segunda-feira, 19 de setembro de 2011

UM DEFEITO






UMA VIRTUDE







- Você é mulherengo.






Ela afirmou, mãos ao volante, rindo, ensaia um riso debochado, investigativo, aguardando a confissão, afastando o rosto para, sentada ao lado, olhar de cima, cabelos curtos, penteados agora mesmo, diante de um espelho em que se viu naquela cena, muito bem ensaiada, afirmativa, do alto.






- Você é mulherengo e só eu não sabia, todo mundo sabia, até o Alberto Nunes cansou de me avisar, “Não é possível, então, só você não sabe”.






- Não é nada disso, eu não sou...






- Você é mulherengo e o seu amigo, como é mesmo o nome dele?, Abelardo, Abelardo disse que o seu apelido é “Largo da Carioca”, “Rua da Carioca”, porque só tem pensão, tantos são os filhos que você tem.






- Não é nada disso.






No texto ensaiado, na fala dela, não há espaço de diálogo e o monólogo continuava, afirmativas categóricas, ritmadas, sem possibilidade de ser uma questio disputate, sem objeções.






- Você é um mulherengo.






Esta frase como ritmo, com sua acentuação forte inicial e o som final fraco, fez-me vaguear no mais vagabundo dos andarilhos do pensamento.






Como explicá-la o ser mulherengo, a relação com os amigos em que eu era mais espelho, mais um ouvido, do que o ser afirmativo das suas imaginações, ninguém mais mulherengo neste sentido que ela dá do que ele e ele contou a história comendo na feirinha com duas mulheres, uma ele cantava, uma ele comeria, mulherengamente.






Um amigo que conhece-me tão pouco e no pouco de convivência existido mais revelou-se do que compartilhou. Pouco sabe de mim e eu muito sei dele também por uma característica da solidariedade às aflições e ao desespero de quem engasga se não vomitar suas experiências, vidas e loucuras.






Só facilito e encaminho o entendimento e ele ao se descobrir com aquelas características (sempre aprovadoras) vê no outro não ele e nem no outro o seu espelho, mas vê no outro as qualidades negativas que aquele (positivo, aprovador) contém.






O negativo sou eu, no final da confissão catedrática.






A realidade é que na relação, hoje, homem mulher, o homem é um ser frágil, vulnerável e mutável. Frágil não como oposição ao masculino, não por identidade com o feminino. O homem constitui um ser múltiplo cuja característica de fragilidade se liga mais a caráter, comportamento, insensibilidade e desamor próprio.






A fragilidade do masculino é detonadora, muito maior em grau do que a fragilidade feminina. São duas as fragilidades entre os sexos e uma não tem qualquer relação com a outra e não se trata de fragilidade ligada a força.






A vulnerabilidade do ser masculino está ligada à sua tendência às ampliações exageradas e não verdadeiras do ser masculino. Ele é o que não é, constrói-se, sonha-se e surpreende-se, com muito mais constância, em sua não realidade.






Há o choque e há o estar do outro lado, sem volta ou perdido ou perdendo, em queda. A sua mutabilidade liga-se à consciência do ser masculino de que é possível não olhar para trás e seguir em frente, com suas novas vidas, roupas e pessoas, seus novos talheres, pratos, garfos e suas novas comidas, antes uma bela carne de sol, agora um prato novo de Curvelo, banana feita como se faz xuxu.










Flagra a dispersão e ela freia.






- Como podemos conversar desta maneira? Você não consegue me ouvir.




- Então, desligue o rádio.






Entra a música. Os dois ouvem em silêncio.

Ele sai e ela arranca o carro. Em silêncio também.













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