terça-feira, 23 de dezembro de 2014

CONDENAÇÃO PERMANENTE






A múltipla condenação


        

 A Justiça condena. Na cadeia, há uma nova condenação,
sem julgamento e sem direito de defesa.



Gabriel  Sena




        Eles são exemplos de resistência física, principalmente.

          Patrocínio - três anos em uma cela fria e úmida, sob chão de marmorite, cela escura de castigo do Depósito de Presos, em Belo Horizonte.

         Gorila - nove anos no castigo em Caratinga. Também isolado. Nove anos isolado em uma cela. Este talvez tenha sido o mais brutalizado de todos.

         Célio Bundadetanajura - sete anos na cela de isolamento, fétida e pequena, em Além Paraíba. “Além Paraíba” significava na linguagem da cadeia qualquer lugar ruim e qualquer punição.

         Eles também são exemplos da violência, da covardia, da humilhação e da pressão exercida contra o indivíduo pelas instituições do Estado.

         São homens que saíram das sepulturas, com raros contatos com seres do outro mundo.



A Língua Desgraçada
      
        José do Patrocínio era chamado também de Língua Desgraçada pela irreverência com quem quer que fosse, mais com aqueles que o prendiam e que carregavam o peso da autoridade.

        Patrocínio saia do castigo passava dois ou três dias no pátio e depois voltava novamente para o castigo. Ele não gostava de puxar saco das autoridades e era amigo dos presos seus companheiros.

        A Língua Desgraçada o levou, no Depósito de Presos da Lagoinha, a ficar três anos preso, sem processo, na cela de castigo.

       Patrocínio era ladrão, ladrão de cavalos, como ele mesmo se intitulava com orgulho. Sua última prisão foi em penitenciária político-militar por ter, juntamente com Café, seu amigo, Cafezinho, roubado e vendido um arma privativa das Forças Armadas.

     Patrô não vivia, vegetava. Era repelente em sua sujeira. Vivia na engorda. A única coisa que o distraia era a comida. Seu corpo era monstruoso e deformado pela vida ociosa e parada.

      Um bicho inchado.

      Patrô saiu de Linhares em 71. Mais uma vez foi fazer o que era especialista: roubar cavalos.




Gorilão, um louco, um sábio

Gorila foi traído pela sua própria capacidade física: era forte. Um gigante. Como homem forte, Gorilão tinha fama sedimentada nas pequenas historietas, muitas, contadas pelos outros presos.

Antes de conhecer o Gorilão, ouvia-se as histórias de uma pessoa simpática e muito tranqüila, além da inteligência e de sua intransigência na defesa de interesses coletivos.

Uma conta da chegada de Gorilão à Penitenciária Agrícola de Neves, condenado por homicídio. Sua arma teria sido um tremendo soco no adversário.

No sua chegada, toda  penitenciária já o esperava, alguns querendo conhecer de perto o homem famoso.

A inspetoria de segurança não estava em um bom dia, pois teria feito tudo para não aceitar a internação na penitenciária daquele homem perigoso para a tranqüilidade das autoridades.

E tão logo Gorilão chegou, a inspetoria teve certeza de que não conseguiria dominar o homem. Gorilão foi seco nas respostas e não aceitou nada que o pudesse diminuir perante os companheiros. Os caras foram duros com Gorilão.

Cinco vezes, cinco vezes 60ias,  esgotou o prazo para que o liberassem da cela de observação.

A guarda queria esquecê-lo em uma daquelas celas e dentro da cadeia já havia um movimento de ascensão do preso em torno da figura de Gorila, que foi prontamente descoberto e abafado pela inspetoria.

Esgotados os recursos para se fazer ver a irregularidade da permanência de Gorilão na cela de observação, a única solução seria a violência. Uma madrugada todos os presos acordaram. Era a voz alta e de bom som do Gorilão. Para que todos soubessem o que se passava, gritou para os companheiros, denunciou os policiais-carcereiros. Todos os presos ouviram, uma galeria despertou a outra.

E todos ouviram a quebradeira que o Gorilão aprontou. Ele destruiu antes do amanhecer toda a cela de observação em que estava detido.

Segundo o enfermeiro, Seu Jacinto, Gorilão só não saiu da cela porque não quis e porque sabia que se abrisse a porta seria assassinado.

Enviado para o castigo em Caratinga, ficou nove anos no total isolamento.

Quando voltou à enfermaria da Penitenciária de Neves, ele teve momentos de lucidez constrangedora, identificando os seus inimigos, e momentos de comportamento sonhador, quando atraia a atenção dos companheiros que o distraiam e cuidavam dele.

Gorila foi para Barbacena em 1974 e o diagnóstico médico falava de uma deterioração cerebral progressiva.

Na enfermaria, era cuidado por outro preso, O Irmão, que três vezes por dia, cuidava da garganta do Gorilão infestada de bernes.

“A dor, muita dor, sem anestesia, Gorilão venceu os bernes”.



A bunda que leciona

      Célio Francisco Rosa, Célio Bundadetanajura, e Zé Pequeno são dois presos emblemáticos, suas atividades e suas fugas atraiam até mesmo a simpatia das autoridades.

Célio fazia questão de não tratar com a autoridade. Tendo que dialogar com a autoridade, não a respeitava. “Aí vinha a merda”.

 O delegado de Além Paraíba colocou Célio sete anos trancado na menor cela da cadeia e não o transferia. Não permitiu que ele fosse enviado para nenhuma penitenciária, enquanto ele fosse o delegado da cidade.

      Da cela, Célio o desafiava, o ridicularizava até que depois de sete anos, este delegado, que Célio admite ser uma pessoa digna, compreendeu que ele nunca quebraria aquele preso e liberou a sua transferência para a penitenciária. Célio diz que, para não ficar louco, inventava de tudo e que muitas vezes para se dominar passava semanas odiando e dias xingando o delegado.


     Na Penitenciária de Ribeirão das Neves, Célio foi goleiro durante muito tempo da seleção A, foi técnico de time misto, estudou, fez o primário, trabalhou no Laboratório de Análises Clínicas, onde passou a assumir o cargo de laboratorista auxiliar.

Depois foi professor primário, professor do Mobral, projeto do governo federal de alfabetização de adultos, e o principal auxiliar do posto de saúde da prefeitura de Ribeirão das Neves. Para Célio, não foi tarde demais a mudança na política penitenciária, adotada em Neves a partir de 72.

            Muitos sucumbiram, muitos não agüentaram aquela luta. Luta desproporcional para aqueles que não perceberam que eram eles, sozinhos, contra a violência da máquina do Estado ocultada nas vestes humildes do guarda gentil e servil quase sempre.