quarta-feira, 7 de novembro de 2012

UM BURAQUINHO SÓ







Só um buraquinho



Felipe Artur Martins





 

 

 

 

Judi me amava mais do que todos neste mundo. Eu sentia isso em sua voz e em seu corpo.

 

Quando ela falava, desde sempre muito idosa, o estremecimento em seu tom não era fraqueza, era força. Força do amor que dizia; força de um bem-querer enorme que saía dali pelas palavras.

 

Seu corpo parecia ter uma membrana de fragilidade e um interior de alguma madeira inflexível.

 

Juntas de corda amarrando os feixes resistentes. Pois sua pele carecia de outra.

 

Ela dizia, e eu não poderia me lembrar, que mais cedo ainda eu havia prometido comprar-lhe uma pele toda nova. Como tão somente o carinho sem sutilezas de uma criança pudesse desejar cumprir.

 

Chegaria, depois de grande, depois de muito trabalhar na vida, com um pacote mal ajeitado, com sapatos de “doutor” – um homem feito! –, abriria “a-porta-sempre-aberta” de sua casa e meu som a despertaria.

 

Atravessando a sala, seguindo pelo corredor mal iluminado e adornado por um gigantesco e quase assustador retrato de Cristo presenteado por meu pai, chegando à copa, o poria por sobre a toalha de renda da mesa e sentaria para esperar que se arrumasse para me receber.

 

Ela já saberia se tratar de mim, pois mesmo que cada visitante frequente tivesse lá seus assobios e seu próprio jeito de dizer que chegou, comigo bastavam meus passos ou nosso cheiro.

 

Estender-lhe-ia o pacote desajeitado e ela o saltaria para me abraçar.

 

Depois de experimentar a força de seu amor – e dos feixes de madeira em seus braços –, exibiria meu presente narcisicamente, como uma conquista, como toda promessa cumprida com muito esforço e também vaidade e orgulho.

 

Ali mesmo eu a cobriria, não metaforicamente com um casaco de pele ostensivo – não desejaria que nenhum deslocamento desfizesse nem a estranheza nem a poesia de minha promessa infantil –, mas concretamente, com a nova pele que a prometi por no lugar daquela áspera e enrugada que tanto esfreguei em tantos abraços...

 

Embora não saiba até hoje como lhe retribuir, ainda mais por meio de minha promessa impossível, é assim que imagino.

 

Sinto nunca ter podido e jamais poder agradecê-la à altura o caminho maravilhoso que ela me abriu... Com sua voz e seu corpo, era possível apalpar o amor ou alguma consistência sua! Sentimento concreto

 

Foi possível a mim, desde criança, esgueirar-me pela primeira vez no jogo de quem ama: dar aquilo que não se tem em troca do que se acredita ter ganhado, sem que o outro saiba que deu, pois também não tinha...

 

E foi isso que acreditei ter ganhado ali por todos esses anos até sua morte: um amor que se podia tocar! Sentimento feito concreto, palpável.

 

De sua pele ao que restou de sua casa, trouxe em minhas mãos um pedaço seu, um pedaço do corpo que me abrigou:

 

um azulejo português com um furo no canto...

 

Para Judi, eu seria um arquiteto! 

 

Não do tipo comum, mas aquele que construiria grandes castelos e torres. Pois, quando minha mãe me fizera uma mesa de “para-casa”, soando não me conhecer tão bem quanto ela, foi Judi mesmo quem guardou os pedaços de madeira que tiveram de ser aparados dos pés e de outras partes da mesa desproporcional. Embrulhou-os em jornal e os acomodou em sua dispensa junto às velhas garrafas de vidro verde cheias de “água-de-chuva”.

 

Ali eu sabia estarem guardados e prontos para serem empilhados em forma de prédios monumentais.

 

Ou teria ela aspirado um afilhado biólogo ao me conduzir pelas mãos à estonteante fauna e flora de seu quintal?

 

Sem dúvidas, Judi não negaria que eu seria um aventureiro.

 

Descobrir as trilhas entre as flores e o mato, caçar insetos, enterrar e desenterrar tesouros, plantar morangos e colher figos, pinhas e romãs...

 

Explorar aquela terra cheirosa com cada par de olhos e mãos que brotasse das minhas atenções. Assim ela me conduziu, sentada numa cadeira rangente, silenciosa e sorridente, descascando laranjas para mim.

 

Uma vez senti-me muito mal ao arrancar uma lindíssima rosa vermelha do pé enquanto ela me olhava. Lembro-me de ter sentido a pesada certeza de que a flor morreria a partir de então, e também me lembro de que temi matara própria Judi de tristeza.

 

Alguma interpretação aterrorizante me invadiu, daquelas que formariam um caráter mais tarde.

 

Em seu olhar, neutro, eu temi haver um julgamento, aliás, eu mesmo o coloquei ali.

 

Talvez tivesse me sentido cruel e egoísta ao querer arrancar a beleza da flor mesmo sabendo que ela pereceria.

 

Cheio de culpa e com a garganta apertada, esperei por um castigo, o quis naquele momento.

 

“Tudo bem, vai nascer outra”.

 

Mais uma vez ela me salvou da minha consciência.

 

Sempre assim, cheia de uma esperança capaz de afastar a sombra da morte, como fez com o câncer até ultrapassar os 90 anos...

