O LEGADO DE PIMENTA
Adriano Augusto
Ela. Ela é
uma mulher. Só. Só isso. Nada mais. Uma mulher. Uma santa? Santa? Não. Nada
disso. Uma mulher.
Naquela
chuva de novembro, na penitenciária, enturmados nos corredores, outros nas
celas, o grupo do curral testava a chuva fina, a de molhar bobo. Era hora de
voltar para o abate.
Ouvir um
amigo como o Pimenta, 171, e acreditar em sua palavra era a nossa única saída,
não era opção. Pimenta jamais pararia de falar, de contar histórias. No
silêncio da madrugada, céu silencioso e a chuva cada vez mais fina, sua voz
vinha com o talento do seu coração.
Agora, ao
falar daquela mulher, ele dizia algo que, considerava ele, vital para todos os
presos.
- A prisão
não é nada. A vida verdadeira é uma prisão.
Pontificava
e a sua definição da vida, volta e meia, pontuava suas longas falas sobre as
novidades da cadeia.
A novidade,
hoje, era aquela mulher que ele queria fazer com que todos acreditassem se
tratar de um “achado”.
- Ela
escolheu a penitenciária de homens, podia ir para a penitenciária de mulheres.
É uma tarada. Taradona.
Riu da merda
que falou.
Digo,
continuou, que ninguém entendeu quando ela desembarcou de Roma no Brasil, bateu
em Minas, bateu onde podia decidir e decidiu. Queria trabalhar numa
penitenciária de homens, a maior e a mais perigosa. Escolheu seu destino,
escolheu seu rumo.
- Consegue
entender isto? Pense. Uma mulher, 62 anos, dona do Vaticano, dona do Papa.
Pense assim: no Exército, depois de longo tempo, o cara chega a general. E a
regra desse exército lá no Vaticano, na turma dela, é: aos 60 anos, tem que
sair. Tem que voltar a ser soldado. Quer continuar?
Volte a ser soldado e
escolha o quartel.
De
secretária de papas não sei se do Papa João XXIII ou de Pio XII, algo como uma
ministra, uma poderosa na estrutura do Vaticano, uma marechal, ela tornou-se
uma simples freira.
Ocuparia, a
partir dos 60, a mais simples posição na hierarquia da sua igreja, da sua
congregação.
Agora uma serviçal, algo assim, neste nível, de diretora da escola
rural a faxineira.
E ela podia
escolher onde seria faxineira. Podia escolher ficar na sua Itália. Ela se
despiu. Isto mesmo, ela se despiu de tudo, de toda a sua história, desapegou-se.
Bateu em retirada para um país distante.
- Como essa
gente fala para se dar importância: para uma missão. Missão porra nenhuma. Ela
sabia disso. Ela queria mesmo era o desconhecido. Não queria o mesmo. Nunca
mais as mesmas caras, as mesmas casas, as mesmas ruas, as mesmas cidades. Nada
com o não ao mesmo.
Uma nova
prisão? Sim, sim. A vida, afinal, é uma prisão. É difícil de fugir. É difícil
de escapar. Ela apostou alto, apostou na vida. Não mais o deserto. Não mais o
frio. Não mais a pompa. Não mais tanta roupa. Tantas máscaras.
- Ela não
nega fogo. Aviso a todos, chegou aqui na penitenciária para viver a nossa
prisão uma mulher. Uma mulher. Não uma santa.
Os presos
seguem em fila indiana para o curral, para o abate do dia. A chuva aumenta.