarde, o alarde do paralelo.
O maior filósofo do Ocidente, neste ano de 1998, o Padre Guerard Dapz, enquanto caminha para a sua biblioteca, em Belo Horizonte, está também sendo consagrado, na Praça de São Pedro, em Roma, pelo papa João Paulo II. É o nosso novo cardeal. Não está em um país comunista. Não correu carreira dentro da igreja, não administrou bens, nem jamais se furtou de pensar. Aí estava, Minas que nunca teve um cardeal, agora tinha dois, dois não, tinha consagrados três novos cardeais.
O outro cardeal, o Terceiro Cardeal, que nomeamos não é membro da igreja, não é padre, nem bispo e muito menos arcebispo. Nunca conversamos estes assuntos “religiosos” com ele, sequer sabemos se é ateu ou não, se acredita em deus ou não, mas o sabemos cardeal e antes mesmo do papa descobri-lo e nomeá-lo cardeal in pectoris, nós há mais de dez anos já o tratávamos como cardeal, é o cardeal de Salinas, dom Geraldo Santana. Minas tem três cardeais: Dom Serafim Fernandes de Araújo, Dom Dapz e Dom Geraldo Santana, um homem da igreja, um homem do pensar e um homem político.
No final da cerimônia, em Roma, movendo-se com incrível dificuldade, o papa deixou cair os dois barretes vermelhos dos cardeais ausentes.
À noite na Dapzia e solitária praça de São Pedro, o vento jogava de um lado para o outro os dois barretes, símbolos do poder na Igreja.
4.
Chico Bahaas me disse, no Instituto Lucent, da PUC, antes de seguir para a sala de aula no ISTI, o Instituto, que o padre Guerard Dapz optara por manter aquele ritmo de vida, como pensador e como professor seria mais útil à Igreja, não buscava, não buscou nenhum cargo de autoridade eclesiástica.
“Uma vez quiseram indicá-lo para assumir as funções de bispo, ele recusou”. Um irmão de Dapz de tornou bispo. Embora, a partir de determinado momento, ele quisesse apenas se dedicar à produção intelectual, as constantes aposentadorias de professores do Instituto, ISI, o obrigaram a assumir as cátedras vagas. Primeiro foi o Espanhol Ferreiro, depois o Marcel Peine.
Cheguei atrasado. Peguei uma carona e a aula havia começado. Lá estava o padre Guerard Dapz na frente de uma turma de silenciosos 40 alunos. Misturado com as minhas tralhas e com um lenço de papel, em meio a uma crise de gripe, mal pude cumprimentar o padre Guerard Dapz.
Depois de 45 anos de sala de aula, o padre Guerard Dapz estava preparado para nos enfrentar. Era o professor de ética, o filósofo e na sua frente, em meio a uma floresta de cabeças de apaixonados alunos, um aluno atravessado pelo tempo, mais velho que o mundo, sem ética, aético, não ético, desesperadamente naufragado, vendo este mundo belo, dentro de uma redoma que ele jamais almejaria entrar. Não lhe restaria outra estrada senão a de observador e um apaixonado aluno também, querendo entender.
Tínhamos feito uma série de estudos sobre Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Popper, Wittingstein, tentando, tateando, a arte de pensar. Agora, iríamos aprender a ser bons. Grande loucos.
- Ninguém acredita que nós dois estamos estudando filosofia, eles riem da gente.
Lateral ao curso, levanto documentos, textos e informações sobre o padre Guerard Dapz na década de 60. Consegui uma fala dele sobre aqueles episódios através de uma entrevista publicada no jornal O Tempo, de Belo Horizonte, e consegui também um seu texto publicado na revista Paz e Terra, número 1, da Editora Civilização Brasileira, em que se discute o papel da Igreja. Por que esta época é importante? Não era a época da formação do padre Guerard Dapz, mas sim a época da sua ação. Porque era a época em que o padre Guerard Dapz foi ao mundo e falou aos homens, esteve ao lado dos homens e foi perseguido, processado e tornou-se um refugiado dentro de seu próprio país.
O padre Guerard Dapz explica como será o curso e, antes de começar as aulas, faz uma oração, com todos em pé, pedindo no final a inspiração do Espírito Santo e de São Tomás de Aquino. Afinal a Suma Teológica se ocupa, em sua maior parte, da Ética.
“A ética é, ao mesmo tempo, uma ciência e uma prática. É uma forma evoluída do saber ético - é um saber para agir, para guiar as ações”.
O padre está com aquela mesma camisa em que nos encontramos pela primeira vez. Veste com extrema simplicidade e sua camisa me lembra a de colegiais em Teófilo Otoni, no vale do rio Mucuri, no nordeste mineiro. Fala baixo, em um tom que, por incrível, sentado na última fileira, ouço perfeitamente - mas já ambiciono estar mais perto e imagino uma estratégia para estar entre os primeiros na primeira fila. Ouço, anoto e, como todos, treino o pensar.
