O
homem inacabado
Duílio Peixoto
“A
metade que parecia dele ficou
a
esperar a outra,
que
se forjava na cidade dividida.
Não
conseguia juntá-las...”
Cadernos
de João, de Aníbal Machado
Eu conheci um homem inacabado. Era um sujeito altivo. Ele não
buscava nem mesmo a sua outra metade, que sabia existir.
Isto já seria demais.
Buscava-se quase na totalidade do mínimo ser. Qualquer traço já
seria alguma coisa, um ponto de partida.
Um traço de caráter? Uma renúncia? Uma glória? Nada.
Não era nem mesmo metade e nem mesmo inacabado. Absurdo seria
dizer que este homem não conseguiria jamais ser nem mesmo um homem começado.
Como não é esta a linguagem que falo agora, digamos que este homem
que eu conheci muito de perto tenha sido um projeto, um homem projeto, um homem
projetado, pensado e que quase começou. Uma construção imaginada, projeto de
arquiteto, diante do papel branco, a desenhar. Cada pedaço encontrado pouco
preenchia.
Assim, tudo era incompleto, inacabado, insustentavelmente
inapelavelmente inacabado porque não completamente começado, nem mesmo
começado.
Sua tragédia ou seu talento estava em ter tomado conhecimento
desta impossibilidade de completar-se, da sua impossibilidade de começar, ele
aceitou o inacabado e aventurou-se em supor-se completo, na possibilidade de
visualizar-se como metade em busca de uma outra metade, quis que a metade
existente tornar-se conhecida de si.
Incrível aventura. Conhecer-se a si mesmo... pela metade ou pelo
menos a metade ou quase a metade.
Examinou homens completos, achava possível. Como examinou modelos
plutarquianos e não plutarquianos além dos modernos modelos virtuais.
Mais do que uma escalada a mil Everest - fato possível - era
chegar ao cume da metade de si mesmo - fato impossível - mas imaginável,
potencializável, não por ele, mas por um homem, ou por todos, algum dia.
“Uma
obra consumada não seria necessariamente
acabada e uma obra acabada
não
seria necessariamente consumada”.
Baudelaire
citado por Malraux,
citado
por Merleau-Ponty
“A cultura jamais nos dá, pois, significações absolutamente
transparentes, a gênese do sentido jamais se conclui”.
“Ora, se expulsarmos do espírito a idéia de um texto original, do qual a linguagem
seria a tradução ou a versão cifrada, veremos que a idéia de uma expressão completa é um contra-senso, que toda a
linguagem é indireta ou alusiva e, se
quisermos, silêncio”
Maurice
Merleau-Ponty, in A linguagem indireta e as vozes do silêncio, Editora Abril
“Como sempre em arte, fingir para tornar verdadeiro”.
Sartre citado por Merleau-Ponty
“O poeta é um sofredor,
finge que é dor, a dor
que deveras sente”