domingo, 10 de novembro de 2013

O ANDARILHO











NINGUÉM SE PERDE AO CAMINHAR



 Pierre Malraux







Andarilho é o homem, seu dever é vagar
Para descobrir em outro lugar um lar imutável.”
As palavras da loucura, Schiller



Excluído da família, um sem-família, caminha pela cidade, completamente solto, livre, não sei se livre, devorado, desarvorado, em meio às árvores das avenidas, com mil sofrimentos, mil pensamentos.


Eu pisava as ruas da capital como todos os outros andarilhos as percorrem, com o mesmo sofrimento de todos eles, olhando pessoas, não olhando, olhando casas, prédios, lugares, não olhando, estando lá, passando por lá (lembrando-me de Dostoievsky de Noites Brancas e de Steimberg de um livro de histórias sobre um vale e a sua cidade- principalmente da aproximação).


As casas e seus habitantes, a vida e as suas manifestações, as alegrias e as tristezas, eu caminho em direção permanente ao outro; muitas vezes percorria distâncias incríveis apenas dentro de mim e assustava-me quando descobria onde havia chegado, o caminho que percorrera sem ver, sem ser abordado e sem ser atropelado (exatamente isto: sobrevivente do acaso).



Aos poucos percebia meus parceiros, os outros andarilhos, muitos tão profundamente dentro de suas vidas e de suas histórias que os imaginava maravilhosos embora soubesse, como poucos, a imensa profundidade daquelas descidas - este é, não sei se, o mais desastrado de todos os mergulhos.


Percebia-os pelas roupas, pelos cheiros, barbas grandes, pelo caminhar (vi neste trajeto muitos ex-andarilhos e perdi de vista alguns andarilhos, não aqueles que faziam sempre, infinitamente os mesmos percursos, os mesmos trechos).


Sentia-os na não solidariedade, na indiferença, mergulhados em seus mundos, às vezes, lado a lado, cansados, em um banco de praça, comunicávamos nossos silêncios, nossas profundidades, perdidos e dostoievskianamente humilhados e ofendidos ou não.



Captava-os, amado mestre, nas suas sombras e nos seus lugares, sabia-os por locais baldios e em podridões, onde outros homens não aventuram se aproximar, narizes sensíveis e almas limpas.



Capturava-os em mim, na minha aventura para o descobrimento das avenidas largas e das imensidões dos céus nos vales de uma cidade comprimida pelas construções, pelo cinza de suas paredes e por carros multiplicados em carros, na simbiose em que mil carros completam-se naquela fila quilométrica,  a devorar, serpente rastejante, em seus estômagos, seus venenosos condutores.                



Aqueles que conhecerão os percursos possíveis das mentes sofridas, um dia dirão de que é capaz este imensurável mergulho. Se suas cabeças caem para o chão, isto não significa nada. Se falam sozinhos, isto não significa nada. Para os homens do cérebro isto hoje pode significar uma alucinação, um complexo diálogo com o inferno e/ou com o céu.






“... o pobre irmão se levantava, a boca apodrecida,
 os olhos arrancados - tal como ele se sonhava! -
e me arrastava pela sala,
berrando seu sonho de idiota aflição”.
Arthur Rimbaud