“Estamos entrando no 4o. milênio da civilização ocidental e no 3o. milênio da civilização cristã”.
“Todos os grupos humanos têm características constantes”.
Uma bela massa de material para estudo e observação, para análise e descrição. E, caso fosse o contrário? Se detectássemos um grupo humano surpreendente e cujas características não fossem constantes, nem em relação aos demais e nem em relação a si mesmo, como grupo?
Por que este jesuíta traz para aquela conversa a marca do 4o. milênio, a lembrança da civilização ocidental?
Ele surpreenderia os incautos, quando, ao tratar da questão da ética, com firmeza, afirmou que não trataria da ética cristã, não trataria da ética teológica, não trataria da ética da religião, mas seu objeto de estudo era a ética filosófica.
Quem é o padre Guerard Dapz? É um filósofo.
Agora, entendo o que o Vitor do Lume quis dizer quando afirmou que o padre Guerard Dapz era um mero divulgador da filosofia e, avançando em sua crítica, assegurou que era um pensador preso às limitações hegelianas, responsáveis por um pensamento autoritário e de trágicas conseqüências para a humanidade.
O padre Guerard Dapz é um filósofo conseqüente. Não se omite, pensa. Ao pensar não se encastela no pensar. Por ser filósofo, é um homem de ação. Eu não me vejo, totalmente, identificado com o mestre. Na hora da ação política temos uma larga avenida juntos, mas eu ficaria numa extremidade, gritando que o caminho deve ser mais largo. Eu não me limitaria à solidariedade cristã. A política nos faz diferentes, não vejo recuos possíveis diante da intransigência de um mundo que destrói homens, que devora homens, que submete homens.
5.
Sexta-feira, 13
13 de março de 1998, temperatura alta, em Belo Horizonte. Mais uma vez, chego na universidade e olho, às 8h, o céu limpo. Não tem nuvens. Seu Tião, que sempre me lembra da paixão pela Regina, mulher do nosso amigo Manoel. Mais uma vez, se aproximará, perguntando se eu quero que abra a porta da prisão - como ele chama a porta do nosso local de trabalho. Ele tem a chave. Eu a escolha. Eu tenho a opção de entrar para a cela. Em seu passo vagaroso, transportando um peso maior do que o seu tamanho, cabelos brancos, pressinto que seu Tião tem a memória de todas aquelas árvores, prédios e seus 20 mil estudantes, ano a ano, depois de 20 anos. Seu amor é pelas pessoas que ele conhece, pela sua igreja e pelos seus padres e bispos da sua admiração, agora, seu amor maior é pelo seu precioso Cardeal. Seu amor é como ele, silencioso e atravessa os grandes prédios silenciosos da universidade. Um amor de quem caminha de cabeça baixa, olhando para o chão à sua frente. Se ergue a cabeça é apenas para um sorriso de felicidade quando encontra o outro. Ele entra a minha alma e eu me acautelo, seu Tião também sabe da minha grande, louca, lúcida, perigosa e traidora paixão. Ele sabe e diz isto claramente, com palavras que não perguntam, firmes e solidárias, alegres, felizes, palavras muito felizes, porque fomos felizes. Hoje, eu escapo. Diferente dele é o meu caminhar, é o meu procurar e é um eterno não encontrar-me nem em prédios, nem em árvores e nem em gentes, muito menos em igrejas ou iniversidades. Nem em paixões. Sua grande paixão é que dali saiu um cardeal para a sua igreja. Orgulho do agora já orgulhoso e feliz seu Tião. Assim é o seu Tião, um homem orgulhoso, vitorioso e virtuoso.
Não posso perder tempo, hoje tenho aula com o padre Guerard Dapz.
Atravesso a cidade em busca de uma bolsa para reduzir o impacto do curso de Ética sobre meu precário orçamento. Atravesso, mais uma vez, a cidade, passando pelo aeroporto, com os aparelhos de aço se preparando para correr a pista de asfalto preto e alçar os céus, indo aos seus destinos. Destinos? Quem os faz? Quantos os dominam? Passo pela cabeceira da pista, certo de que meu vôo junto ao povo do Planalto será mais alto. Tenho todas as pretensões do mundo. Sou um aprendiz de filosofia, quero pensar e, se possível, pensar corretamente. Como o seu Cunha. E eu quero ser, ainda a tempo, um homem bom. Como seu Tião e como o meu pai.
