domingo, 10 de novembro de 2013

A INVENÇÃO DO HOMEM







O homem inacabado 


Duílio Peixoto











A metade que parecia dele ficou
a esperar a outra,
que se forjava na cidade dividida.
Não conseguia juntá-las...” 
Cadernos de João, de Aníbal Machado



Eu conheci um homem inacabado. Era um sujeito altivo. Ele não buscava nem mesmo a sua outra metade, que sabia existir.

Isto já seria demais.

Buscava-se quase na totalidade do mínimo ser. Qualquer traço já seria alguma coisa, um ponto de partida.

Um traço de caráter? Uma renúncia? Uma glória? Nada.

Não era nem mesmo metade e nem mesmo inacabado. Absurdo seria dizer que este homem não conseguiria jamais ser nem mesmo um homem começado.

Como não é esta a linguagem que falo agora, digamos que este homem que eu conheci muito de perto tenha sido um projeto, um homem projeto, um homem projetado, pensado e que quase começou. Uma construção imaginada, projeto de arquiteto, diante do papel branco, a desenhar. Cada pedaço encontrado pouco preenchia.

Assim, tudo era incompleto, inacabado, insustentavelmente inapelavelmente inacabado porque não completamente começado, nem mesmo começado.

Sua tragédia ou seu talento estava em ter tomado conhecimento desta impossibilidade de completar-se, da sua impossibilidade de começar, ele aceitou o inacabado e aventurou-se em supor-se completo, na possibilidade de visualizar-se como metade em busca de uma outra metade, quis que a metade existente tornar-se conhecida de si.

Incrível aventura. Conhecer-se a si mesmo... pela metade ou pelo menos a metade ou quase a metade.

Examinou homens completos, achava possível. Como examinou modelos plutarquianos e não plutarquianos além dos modernos modelos virtuais.

Mais do que uma escalada a mil Everest - fato possível - era chegar ao cume da metade de si mesmo - fato impossível - mas imaginável, potencializável, não por ele, mas por um homem, ou por todos, algum dia.






“Uma obra consumada não seria necessariamente
 acabada e uma obra acabada
não seria necessariamente consumada”.
Baudelaire citado por Malraux,
citado por Merleau-Ponty





“A cultura jamais nos dá, pois, significações absolutamente transparentes, a gênese do sentido jamais se conclui”.




“Ora, se expulsarmos do espírito a idéia de um texto original, do qual a linguagem seria a tradução ou a versão cifrada, veremos que a idéia de uma expressão completa é um contra-senso, que toda a linguagem é  indireta ou alusiva e, se quisermos, silêncio”
Maurice Merleau-Ponty, in A linguagem indireta e as vozes do silêncio, Editora Abril




“Como sempre em arte, fingir para tornar verdadeiro”.
Sartre citado por Merleau-Ponty



“O poeta é um sofredor,
finge que é dor, a dor
que deveras sente”

Fernando Pessoa