Set de filmagem de "Você vai conhecer o homem dos seus sonhos" |
A charlatã
História de Amilcar Cabral Feitosa, de Cabo Verde
1.
Vida, 38, ainda enxuta e inteirona, nesta época, descobriu que Trisne não enxergava o óbvio, o que estava, ali, bem ali, diante do seu nariz. A grande descoberta: ela descobriu, imediatamente, que podia ver por ele. Fez o teste. Caminharam pela praça, atravessaram um lago, falavam do Teorema de Pasolini. Ele discorria sobre o roteiro, sobre o cineasta, sobre o cinema italiano. Fora do parque, ela perguntou “por que os gansos tinham as asas abertas se não havia sol?”. Não vi os gansos. Eles estavam...? “Eles estavam na pequena ilha no centro do lago”.
- Que lago?
Trisne deixou claro para Vida que ela poderia enxergar pelos outros os que os outros decididamente não via, não enxergava, não percebia, não registrava.
Trisne, um rapaz com uma mãe dominadora e uma namorada infeliz, vivia no mundo da tela e perigosamente deixava Pasolini bagunçar suas fantasias.
Vida relatou o episódio do passeio para ele. Jogou claro, uma mestra – ela se tornaria então uma mestre doutora – e Trisne concordou, ela via tudo e não enxergava nada.
2.
Bom, depois da descoberta, o caminho aberto, ela sabia que jamais enganaria ninguém. Ela enxergaria para quem não queria ver e que, questões pessoais de lado, optaria para ter ao lado alguém (lógico, ela, Vida) que apontaria os obstáculos, desde um degrau a um passado, um futuro ou até mesmo “almas do outro mundo”. Como estas ninguém vê mesmo, ela jogaria suas fichas por aí. Um gancho, um senhor gancho, diria, para captar cliente para o seu consultório sentimental.
“Um palmo na frente do nariz é tudo ou é nada”
Ela anotou a frase que martelou do motel até sua casa no Santa Lúcia. Tirou da bolsa as camisinhas que sobraram – Trisne só usou uma – os shampoos, os condicionadores, sabonetes, pentes, tocas de banho. Iriam para seu estoque e depois para a prateleira do chuveiro, onde iriam se juntar à sua coleção.
Trisne foi o primeiro no seu teste e a “descoberta”.
3.
O segundo foi o próprio capitão de Mar e Guerra, Tony Cabreiron, valoroso marinheiro das batalhas em mares e campos uruguaios ao lado de Garibaldi, seu comandante na Itália, contra os italianos pela unificação da Itália, na França, ao lado dos franceses contra os franceses, e na Suíça, de onde voltou maneta. “O único troféu que arrancaram de mim”.
Vida buscou o seu velho no aeroporto internacional de Confins – mais velho 20 anos, ele era, então, um garanhão inquieto, incontrolável na perseguição de uma bela peça de arte. Um colecionador com a máquina fotográfica sempre pronta para fotos detalhistas.
Ela deixara para trás muitas raízes, algumas profundas e grossas, outras finas e superficiais. Algumas destas raízes o Homem do Mar conhecera.
4.
Vida colocou seu uísque na mesinha e contou para o Homem do Mar o que filão que descobrira.
Enxergar para os outros. Enxergar o que os outros não vêem ou que não querem ver por preguiça, distração (lembra do Trisne no parque?) ou por simples displicência ou até mesmo por seleção.
- Mais fácil do que a batalha de Roma em que tombou o meu compadre Jurandir Feitosa!
Fecharam o negócio. Ninguém mais precisava ver, ela iria ver por todos.
“Neste negócio, basta que as pessoas acreditem que eu possa ver por elas”.
- Em caso de dúvida?
Era o Homem do Mar cauteloso com a calmaria.
Vida mostra o banquinho ali na frente; caso contrário o Homem do Mar tropeçaria e quebraria a perna.
Ele para antes do choque.
- Ainda bem que me avisou!