segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

O DESTINO


Em São Leopoldo, as praias têm muitas surpresas




Uma família da lei

Heráclito Borges, advogado


Esta é a “Doutora”.

 

Na cidade, conta-se nos dedos quem sabe o nome dela. Qual? Vanda? Assim, alguns passaram a chamá-la. A "Doutora" se impôs como o seu nome. Sei porque ela, todas as manhãs, às 8h56m, em ponto, ela passa na porta da loja.

 

Para onde vai, o que faz? 

- Não sei.

 

Também não se trata de nenhum mistério. São Leopoldo, na foz do rio São Leopoldo, é uma cidade praieira, pequena, poucos habitantes que se multiplicam por dez, vinte, nos verões e nos feriados prolongados. Não tem muita fofoca, conversa fiada. Aqui não tem nada disso. É raro. É gente pouca e a história de todos já foi conversada trocentas vezes sem conta.

 

Preste atenção em como ela anda, espigada, como ela fala com as pessoas. Ela não anda. Voa. Desliza. Quando conversa é a autoridade que fala.

 

É a Doutora.

 

O avô dela foi juiz, aqui no Maranhão. A mãe, desembargadora. A mãe era a dona da casa, herança de família. Veja, não é uma casa de praia, uma casa para o veraneio deste tipo de família. É uma casa de mais de dez quartos.

 

É casa de morada.

 

Houve dias, nos tempos do juiz, em que todos os quartos viviam povoados e, por todos os lados, salas, várias copas, havia gente circulando.

 

Uma algazarra.

 

Morreu o juiz, a desembargadora herdou e era de pouco aparecer. Uns e outros apareciam. Desapareceram aos poucos. Outros construíram aqui e em outras praias suas casas. Aposentada, viúva, ela desembarcou com malas, trouxas e com a sua fiel Adalgisa.

 

Já era uma mulher de mais de 80 anos e num processo de demência brando. Os médicos apareciam e, Adalgisa sempre por perto, moderna escrava na família, neta de escravos dos Saraivas, dos Botelhos, da família da mulher do juiz.

 

Uma família que sobreviveu ao Império, perdeu, claro, os títulos de nobreza, manteve autoridade e propriedades na região da Costa Larga.

 

- Ela é forte e ainda dura muito tempo. A demência é branda.

 

É o diagnóstico. Para os médicos, cada vez presenças menos frequentes, o mais que se podia fazer era dar a ela uma boa alimentação, uma vida saudável, caminhadas pela costa e o sol da manhã.

 

Em toda aquela grande casa, durante muito tempo, dona Adalgisa, como o nosso povo chamava a negra escrava, alma boa, e a desembargadora viveram sempre cercadas pelas atenções de serviçais e faxineiras. Adalgisa queria manter a casa como um lugar digno da família Saraiva & Botelho.

 

As duas filhas da desembargadora a abandonaram – diz o povo que acompanhava a vida das duas mulheres.

 

 A “Doutora” vivia em Nova York, doutora em Direito Internacional e consultora da ONU. A filha da desembargadora do Rio aparecia pouco. Era muito raro. Muito raro, mesmo. Nem nos verões. Vinha, sim. Muito pouco. Também com vida e casa no Rio, o que fazer aqui?

 

A desembargadora não convivia com as filhas e não gostava deste convívio.

 

 A “Doutora” apareceu uma única vez para acompanhar seu novo marido, dizem que o 20º. em turismo pelo Amazonas. E deu um pulo aqui. Um pulo, bateu o pé, reclamou dos carapanãs e, um dia depois, já desembarcavam em Nova York.

 

Era um holandês brancão e cuja brancura, suada, fedia mais que preto sem tomar banho um mês.

 

Na casa, Adalgisa, Gisa, segundo a menina Cris, tornara-se uma mãe para sua desembargadora.

 

O nome da desembargadora?

 

Não sei.

 

Talvez, por isso, aqui todo mundo só conhece a dona Vanda como a “Doutora”. É como ela quer ser chamada e como ela se apresenta sempre.

 

- Doutora.

 

A desembargadora morreu no colo da empregada, da escrava, Adalgisa.  

 

Na sequência, apareceu a filha do Rio, que não veio ao enterro e nem na missa de 7º. dia e nem na de 30º. dia.

 

A filha do Rio assumiu a casa, sua herança. Vendeu-a, imediatamente.

 

Os paulistas, que se apresentavam como compradores do casarão, orientados por um advogado de São Leopoldo, depositaram bas parcelas da compra da casa em juízo. Era um inventário e a herdeira estrangeira, a Doutora, não aparecia.

 

Um dia, ela apareceu.

 

Seu 36º. marido era advogado também e carioca. E o 36º. trouxe a mãe, sogra da doutora, para morar com a Adalgisa, naquela casa.

 

A venda contestada, ela, a Doutora, estava disposta a desfazer o negócio e tomar a casa.

 

Ficaram uns tempos, Adalgisa e a sogra, na Pousada da Luana e quando os paulistas viajaram, a Doutora, que estava de vigia no movimento da casa, o 36º. Marido e a sogra invadiram a casa. Colocaram todos as tralhas dos paulistas numa das garagens e em um grande cômodo.

 

Isto já tem mais de dois anos. O impressionante, os paulistas não apareceram nem em São Leopoldo e nem na capital, São Luís. Tudo deles ainda está na garagem e no cômodo.

 

A mãe do 36º. o marido com Alzheimer recebia o mesmo carinho e cuidado que Adalgisa, a boa escrava negra, deu à desembargadora.

 

Num período em que Adalgisa saiu da casa, levada pela filha, a Doutora e o 30º. marido decidiram colocar a sogra em um asilo. Ela recusou. Recusava com veemência.

 

A sogra tinha uma pensão do ex-marido um almirante da Marinha brasileira e dois apartamentos alugados, um no Rio e outro em Cabo Frio, queria ficar em uma pousada, no nível da Pousada da Luana e com uma enfermeira.

 

 O filho, advogado carioca, 30º. Marido, achou caro o asilo em São Leopoldo. Dias depois, colocou a mãe em um asilo público. Ela não sabe de nada mais, dizia, justificando sua decisão de reduzir gastos. A Doutora concordou.

 

Isto não durou muito. O advogado, carioca, sumiu. Adalgisa nunca mais apareceu. A filha de Adalgisa teria mandado uma carta explicando porque sua mãe não voltaria. A carta nunca teria sido aberta, segundo uma das faxineiras.

 

A Doutora fala em transformar a casa num hotel 5 estrelas ou em uma pousada de alto nível enquanto busca o seu 52º. marido.

 

52º. marido?  Você está brincando.

 

Não é sério. Vi o fichário dos maridos. Ela explica porque casar, pois casou com todos os 51.

 

Por que?

 

Imagine, falo porque eu vi, eu li, a Doutora me mostrou: só do holandês ela recebe uma pensão de quase dez mil euros.