Judi me amava mais do que todos neste mundo. Eu
sentia isso em sua voz e em seu corpo.
Quando ela falava, desde sempre muito idosa, o
estremecimento em seu tom não era fraqueza, era força. Força do amor que dizia;
força de um bem-querer enorme que saía dali pelas palavras.
Seu corpo parecia ter uma membrana de fragilidade e
um interior de alguma madeira inflexível.
Juntas de corda amarrando os feixes resistentes.
Pois sua pele carecia de outra.
Ela dizia, e eu não poderia me lembrar, que mais
cedo ainda eu havia prometido comprar-lhe uma pele toda nova. Como tão somente
o carinho sem sutilezas de uma criança pudesse desejar cumprir.
Chegaria, depois de grande, depois de muito
trabalhar na vida, com um pacote mal ajeitado, com sapatos de “doutor” – um
homem feito! –, abriria “a-porta-sempre-aberta” de sua casa e meu som a
despertaria.
Atravessando a sala, seguindo pelo corredor mal
iluminado e adornado por um gigantesco e quase assustador retrato de Cristo
presenteado por meu pai, chegando à copa, o poria por sobre a toalha de renda
da mesa e sentaria para esperar que se arrumasse para me receber.
Ela já saberia se tratar de mim, pois mesmo que
cada visitante frequente tivesse lá seus assobios e seu próprio jeito de dizer
que chegou, comigo bastavam meus passos ou nosso cheiro.
Estender-lhe-ia o pacote desajeitado e ela o
saltaria para me abraçar.
Depois de experimentar a força de seu amor – e dos
feixes de madeira em seus braços –, exibiria meu presente narcisicamente, como
uma conquista, como toda promessa cumprida com muito esforço e também vaidade e
orgulho.
Ali mesmo eu a cobriria, não metaforicamente com um
casaco de pele ostensivo – não desejaria que nenhum deslocamento desfizesse nem
a estranheza nem a poesia de minha promessa infantil –, mas concretamente, com
a nova pele que a prometi por no lugar daquela áspera e enrugada que
tanto esfreguei em tantos abraços...
Embora não saiba até hoje como lhe retribuir, ainda
mais por meio de minha promessa impossível, é assim que imagino.
Sinto nunca ter podido e jamais poder agradecê-la à
altura o caminho maravilhoso que ela me abriu... Com sua voz e seu corpo, era
possível apalpar o amor ou alguma consistência sua! Sentimento concreto
Foi possível a mim, desde criança, esgueirar-me
pela primeira vez no jogo de quem ama: dar aquilo que não se tem em troca do
que se acredita ter ganhado, sem que o outro saiba que deu, pois também não
tinha...
E foi isso que acreditei ter ganhado ali por todos
esses anos até sua morte: um amor que se podia tocar! Sentimento
feito concreto, palpável.
De sua pele ao que restou de sua casa, trouxe em
minhas mãos um pedaço seu, um pedaço do corpo que me abrigou:
um azulejo português com um furo no canto...
Para Judi, eu seria um arquiteto!
Não do tipo comum, mas aquele que construiria
grandes castelos e torres. Pois, quando minha mãe me fizera uma mesa de
“para-casa”, soando não me conhecer tão bem quanto ela, foi Judi mesmo quem
guardou os pedaços de madeira que tiveram de ser aparados dos pés e de outras
partes da mesa desproporcional. Embrulhou-os em jornal e os acomodou em sua
dispensa junto às velhas garrafas de vidro verde cheias de “água-de-chuva”.
Ali eu sabia estarem guardados e prontos para serem
empilhados em forma de prédios monumentais.
Ou teria ela aspirado um afilhado biólogo ao me
conduzir pelas mãos à estonteante fauna e flora de seu quintal?
Sem dúvidas, Judi não negaria que eu seria um
aventureiro.
Descobrir as trilhas entre as flores e o mato,
caçar insetos, enterrar e desenterrar tesouros, plantar morangos e colher
figos, pinhas e romãs...
Explorar aquela terra cheirosa com cada par de
olhos e mãos que brotasse das minhas atenções. Assim ela me conduziu, sentada
numa cadeira rangente, silenciosa e sorridente, descascando laranjas para mim.
Uma vez senti-me muito mal ao arrancar uma lindíssima
rosa vermelha do pé enquanto ela me olhava. Lembro-me de ter sentido a pesada
certeza de que a flor morreria a partir de então, e também me lembro de que
temi matara própria Judi de tristeza.
Alguma interpretação aterrorizante me invadiu,
daquelas que formariam um caráter mais tarde.
Em seu olhar, neutro, eu temi haver um julgamento,
aliás, eu mesmo o coloquei ali.
Talvez tivesse me sentido cruel e egoísta ao querer
arrancar a beleza da flor mesmo sabendo que ela pereceria.
Cheio de culpa e com a garganta apertada, esperei
por um castigo, o quis naquele momento.
“Tudo bem, vai nascer outra”.
Mais uma vez ela me salvou da minha consciência.
Sempre assim, cheia de uma esperança capaz de
afastar a sombra da morte, como fez com o câncer até ultrapassar os 90 anos...
Penso hoje, cansou-se de lutar tanto pela vida que
já havia se cumprido e se encompridado...