 

Penso hoje, cansou-se de lutar tanto pela vida que já havia se cumprido e se encompridado...

 

Sua morte, muitos anos mais tarde, me fez depurar sua verdadeira herança, fruto de todo amor que descrevi.

 

 

Contava-se que Judi foi quem alfabetizara todos os seus muitos irmãos. Vindos do sertão da Bahia, rumo ao nordeste deste estado, até fazendas do nordeste de Minas, trazendo filhos e gado...

 

Ela, a mais velha, solteira, dedicada e – contam – severa, ensinou os irmãos a escreverem seu nome e a lerem o básico.

 

Fez-nos reconhecerem e manejarem o dinheiro – e me lembro com riso da tal “prova dos nove fora” – para poder vender a colheita na cidade.

 

Ensinou às mulheres os pudores e aos homens a honra, além de alimentá-los todos os dias

 

“Comam, meus filhos, hoje tem feijão, arroz e carne!”...

 

O “ABC do Sertão” – como cantou Gonzaga: “A, bê, cê, dê,fê, guê, lê, mê...” – foi o marco civilizatório, que das cartilhas escorreu pelo seu suor até ser transmissível.

 

Braço direito de seus pais, duas flores da caatinga – Floriano e Florença – foi a letra que eles não tinham que a fez mãe e pai de todos. Foi a letra que Judi transmitiu...

 

Também a mim! Antes de tudo o que já contei, antes de todas as aventuras, foi um mistério seu, inocente e estimulador, o que desencadeou o que Judi morreu sem saber, o que não imaginou tão nitidamente, além de ter feito de seu afilhado um aventureiro.

 

Eu me tornei um escritor, enfim. Mas foi dali que a escrita se instalou para hibernar até a maturidade certa: daquele buraco no chão que mais uma memória guardada por Judi revelou ter sido o verdadeiro “Portal-do-Outro-Mundo”.

 

Desde meu primeiro ano de vida, desde que precocemente falei, desde que me arrastava pela casa, Judi contou-me esta história que começava com sua provocação: 

 

“Cadê o buraquinho da casa da Dinda?”

 

Dizia ela e, como de costume, tentando decifrar o enigma, eu, desde bebê, futucava o pequeno orifício e parecia querer pergunta-lhe o que havia lá, ela contava.

 

Em resposta, sabiamente ela abria as portas do Mundo:

 

“Eu não sei, você é quem vai descobrir”...

 

Houve uma reforma, certa vez, e Judi protestou pelo fechamento do buraquinho, mas foi vencida pelo progresso!

 

Pensando bem, outro vazio talvez lhe ardesse mais, minha ausência de adulto, o que talvez fosse suficiente para que se conformasse em selar aquela irregularidade sem propósito...

 

Com alguma gorjeta que tirei do bolso e não sem lágrimas encharcando as bordas dos óculos escuros, pedi ao pedreiro que me fizesse um favor: “retire para mim aquele azulejo ali”, eu disse e apontei.

 

Ele ficou confuso não somente por não sacar de pronto o simbolismo daquele pedido – como certa vez, sem que eu nem pedisse, uma veterinária o fez entregando a mim uma mecha do pelo do meu poodle depois de sacrificado em função de uma doença terminal... Não, eu pude perceber – talvez ele tivesse entendido o simbolismo, mas não minha escolha. “Aquele ali?”, perguntou. Eu não disse nada.

 

Com apreensão, esperei que ele me entregasse a peça intacta ou assim mesmo como estava, com seus defeitos antigos.

 

Quando ele a deslocou, talvez mais entendimento se fizesse passar por sua cabeça, pois a carregou como um corpo frágil.

 

Retirou a sujeira e as arestas e até perguntou se eu queria que lavasse. Cuido bem da relíquia, só que, de repente gritou um “ai”. Doeu em mim antes que soubesse o que houve.

 

A massa usada mais recentemente para selar o buraco se soltou inteira, revelando o velho furo. Eu quase gargalhei, se não fossem as lágrimas voltando junto com o riso:

 

“Não se preocupe, meu amigo, é assim mesmo que eu queria que ele ficasse: furado!”.

 

Peguei-lhe o pedaço de chão chorando. Ele, claro, não entendeu mais nada, porém massageou um de meus ombros em consolo. E eu chorei...

 

E, com toda a simplicidade de alguém que, de tanto trabalho até me lembrou daquele povo meu, o pedreiro ouviu fascinado a história do azulejo, quase justamente esta que escrevi.

 

Ao sol de 40 graus, às ruínas daquela casa, daquele templo que agora seria demolido com mais amor... Aos frescores da romãzeira remanescente no quintal e do galão de “água-de-chuva” (água mesmo!)...

 

Olhei aquele furo como o contemplo até hoje, inclusive agora. Nenhum dos meus dedos cabe mais ali, também, pois não há mais o que sondar.

 

Há muito meu corpo e meu espírito transpuseram este buraco, este portal!

 

Até hoje, e enquanto eu ainda escrever esta história – ou mesmo que ela acabe em três letras –, nunca desvendarei por completo aquele mistério inaugural, proferido por alguém que para sempre estará encarnada às margens do buraquinho...

 

 

 

Felipe Artur Martins é de Teófilo Otoni, no Vale do Mucuri

 

 

 

07.11.2012       24.03 2022