O padre Guerard Dapz está na livraria. Fui buscar uma revista para checar um artigo truncado de Vamirech Chacon, pois cortaram a última linha de todas as páginas. Ao olhar para o lado, estava o Padre Guerard Dapz. Era ele mesmo. Tenho que ter compostura. Ele pergunta por algo que virá de São Paulo. Na livraria, perguntando se os livros, revistas ou outra obra qualquer já chegaram, não havia a menor dúvida, primeiro que se tratava de uma publicação e, segundo, que se tratava de uma publicação ligada diretamente ao seu interesse. Lógico, lógica, lógico. A admiração produz estas obtusidades. Ele saiu e depois chegou um outro senhor de cabelos brancos, magro, falando português com sotoque. Faz a mesma pergunta do padre Guerard Dapz. “Ah! o caminhão deve ter atrasado”. Algumas pessoas estavam na expectativa. Não quis bancar o curioso. Afinal, o fato era evidente. Ali, no meio de homens que escreviam, traduziam, pensavam, esperar o quê como surpresa, esperar o quê com ansiedade? Outra prisão: a espera. Amanhã tenho que convencer seu Tião de que existem outras portas e que estas são invisíveis, embora elas sejam abertas e fechadas com as suas chaves.
Caminho com o padre Guerard Dapz na minha frente. Evito aproximar-me. Uma pessoa se aproxima e fala que falaria com ele, antes mesmo da aula começar. Olho no relógio. Faltam dez minutos. Tempo curto. Tempo, certamente, suficiente para quem precisa de uma conversa com o Padre Guerard Dapz. Talvez uma conversa revolucionária. “Lembra-te sempre do que disse Kant para o espião e príncipe russo sobre os revolucionários franceses, Danton, Robespierre e Jean Paul Marat, sobre a revolução francesa e sobre o pensar em Konigsber!” Talvez ele obtenha uma palavra do Padre Guerard Dapz. Não mais que segundos. Além do mais, tudo deveria estar, ali dentro, tão encadeado, que talvez nem mesmo uma palavra seria necessária.
Passo no refeitório. Várias mesas de madeira enormes, compridas. Garrafas de cinco litros de café e caixas de bolachas. É uma escola diferente, uma escola que serve ao aluno. Olho os alunos, aproximo do barulho das conversas. Pouco ouço, mas vejo. São pessoas jovens. Não são, de maneira nenhuma, provenientes de famílias fortes, saudáveis ou ricas. Todos vestem roupas simples e baratas. São frágeis, magros quase todos. São jovens recolhidos, talvez aqueles que conseguiram, por milagre, escapar do abandono. São homens ligados à igreja, serão amanhã padres, bispos, cardeais, falarão às consciências das pessoas, darão rumos, abençoarão, serão fortes na dor e solidários no dia a dia. Com certeza, todos eles acreditam em deus. Sobre uma mesa redonda, eles deixaram seus pertences, bolsas, livros. Duas bíblias enormes se destacam. Se eles não acreditam, eles procuram o que acreditar. Pela segunda vez, naquele refeitório, troco o café por chá. Ninguém me percebe. Estou isolado e me aproximo das conversas. Procuro alguma mulher naquele meio. Descubro duas. Depois outras aparecem. Existem mulheres. Ali também, graças a deus, existem mulheres. Elas vestem muitas roupas. Precisam em seus corpos de muitas roupas. São mulheres que parecem homens, sem nenhuma pintura, sem nada que pudesse destacar. Olho e não vejo pernas, olho e não vejo bundas. O que estou fazendo ali, não é correto.
Mais tarde uma delas puxa conversa comigo - uma psicóloga atraída (seduzida) pela filosofia. Depois de um susto, decidiu começar pelo básico seus estudos de filosofia e estava, agora, já no terceiro ano do curso. Era minha colega de sala. Falei que já lera diversas obras do padre Guerard Dapz e ela me confessou que, só agora, começara a ler alguma coisa. Padre Guerard Dapz, ali, para ela, era simplesmente mais um professor. E ele não era apenas um professor. Ele era um homem que nem eu e nem eles conheceriam e que jamais saberíamos avaliá-lo. Ele era um homem que somente será descoberto no século XXI ou XXV. É o homem que propõe a saída aos impasses dos últimos séculos, que tornará possível a vida do dia a dia de todos os homens. Na sala, outra mulher ao meu lado. Mais nova que a psicóloga, ela fizera teologia no Instituto Marista e complementava seu curso com duas matérias: uma delas era justamente com o Padre Guerard Dapz. “Ele é muito devagar”. Ela censura a forma como o padre Guerard Dapz dá as suas aulas. Ela censura a sua fala baixa, mansa, quase num mesmo tom. Para ela, terminantemente, ali, naquele seu começo, ele não era um bom professor. (Fiquei feliz, afinal, o padre Guerard Dapz também se deparava com estudantes deste tipo). Preparo-me para explicar-lhe quem era aquele filósofo e dá fortuna que tínhamos em estar ali, quando olho para o seu rosto magro, de mulher esforçada, superando deus sabe o que, talvez uma futura freira, e me contenho.
