quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A IMITAÇÃO DE CRISTO









O LEGADO DE PIMENTA





Adriano Augusto





Ela. Ela é uma mulher. Só. Só isso. Nada mais. Uma mulher. Uma santa? Santa? Não. Nada disso. Uma mulher.

Naquela chuva de novembro, na penitenciária, enturmados nos corredores, outros nas celas, o grupo do curral testava a chuva fina, a de molhar bobo. Era hora de voltar para o abate.

Ouvir um amigo como o Pimenta, 171, e acreditar em sua palavra era a nossa única saída, não era opção. Pimenta jamais pararia de falar, de contar histórias. No silêncio da madrugada, céu silencioso e a chuva cada vez mais fina, sua voz vinha com o talento do seu coração.

Agora, ao falar daquela mulher, ele dizia algo que, considerava ele, vital para todos os presos.

- A prisão não é nada. A vida verdadeira é uma prisão.

Pontificava e a sua definição da vida, volta e meia, pontuava suas longas falas sobre as novidades da cadeia.

A novidade, hoje, era aquela mulher que ele queria fazer com que todos acreditassem se tratar de um “achado”.

- Ela escolheu a penitenciária de homens, podia ir para a penitenciária de mulheres. É uma tarada. Taradona.

Riu da merda que falou.

Digo, continuou, que ninguém entendeu quando ela desembarcou de Roma no Brasil, bateu em Minas, bateu onde podia decidir e decidiu. Queria trabalhar numa penitenciária de homens, a maior e a mais perigosa. Escolheu seu destino, escolheu seu rumo.

- Consegue entender isto? Pense. Uma mulher, 62 anos, dona do Vaticano, dona do Papa. Pense assim: no Exército, depois de longo tempo, o cara chega a general. E a regra desse exército lá no Vaticano, na turma dela, é: aos 60 anos, tem que sair. Tem que voltar a ser soldado. Quer continuar? 
Volte a ser soldado e escolha o quartel.

De secretária de papas não sei se do Papa João XXIII ou de Pio XII, algo como uma ministra, uma poderosa na estrutura do Vaticano, uma marechal, ela tornou-se uma simples freira.

Ocuparia, a partir dos 60, a mais simples posição na hierarquia da sua igreja, da sua congregação. 

Agora uma serviçal, algo assim, neste nível, de diretora da escola rural a faxineira.

E ela podia escolher onde seria faxineira. Podia escolher ficar na sua Itália. Ela se despiu. Isto mesmo, ela se despiu de tudo, de toda a sua história, desapegou-se. Bateu em retirada para um país distante.

- Como essa gente fala para se dar importância: para uma missão. Missão porra nenhuma. Ela sabia disso. Ela queria mesmo era o desconhecido. Não queria o mesmo. Nunca mais as mesmas caras, as mesmas casas, as mesmas ruas, as mesmas cidades. Nada com o não ao mesmo.

Uma nova prisão? Sim, sim. A vida, afinal, é uma prisão. É difícil de fugir. É difícil de escapar. Ela apostou alto, apostou na vida. Não mais o deserto. Não mais o frio. Não mais a pompa. Não mais tanta roupa. Tantas máscaras.

- Ela não nega fogo. Aviso a todos, chegou aqui na penitenciária para viver a nossa prisão uma mulher. Uma mulher. Não uma santa.

Os presos seguem em fila indiana para o curral, para o abate do dia. A chuva aumenta.