Os prisioneiros
Adriano Augusto
Ela foi prisioneira. Ela conhece uma
prisão por dentro, cara. Ela é uma pessoa, uma mulher que viveu a nossa vida de
prisioneiros.
Ela esteve presa e não foi por pouco
tempo. Apanhou e sofreu assim como a maioria de todos nós que é torturado, dia
sim, todos os dias, em todas as prisões desse mundo tão gigante e tão pequeno.
A revelação do Pimenta não gerou nenhuma
estranheza. Nenhuma perplexidade. Nenhuma concordância, é bom que se registre a
indiferença. É algo como se fosse normal.
Apenas um silêncio e assim mesmo este
silêncio foi cortado apenas por Agustinho enrolando seu baseado.
Ela...
... continuou, falou pausado, tranquilaço
o nosso Pimenta.
...
Ela é bandida. Era mulher. E era bandida.
Era santa. É bandida. Toda mulher é isto mesmo santa e bandida. Não escapa. Nenhuma.
Assim como estamos condenados à prisão, elas também estão condenadas à
bandidagem e à santidade, algumas vezes mais bandida, quase sempre. Sempre
(corrigiu a tempo).
Pimenta olha fixo e acompanha a fumaça
que já domina o espaço amplo, cada vez mais amplo, onde o cheiro da erva é
degustado.
Vamos ver com mais precisão. Quem de nós
veio para a prisão porque fez o bem, ajudou uma pessoa, salvou uma vida?
Veja, meu amigo Agustinho, onde ela
passou a maior parte dos seus dias de prisão foi no fim da guerra em um campo
de concentração montado pelos EUA no
Marrocos, no norte da África.
Mais, mais. Antes ela fora condecorada
pelos seus carcereiros. Ela estava presa, não pelos seus atos e suas responsabilidades,
ela estava presa porque era italiana (é como hoje ser árabe, moreno e ter
bigode). Para os que ganharam a guerra, ela era uma inimiga. Era apenas uma
italiana. Uma líder. Uma pessoa de iniciativa e cuja iniciativa era a de salvar
vidas- até a vida dos inimigos, para ela, devia ser salva. O homem não podia
ser inimigo do homem. Isto não entrava e não entra na cabeça desta mulher.
- Não foi condecorada?
- Sim. Sim, ela foi condecorada porque
salvou vidas. Até os idiotas e os loucos são capazes, em seus baratos de
reconhecerem o outro. Nos hospitais que dirigiu, recebeu feridos. Ela não podia
olhar, nem os seus médicos, a farda, a nacionalidade, nada disso. Ela salvava
vidas. Por isso, recebeu homenagens e condecorações dos alemães, dos italianos,
dos etíopes, dos ingleses e dos norte-americanos.
Mas a guerra terminara e a Etiópia, onde
os italianos foram derrotados, ocupada. Ela teve que ceder o hospital que
estava sob a sua direção.
Dali para uma prisão e depois para um
campo de concentração, montado pelos norte-americanos, no Marrocos. Ficou quase
dois anos em um campo de concentração. Voltou para Roma, onde tornou-se uma
executiva do Vaticano e, ali, conheceu o
padre Gemelli.
Ela conta que na Líbia, em Adis Abeba,
debaixo de intensos combates e bombardeios, o hospital que dirigia,bombardeado
pelos norte-americanos, teve que transferir suas alas para as ruas e, em pouco
tempo, o hospital espalhara-se em muitas casas, ruas e becos. Cirurgias eram
realizadas a céu aberto.
Era o que podiam fazer para salvar vidas.
Não ter medo. Vejo o que acontece hoje em Gaza e me passa pela cabeça quantas
vezes isto tem acontecido neste mesmo tempo em que vivemos em vários lugares.
Penso na batalha de Stalingrado que podemos ler naquele livro grosso da
biblioteca da penitenciária.
Na guerra, é proibido ter medo. Diz ela. Sei
não. Ela disse isso. É, ela disse isto. Penso cá, como não ter medo? Como não
sofrer? Como não chorar? Tantas crianças mortas! Serão alvos. Alvos? Os novos
alvos? Serão sempre alvos?