Imaginei-a nua, deitada numa daquelas grandes mesas de madeira do refeitório. Ela olha para mim e para o Aguinaldo.
“Uma delícia, melhor do que a outra”. Ele me passa o bilhete.
“Onde você comeu?”
“Na mesa”.
“Na mesa? Onde?”
“No refeitório”.
Ele levanta a calça; o joelho direito esfolado. Levanta a outra perna da calça, também esfolado.
Margaret descobriu sua vocação muito cedo. Aos cinco anos como uma ruptura. Assim, ela se sentiu abandonada pela mãe e pelo pai em uma escola religiosa, na mesma cidade e a menos de cinco quadras da própria casa. A mãe e o pai queriam viver a vida e isto era viajar. A filha haveria de ficar em um lugar seguro, no melhor, no mais caro e onde estavam as filhas – era uma escola só de meninas. Descobriu deus quando, mesmo depois de muito vomitar e de desmaios, acordava em sua cama no dormitório das Menores, com uma freira do lado, dizendo que o que ela fez (passar mal) era muito feio. A outra vocação veio mais tarde, quando ela transou com o padre Rachid em cima da mesa do escritório da igreja na avenida do Contorno. Ela apenas se incomodava com a mania de deixar a janela do terceiro andar aberta. “É só para entrar ar – ele suava muito – e estamos num prédio de escritórios isolado em cima da loja dos colchões. Ela viu que o joelho do padre sangrava. Confirmou sua vocação na fazenda Retaguarda, no Lago de Furnas quando comeu um peão e a lua, nua em cima do tronco da balança do curral. Ela viu quando Aguinaldo abaixava a perna da calça suja de sangue. Era a mesma marca, lembrou, de sangue da calça do peão.
6.
As aulas eram sobre um tema empolgante, segundo uns, devagar para outros. Ética? Pra que? Ela olha para mim. Estaria diante, certamente, de uma pessoa limitada ou muito exigente – queria rapidez. Aguinaldo a atenderia melhor do que eu. Talvez ela olhasse o meu rosto e num flagrante captasse todas as minhas grandes derrotas. Eu tinha que calar-me, no máximo comer também esta ex-futura freira, nunca em cima da mesa; caso não tivesse outro lugar, protegeria meus joelhos com a minha calça. Depois da aula, embora ela saísse acompanhada por uma rapaz (talvez um futuro padre) eu tive certeza, absoluta, que eu só não transaria com ela se eu não quisesse. Olhei a sua bunda magra e murcha pela calça jeans. Mas minha memória de bundas logo alertou-me de que panos, quase sempre, ocultam bundas geniais.
- Eu, um grande canalha, ali, no meio de tantos homens bons e honrados, estudando ética! Isto não vai dar certo. A não ser que eu descubra, em meio àquele estado de pureza, uma quadrilha e parceiros inimagináveis. No fundo, eu luto por ser um homem do meu tempo e também um homem bom. Assim como luto, todos os dias, sempre, pela felicidade.
Antes de chegar na escola, no carro, um pensamento me intrigava. Como podem aqueles homens religiosos discutir tão profundamente a ética? A ética é o fim da igreja. Por que eles se aprofundam tanto nestas discussões? Seriam eles aqueles que se prepararam para o depois do fim das igrejas, todas elas transformadas em belos e monumentais museus – as novas pirâmides do ocidente. Era algo difícil de entender o interesse da igreja pela ética. A história era outra. Por que? Será que a evolução do homem passa por estes caminhos? Lá na frente não estariam tentando construir uma nova igreja ou pelo menos prolongar a agonia até uma etapa de maior segurança deste enorme erro de muitos homens e de muitos séculos.
Pensava em Hegel, destacado por Marx, citado por Erich Fromm:
“Ainda o pensamento criminoso de um malfeitor possui
mais grandeza e nobreza do que os prodígios dos céus”.
Pensamento criminoso, fácil. Prodígios dos céus? Milagres? Galáxias?
A astronomia? O céu mesmo? Os céus têm prodígios?
Se o paralelo ficasse:
Pensamento criminoso de um malfeitor x a formação de um universo
Um é vontade. O outro seria... um acidente?
Um é um universo. O outro não se sabe o que seria e se seria possível.
Qual a nobreza de um pensar criminoso?
Por ser pensar?
Por que Hegel entusiasma-se tanto com este fenômeno?
Tinha e ainda tenho ainda dificuldades em entender este povo de igreja.
Às vezes grandes companheiros, às vezes grandes ausências. Uma grande solidão nos une.
Quando cheguei na sala, vi sobre a mesa de aula do padre Guerard Dapz apenas uma toalha branca e uma caneta vermelha.
Nada. Nada mais.
Uma toalha branca e uma caneta vermelha.
