A
múltipla condenação
A Justiça condena. Na cadeia, há uma nova condenação,
sem julgamento e sem direito de defesa.
Gabriel Sena
Eles são exemplos de resistência
física, principalmente.
Patrocínio
- três anos em uma cela fria e úmida, sob chão de marmorite, cela escura de
castigo do Depósito de Presos, em Belo Horizonte.
Gorila
- nove anos no castigo em Caratinga. Também isolado. Nove anos isolado em uma
cela. Este talvez tenha sido o mais brutalizado de todos.
Célio Bundadetanajura - sete anos na
cela de isolamento, fétida e pequena, em Além Paraíba. “Além Paraíba”
significava na linguagem da cadeia qualquer lugar ruim e qualquer punição.
Eles também são exemplos da violência,
da covardia, da humilhação e da pressão exercida contra o indivíduo pelas
instituições do Estado.
São homens que saíram das sepulturas,
com raros contatos com seres do outro mundo.
A Língua Desgraçada
José do Patrocínio era chamado também
de Língua Desgraçada pela irreverência com quem quer que fosse, mais com
aqueles que o prendiam e que carregavam o peso da autoridade.
Patrocínio saia do castigo passava dois
ou três dias no pátio e depois voltava novamente para o castigo. Ele não
gostava de puxar saco das autoridades e era amigo dos presos seus companheiros.
A Língua Desgraçada o levou, no
Depósito de Presos da Lagoinha, a ficar três anos preso, sem processo, na cela
de castigo.
Patrocínio era ladrão, ladrão de cavalos, como ele mesmo se intitulava
com orgulho. Sua última prisão foi em penitenciária político-militar por ter,
juntamente com Café, seu amigo, Cafezinho, roubado e vendido um arma privativa
das Forças Armadas.
Patrô não vivia, vegetava. Era repelente em sua sujeira. Vivia na
engorda. A única coisa que o distraia era a comida. Seu corpo era monstruoso e
deformado pela vida ociosa e parada.
Um bicho inchado.
Patrô saiu de Linhares em 71. Mais uma vez foi fazer o que era
especialista: roubar cavalos.
Gorilão, um louco, um sábio
Gorila foi traído pela sua própria
capacidade física: era forte. Um gigante. Como homem forte, Gorilão tinha fama sedimentada
nas pequenas historietas, muitas, contadas pelos outros presos.
Antes de conhecer o Gorilão, ouvia-se
as histórias de uma pessoa simpática e muito tranqüila, além da inteligência e
de sua intransigência na defesa de interesses coletivos.
Uma conta da chegada de Gorilão à
Penitenciária Agrícola de Neves, condenado por homicídio. Sua arma teria sido
um tremendo soco no adversário.
No sua chegada, toda penitenciária já o esperava, alguns querendo
conhecer de perto o homem famoso.
A inspetoria de segurança não estava
em um bom dia, pois teria feito tudo para não aceitar a internação na
penitenciária daquele homem perigoso para a tranqüilidade das autoridades.
E tão logo Gorilão chegou, a
inspetoria teve certeza de que não conseguiria dominar o homem. Gorilão foi
seco nas respostas e não aceitou nada que o pudesse diminuir perante os
companheiros. Os caras foram duros com Gorilão.
Cinco vezes, cinco vezes 60ias, esgotou o prazo para que o liberassem da cela
de observação.
A guarda queria esquecê-lo em uma
daquelas celas e dentro da cadeia já havia um movimento de ascensão do preso em
torno da figura de Gorila, que foi prontamente descoberto e abafado pela
inspetoria.
Esgotados os recursos para se fazer
ver a irregularidade da permanência de Gorilão na cela de observação, a única
solução seria a violência. Uma madrugada todos os presos acordaram. Era a voz
alta e de bom som do Gorilão. Para que todos soubessem o que se passava, gritou
para os companheiros, denunciou os policiais-carcereiros. Todos os presos
ouviram, uma galeria despertou a outra.
E todos ouviram a quebradeira que o
Gorilão aprontou. Ele destruiu antes do amanhecer toda a cela de observação em
que estava detido.
Segundo o enfermeiro, Seu Jacinto,
Gorilão só não saiu da cela porque não quis e porque sabia que se abrisse a
porta seria assassinado.
Enviado para o castigo em Caratinga,
ficou nove anos no total isolamento.
Quando voltou à enfermaria da
Penitenciária de Neves, ele teve momentos de lucidez constrangedora,
identificando os seus inimigos, e momentos de comportamento sonhador, quando
atraia a atenção dos companheiros que o distraiam e cuidavam dele.
Gorila foi para Barbacena em 1974 e o
diagnóstico médico falava de uma deterioração cerebral progressiva.
Na enfermaria, era cuidado por outro
preso, O Irmão, que três vezes por dia, cuidava da garganta do Gorilão
infestada de bernes.
“A dor, muita dor, sem anestesia,
Gorilão venceu os bernes”.
A bunda que leciona
Célio Francisco Rosa, Célio Bundadetanajura, e Zé Pequeno são dois
presos emblemáticos, suas atividades e suas fugas atraiam até mesmo a simpatia
das autoridades.
Célio fazia questão de não tratar com
a autoridade. Tendo que dialogar com a autoridade, não a respeitava. “Aí vinha
a merda”.
O delegado de Além Paraíba colocou Célio sete
anos trancado na menor cela da cadeia e não o transferia. Não permitiu que ele
fosse enviado para nenhuma penitenciária, enquanto ele fosse o delegado da
cidade.
Da cela, Célio o desafiava, o ridicularizava até que depois de sete
anos, este delegado, que Célio admite ser uma pessoa digna, compreendeu que ele
nunca quebraria aquele preso e liberou a sua transferência para a
penitenciária. Célio diz que, para não ficar louco, inventava de tudo e que
muitas vezes para se dominar passava semanas odiando e dias xingando o
delegado.
Na Penitenciária de Ribeirão das Neves, Célio foi goleiro durante muito
tempo da seleção A, foi técnico de time misto, estudou, fez o primário,
trabalhou no Laboratório de Análises Clínicas, onde passou a assumir o cargo de
laboratorista auxiliar.
Depois foi professor primário,
professor do Mobral, projeto do governo federal de alfabetização de adultos, e
o principal auxiliar do posto de saúde da prefeitura de Ribeirão das Neves.
Para Célio, não foi tarde demais a mudança na política penitenciária, adotada
em Neves a partir de 72.
Muitos sucumbiram, muitos não
agüentaram aquela luta. Luta desproporcional para aqueles que não perceberam que
eram eles, sozinhos, contra a violência da máquina do Estado ocultada nas
vestes humildes do guarda gentil e servil quase sempre.