Sua morte, muitos anos mais tarde, me fez depurar
sua verdadeira herança, fruto de todo amor que descrevi.
Contava-se que Judi foi quem alfabetizara todos os
seus muitos irmãos. Vindos do sertão da Bahia, rumo ao nordeste deste estado,
até fazendas do nordeste de Minas, trazendo filhos e gado...
Ela, a mais velha, solteira, dedicada e – contam –
severa, ensinou os irmãos a escreverem seu nome e a lerem o básico.
Fez-nos reconhecerem e manejarem o dinheiro – e me
lembro com riso da tal “prova dos nove fora” – para poder vender a colheita na
cidade.
Ensinou às mulheres os pudores e aos homens a
honra, além de alimentá-los todos os dias
“Comam, meus filhos, hoje tem feijão, arroz e
carne!”...
O “ABC do Sertão” – como cantou Gonzaga: “A, bê,
cê, dê,fê, guê, lê, mê...” – foi o marco civilizatório, que das cartilhas
escorreu pelo seu suor até ser transmissível.
Braço direito de seus pais, duas flores da caatinga
– Floriano e Florença – foi a letra que eles não tinham que a fez mãe e pai de
todos. Foi a letra que Judi transmitiu...
Também a mim! Antes de tudo o que já contei, antes
de todas as aventuras, foi um mistério seu, inocente e estimulador, o que
desencadeou o que Judi morreu sem saber, o que não imaginou tão nitidamente,
além de ter feito de seu afilhado um aventureiro.
Eu me tornei um escritor, enfim. Mas foi dali que a
escrita se instalou para hibernar até a maturidade certa: daquele buraco no
chão que mais uma memória guardada por Judi revelou ter sido o verdadeiro
“Portal-do-Outro-Mundo”.
Desde meu primeiro ano de vida, desde que
precocemente falei, desde que me arrastava pela casa, Judi contou-me esta
história que começava com sua provocação:
“Cadê o buraquinho da casa da Dinda?”
Dizia ela e, como de costume, tentando decifrar o
enigma, eu, desde bebê, futucava o pequeno orifício e parecia querer
pergunta-lhe o que havia lá, ela contava.
Em resposta, sabiamente ela abria as portas do
Mundo:
“Eu não sei, você é quem vai descobrir”...
Houve uma reforma, certa vez, e Judi protestou pelo
fechamento do buraquinho, mas foi vencida pelo progresso!
Pensando bem, outro vazio talvez lhe ardesse mais,
minha ausência de adulto, o que talvez fosse suficiente para que se conformasse
em selar aquela irregularidade sem propósito...
Com alguma gorjeta que tirei do bolso e não sem
lágrimas encharcando as bordas dos óculos escuros, pedi ao pedreiro que me
fizesse um favor: “retire para mim aquele azulejo ali”, eu disse e apontei.
Ele ficou confuso não somente por não sacar de
pronto o simbolismo daquele pedido – como certa vez, sem que eu nem pedisse,
uma veterinária o fez entregando a mim uma mecha do pelo do meu poodle depois
de sacrificado em função de uma doença terminal... Não, eu pude perceber –
talvez ele tivesse entendido o simbolismo, mas não minha escolha. “Aquele
ali?”, perguntou. Eu não disse nada.
Com apreensão, esperei que ele me entregasse a peça
intacta ou assim mesmo como estava, com seus defeitos antigos.
Quando ele a deslocou, talvez mais entendimento se
fizesse passar por sua cabeça, pois a carregou como um corpo frágil.
Retirou a sujeira e as arestas e até perguntou se
eu queria que lavasse. Cuido bem da relíquia, só que, de repente gritou um “ai”.
Doeu em mim antes que soubesse o que houve.
A massa usada mais recentemente para selar o buraco
se soltou inteira, revelando o velho furo. Eu quase gargalhei, se não fossem as
lágrimas voltando junto com o riso:
“Não se preocupe, meu amigo, é assim mesmo que eu
queria que ele ficasse: furado!”.
Peguei-lhe o pedaço de chão chorando. Ele, claro,
não entendeu mais nada, porém massageou um de meus ombros em consolo. E eu
chorei...
E, com toda a simplicidade de alguém que, de tanto
trabalho até me lembrou daquele povo meu, o pedreiro ouviu fascinado a história
do azulejo, quase justamente esta que escrevi.
Ao sol de 40 graus, às
ruínas daquela casa, daquele templo que agora seria demolido com mais amor...
Aos frescores da romãzeira remanescente no quintal e do galão de
“água-de-chuva” (água mesmo!)...
Olhei aquele furo como o contemplo até hoje,
inclusive agora. Nenhum dos meus dedos cabe mais ali, também, pois não há mais
o que sondar.
Há muito meu corpo e meu espírito transpuseram este
buraco, este portal!
Até hoje, e enquanto eu ainda escrever esta
história – ou mesmo que ela acabe em três letras –, nunca desvendarei por
completo aquele mistério inaugural, proferido por alguém que para sempre estará
encarnada às margens do buraquinho...
Felipe Artur Martins é de Teófilo Otoni, no Vale do
Mucuri
07.11.2012 24.03 2022