Eu me lembrava daqueles professores carregando seus fartos materiais didáticos, na PUC de Contagem, orgulhosos de sua parafernália, alguns com tralhas monumentais, dois três ajudantes carregando peças monumentais, desfilando para orgulho do nobre diretor que nunca deu aula e que exigia ser chamado de professor (não vai nisso nenhum descrédito à moderna pedagogia).
Padre Guerard Dapz não trazia nada mais: apenas uma toalha branca e uma caneta vermelha no bolso de sua camisa.
Hoje, mais uma vez, ele vestia sua camisa listrada. Devia ser a camisa de dar aulas. Acho que ele tem apenas duas camisas. Quando o conheci, no ano passado, ele vestia a camisa azul de manga curta. Nunca vi o padre Guerard Dapz com outras camisas. Pelo menos até agora. Este homem não tem outra preocupação senão pensar. Penso em violentar seu papo e suas preocupações. Falar com ele de comidas e de coisas superficiais. Eu gostaria, por exemplo, que ele me descrevesse o seu vagar pelo mundo, antes de ser ordenado padre jesuíta, que ele me contasse esta sua grande aventura. Imaginava eu que sua grande aventura fosse, justamente, o desafio dos jesuítas, que, antes de serem ordenados, são convidados a percorrem, sem nada nos bolsos ou nas mãos, sem documentos e sem nenhum apoio, uma distância, enorme, entre cidades.
Depois, então, é que eles devem confirmar sua decisão de ser padre. Isto foi o que me contou o Chico.
Meu companheiro de trabalho, o eficiente Chico Bahaas – Vitor disse que Bahaas saiu do seminário depois da “prova”. O que teria acontecido com o Bahaas? Qual foi a distância percorrida pelo padre Guerard Dapz. Qual foi a conclusão, diferente de Bahaas?
Se eu estou preso e saio para o mundo, jamais voltaria ao estágio anterior. Se eu sou livre, eu sou livre sempre, não há limites e não há grilhões.
Este homem pequeno, barrigudinho, simples, sem nenhum apego a nada senão à inteligência, ao trabalho intelectual, à pesquisa, ao espírito, parece, aparentemente, sem entusiasmo para dar as suas aulas de ética, e se transforma em um leão, rapidamente, mas cansa-se, também, muito rápido. Suas aulas começam às 10 horas. Ele é pontual. 10h50m, ele para. Um descanso de 10 minutos. Depois mais 30 minutos. Às vezes, ele encerra, antes do tempo, concluindo um raciocínio e sai rápido.
As saídas de sala do Padre Guerard Dapz são sempre rápidas. Sua idade não permite maior esforço. Está claro o seu cansaço. Sem nenhum escrúpulo, seus estudantes o interceptam e capturam-no. Tudo muda. Já não está mais cansado. Um leve sorriso e muita alegria em seu rosto. Vejo-o atendendo, cordialmente, um estudante e saio, passo por eles e sigo o meu longo caminho.
(Ele tem seus apegos, sim, depois entro nesta seara, mas para que fique marcada a existência de seus apegos, seus valores, destaco o apego, evidente, à família e à sua terra, aos seus chãos minerais de Ouro Preto).
Penso em pautar-me para uma reportagem sobre o padre Guerard Dapz.
Se fosse para ser publicada no jornal do bairro, eu teria que falar quem é o padre Guerard Dapz, aquele padre baixinho que celebra a missa do sábado e duas missas no domingo, aquele professor de filosofia da faculdade dos padres jesuítas.
Do outro lado da rua fica um quartel da Polícia Militar. Ninguém conhece aquele padre, nem mesmo o cabo e o sargento que estão todos os domingos, religiosamente, na missa do padre Guerard Dapz. E se conhecessem o prodígio do pensamento deste malfeitor? Prisão, na hora, pau de arara, choque elétrico, tapa na cara, unhas arrancadas. E, depois, o capitão comandante ainda iria comer seu sanduíche no Mac Donalds.
Então, esta minha reportagem teria que falar do vizinho de bairro e de suas preocupações, do imenso trabalho já realizado, da imensa obra em construção, do seu esforço editorial, seu imenso trabalho junto aos seus parceiros do filosofar, suas traduções, sua presença em um mundo em que todos, a cem metros de distância, jamais imaginaram que existe.
Neste outro mundo, que se espalha por grandes e pequenas cidades do mundo inteiro, o padre Guerard Dapz é um dos maiores filósofos contemporâneos. Um padre. Não, nada disso: um filósofo. Uma inteligência. Rara, preciosa. Uma cultura. Sua dimensão está em relação direta com a sua profunda humildade. Vejo o seu trabalho como o de uma formiga construindo um imenso formigueiro, inacreditável pelo tamanho, na verdade seria uma formiga construindo um palácio, um Taj Mahal. Ele é uma formiga que construiu um palácio. É. Quando você procura seus companheiros neste coletivo-formiga, o choque: esta formiga é uma formiga solitária. Ela sozinha construiu as muralhas da China, as pirâmides do Egito, a Torre Eiffel. Cruel! Que seja.
“O rastro de um sonho não é menos real
do que o rastro de um passo”
Georges Duby
Já que falei de coisas grandes, é bom sinal baixar a bola. Estamos na esfera do pensamento e vamos longe ainda.
Apanhei a citação de Duby porque folheava meu caderno com as anotações dos rascunhos das aulas do padre Guerard Dapz e me deparei com um pequeno conto em que abro com, exatamente, esta citação.
Como estou fazendo os rascunhos das anotações das aulas?
Imito Wittgenstein, lógico sem o talento e a profundidade da reflexão, imito o processo: escrever e anotar: de um lado, do lado esquerdo da folha, anoto o que penso das aulas do padre, as falas dele que não tem a ver com as lições, pequenas intervenções e, do lado direito, a aula em si (sic), o concreto apresentado pelo maior filósofo de todos os tempos, dando aulas em pleno final de milênio, em uma cidade à margem do mundo, em um bairro à margem da lagoa e da cidade.
Penso, agora, em Teilhard de Chardin, um outro gênio, destino igual, mergulhado nas profundidades do mundo chinês, perdido para o seu povo, ignorado e exorcizado pelos “homens que sabem” do seu tempo e apontado, dedo em riste, pelos seus superiores, como “um homem que pensa, um homem perigoso”. Assim como o Tomás de Aquino, Teilhard se tornará um dia o Santo Theilhard de Chardin e mais tarde o cardeal in pectoris será o São Dapz.
Do lado direito, folha 1,está anotada a proposta de trabalho de um semestre:
I - Introdução
1) Definição nominal da Ética filosófica
(Na página da esquerda observo o que será uma tendência de todo o curso, a palavra ética será sempre grafada com E maiúsculo. Lembro do meu coppy, no Estado de Minas, depois secretário de Governo da prefeitura de Belo Horizonte, Paulo Lott pontificando, com o que eu concordo, “não escreva delegado com d maiúsculo porque ele será autoridade somente para você”.
2) Ética e filosofia
3) Bibliografia geral
II - Natureza e estrutura do campo ético
1) Fenomenologia do ethos
2) Do saber ético à Ética (formas do saber ético)
3) Estrutura conceptual da Ética (definição real)
III- Sinopse histórica da Ética Ocidental
(De olho na nova maiúscula)
1) A Ética antiga (greco-romana)
2) A Ética cristã-medieval
3) A Ética moderna
4) A Ética contemporânea
A observação do padre Guerard Dapz vem ferina, direta, anti-excludente:
“Saber ético todos têm”.
A Ética será o saber ético racionalizado.
Aí o bode.
No morro há a ética, na fábrica, no quartel, entre os bandidos e entre os corruptos. Mas a convenção do costume, da moral, da ética, não é a ética verdadeira. Código de Ética da Fábrica de Pum. Não existe? Existiria, então, um código das fábricas? Um código dos donos de fábricas? Seria uma ética tão válida quanto a ética dos marginais. Existiria, então, a ética da sobrevivência? Onde estaria isto nas éticas plurais?
Padre Guerard Dapz bate firme:
- O saber ético racionalizado é muito recente na história da humanidade, tem apenas 2.600 anos, apareceu na Grécia e tornou-se patrimônio cultural das civilizações.
Ainda na sua primeira aula, Padre Guerard Dapz situou tempos e personagens. Se abriu a aula pedindo a proteção do Espírito Santo e de São Tomás de Aquino, quando passou pela religião, lembrou que no século 3, Santo Agostinho criou a ética cristã.
Este santo, assim como outros, teve uma vida atribulada, antes da santidade e se tratava de um estudioso da retórica, um seguidor de Manes. A problemática criada a partir de Manes deve ser bem analisada. Minha obsessão seria a partir daí o entendimento da ruptura de Agostinho com Manes. Até agora nada encontrei sobre Manes. Antes, ao encerrar qualquer discussão radicalóide, observava que lá no século três, Santo Agostinho já botara um paradeiro no maniqueísmo (de Manes), na divisão entre deus e o diabo, entre o bom e o mal. O mundo não seria tão estreito e se reduziria a estes dois limites, mas sinto que a passagem foi rápida demais e que as idéias de Manes devem ser reavaliadas.
Voltarei a Manes.
7.
Non scholae sed vitae discimus
(Nós não aprendemos para a escola,
mas para guiar a nossa vida)
Dapz faz a citação e observa: Nós não aprendemos a ética para saber o que é o bem, mas para nos tornarmos bons. A ética é essencialmente uma ciência prática, enquanto a economia trata de como sobreviver, a ética inquiri as razões de viver; para que viver?
(Um dos primeiros livros de filosofia que li foi “A finalidade da vida” de Farias Brito)
x
Dapz expõe a vulgarização das expressões ética e moral, o uso abusivo da expressão com diversas conotações, lembrando que o “saber ético é vivido espontaneamente”.
- Falta de ética.
- Se portar com ética.
- Ele não tem ética.
Por outro lado, há uma enorme bibliografia,
(Agora, me encalacro: não sei porque anotei - “tempo em que não se discutirá tanto a ética” - e a pergunta : “por que a imensa bibliografia?”)
8.
Carta ao padre Guerard Dapz
Caro padre Guerard Dapz,
bom dia,
O que é a felicidade? Eu sou um homem feliz? O senhor é um homem feliz? Nós somos felizes? O povo do nosso século, nossos contemporâneos, é um povo feliz? O senhor já viveu mais de 80 anos. Eu vivi mais de 50 anos. Se hoje não formos felizes, se hoje nossas dúvidas forem maiores do que o mundo, se hoje ainda estivermos procurando a felicidade, temos credibilidade de tempo para aventurarmos a cata de respostas. Nós dois teríamos uma vasta condição de resposta. Podemos definir um tempo e dizer que naquele tempo fomos felizes. Na infância? Na juventude? Na maturidade? Na velhice? Como homens adultos, como cidadãos, como profissionais, como seres humanos? Nesta aventura, poderemos definir esta tal de felicidade localizada, objetivá-la, racionalizá-la, dissecá-la, mostrar sua origem e seu fim. Eu amei muitas mulheres. O senhor como padre talvez não tenha amado, como eu amei, muitas mulheres. Então, não poderíamos, caso quiséssemos, fazer um paralelo neste campo a respeito das experiências com a felicidade vivida. Mesmo se eu dissesse, que amei muitas pessoas, a análise ficaria capenga, porque neste amor de pessoas (mulheres) havia um elemento de prazer preponderante. Amei e o amor acabou. Acabava às vezes ao acordar numa manhã, numa tarde, numa noite, numa madrugada. Surpreendentemente, há esta verdade: amor acaba. Existe o amor morto no peito de um ser vivo. Eu fiz a política da solidariedade e fui feliz. Achava-me o super-homem, o homem humano. O senhor eterniza esta ação. Eu parei e voltei-me para o salvamento de um ser que morria dentro de mim. Eu mesmo. Onde o senhor está? A vida de um homem feliz, a vida de um homem sábio, seria a vida vivida sem o amor das mulheres, sem o prazer, e sem a aventura política da solidariedade? Dois homens estão frente a frente a um tribunal da razão, que avaliará as investigações procedidas no corpo do inquérito, que ponderará os fatos e que julgará as duas vidas, sob a hipótese da felicidade. Uma será a sentença: 1. Estes homens foram felizes; 2. Este homem foi feliz e aquele não. 3. Qual dos dois foi verdadeiramente um homem feliz? 4. Caso haja gradação qual das duas felicidades teria sido a maior? A felicidade do senhor ou a minha?
O senhor foi feliz? Eu pergunto.
(Eu funcionaria como seu promotor e o senhor funcionaria como o meu promotor)
Como o senhor conseguiu ser feliz limitando sua vida, restringindo sua vida, despertando depois, aos 80 anos, diante de uma realidade: o senhor, se foi feliz, não viveu?
Como eu pude ser feliz amando pessoas e infernizando a vida de muitas delas, sendo passageiro da estação dos prazeres, buscando amor e prazer, veloz pelas retinas e pelos corações: eu, se fui feliz, vivi?
Seria possível a felicidade apenas na nossa mente?
O que o faz, efetivamente, um homem feliz? Seria a riqueza e a beleza da descoberta intelectual, do avançar contínuo do pensamento sobre o conhecido e sobre o desconhecido? Seria a palavra?
O que me faz feliz? A felicidade compartilhada, a felicidade do outro somando-se com a minha felicidade? Seria a pura descoberta do outro, também pelo prazer? Seria a felicidade a sensibilidade, não a razão? Não a palavra? Mais o gesto?
O que o senhor sabe a respeito do amor de uma mulher, do amor sensual, do amor e do sexo?
O que eu sei a respeito do espírito, do amor pela sabedoria e pela inteligência, do amor construído na razão e no espírito?
O que o senhor sabe a respeito da aventura política do homem? Suas vitórias, suas derrotas e seu, desesperado, grito pela liberdade e pela dignidade?
Encontrei na década de 60, perdido nas minhas estantes, amarelado, uma brochura já se desfazendo e lá um padre Guerard Dapz, um outro padre Guerard Dapz, acredito perdido naquela década diante do labirinto político. O homem que percebeu a discussão de que o poder político não queria que a segurança social fosse mais valiosa do que a segurança nacional, que defendia a necessidade e o direito à vida e à revolta.
(Lógico que esta é uma carta que nunca viajou. Tinha que respeitar os 80 anos de um homem lúcido embora padre).
Ouça um outro padre, este mais lúcido em 1965, quando a ditadura já cozinhava sua vítimas:
“O “homem revoltado”, tal como o caracterizou
Albert Camus num livro já clássico, é precisamente
o homem que diz “não”, e nesta negação radical
põe em questão todo um mundo de valores que
definem uma situação opressiva, e abre espaço
para a criação de novos valores.
Assim, a História nos mostra os grupos
humanos ameaçados na sua segurança no
momento em que a revolta torna-se, no seu seio,
uma atitude tipicamente moral, no momento em que as leis
e as normas da convivência moral não surgem mais
como possibilidades concretas,
mas como obstáculos à liberdade”.
(Moral, Sociedade e Nação, artigo
publicado na revista Paz e Terra,
número 1. 1965)
Perguntas ao padre Guerard Dapz
1. Por que o homem quer ser bom? Por que o homem precisa aprender a ser bom? Qual a vantagem em ser bom? O homem não seria, naturalmente, bom e verdadeiro? Quem ensinará ao homem o que é ser bom? Quais são as característica do ser bom? Quais são os pontos negativos do ser bom? O que distingue um homem bom de outro e o que distingue um homem bom de um homem mau? O que a experiência da bondade informa e constrói? O que a experiência do não-ser-bom informa e constrói?
02 de junho de 1998, terça-feira
Pela primeira vez, depois de uma conversa teste admissional, há seis meses, estou frente a frente com o padre Guerard Dapz e eu, pela primeira vez, converso com ele. Não estou tenso. Não me imaginava assim. Ele pergunta ao Paulo Roberto por Joaquim Salgado. “Está em São Paulo numa comissão de avaliação da USP”. Ele fala sobre as escolas de filosofia no Brasil, a escola de filosofia que hoje é departamento da UFRJ. “A primeira escola de filosofia no Brasil surgiu no Rio, em 34, depois surgiu outra em São Paulo, com os franceses que nos ensinaram a trabalhar a filosofia como ciência, com método. Antes, a filosofia era um esforço de intelectuais do direito, principalmente, e depois de outras áreas. Cito o engenheiro Farias Brito, ele conta o episódio em que Farias Brito perde a cátedra de filosofia do Colégio Pedro II para Euclides da Cunha quando todos sabiam que, em matéria de filosofia, Farias Brito tinha mais conhecimento do que Euclides, “deve ter sido uma escolha política”. Lembramos das disputas desta cátedra no Rio em que se produziram momentos, sobre os quais devíamos voltar nossa atenção, examiná-los mais detalhadamente. A disputa de cátedra em que Euryalo Canabrava ganhou teve repercussões violentíssimas na imprensa, pois o filósofo que veio de Minas fez afirmações na área da matemática, contestadas por um engenheiro, inaugurando uma polêmica, pelos jornais, que logo teve a participação de outro engenheiro Gustavo Gorção (que veio da engenharia elétrica e depois passou para a eletrônica transformando-se numa polêmica figura da cultura brasileira). Pelo gênio de Canabrava, um homenzarrão, foi bom que a polêmica não tenha saído dos jornais. Ele era um terrível defensor de seus pontos de vista e exaltava-se até a agressão física, como aconteceu em um encontro de filósofos em São Paulo. Euryalo pulou sobre a minha mesa para agredir o professor Janoti. Na mesa, presidia o encontro Miguel Reali. “São os filósofos”.
E agora?
A filosofia está muito bem organizada onde está o ser, onde está o pensar, onde está cada gaveta, cada grupo de pensamentos, onde sou lógico e onde deixo a lógica de lado, onde estão os conceitos, as idéias, as representações, a sensibilidade, a experiência. A filosofia cria um homem, interpreta o homem, identifica o homem, analisa o homem. Aqui, o homem espiritual, ali o homem angustiado. Aqui o homem universal, ali o homem local. O materialista e o idealista. O homem fracionado e o homem unidimensional. O homem revoltado e o homem educado. Dividido ou multiplicado, o homem é um ser estranho à natureza. Também à natureza humana ele é um estranho – mais ainda. O que faz este ser que pensa e que sabe que pensa em meio às partículas e moléculas e às grandezas e universos? Sabemos o que o homem fez. Há registros. Poucas são as pistas de seus caminhos e inúmeras são as hipóteses de seus futuros, de suas potencialidades, possibilidades e probabilidades. O mistério ainda é o homem. A organização da filosofia a partir da grande revolução do logos não é menor do que a subversão permanente que o próprio indagar gera a todo momento em todas as épocas – é o maravilhoso. A verdade e a possibilidade de conhecer, o conhecimento e os limites do saber, nada é obstáculo ao ser que pensa.