quarta-feira, 22 de julho de 2015

A LIÇÃO DE VIEIRA



                    



O Amado é  O Ignorado


Antônio Vieira (*)



Sciens et Nescis



Cristo amou sabendo: Sciens Jesus (Jo. 13,1), e advirta-se, diz Cristo, que os homens foram amados ignorando: Tu nescis (Jo. 13, 7).


Só Cristo amou finamente, porque amou sabendo: Sciens, e só os homens foram finamente amados, porque foram amados ignorando: Nescis.

Unindo-se porém, e trocando-se de tal sorte o sciens com o nescis, e o nescis com o sciens, que, estando a ignorância da parte dos homens e a ciência da parte de Cristo, Cristo amou sabendo como se amara ignorando, e os homens foram amados ignorando como se foram amados sabendo.

Vá agora o amor destorcendo estes fios.

Só Cristo amou, porque amou sabendo.

O que vulgarmente se chama amor, nunca chega à idade da razão, e por isso os sábios no-lo pintam sempre menino.

A ignorância, no amor, diminui o merecimento

No mundo, e entre os homens, isto que vulgarmente se chama amor não é amor, é ignorância.


Pintaram os antigos ao amor menino, e a razão, dizia eu o ano passado, que era porque nenhum amor dura tanto que chegue a ser velho.

Mas esta interpretação tem contra si o exemplo de Jacó com Raquel, o de Jônatas com Davi, e outros grandes, inda que poucos.


Pois se há também amor que dure muitos anos, por que no-lo pintam os sábios sempre menino?


Desta vez cuido que hei de acertar a causa.


Pinta-se o amor sempre menino, porque, ainda que passe dos sete anos, como o de Jacó, nunca chega à idade da razão.


Usar da razão e amar são duas coisas que não se ajuntam.


A alma de um menino que vem a ser?


Uma vontade com afetos, e um entendimento sem uso.


Tal é o amor vulgar.


Tudo conquista o amor quando conquista uma alma; porém o primeiro rendido é o entendimento.


Ninguém teve a vontade febricitante, que não tivesse o entendimento frenético.


O amor deixará de variar, se for firme, mas não deixará de tresvariar, se é amor.


Nunca o fogo abrasou a vontade que o fumo não cegasse o entendimento.


Nunca houve enfermidade no coração que não houvesse fraqueza no juízo.


Por isso os mesmos pintores do amor lhe vendaram os olhos.


E como o primeiro efeito, ou a última disposição do amor, é cegar o entendimento, daqui vem que isto, que vulgarmente se chama amor; tem mais partes de ignorância; e quantas partes tem de ignorância, tantas lhe faltam de amor.


Quem ama porque conhece, é amante; quem ama porque ignora, é néscio.


Assim como a ignorância na ofensa diminui o delito, assim no amor diminui o merecimento.


Quem ignorando ofendeu, em rigor não é delinqüente.


Quem ignorando amou, em rigor não é amante.

É tal a dependência que tem o amor destas duas suposições, que o que parece fineza, fundado em ignorância, não é amor, e o que não parece amor, fundado em ciência, é grande fineza.

Quatro ignorâncias podem concorrer em um amante, que diminuam muito a perfeição e merecimento de seu amor.



(1)        Ou porque não se conhecesse a si,

(2)        ou porque não conhecesse a quem amava,

(3)        ou porque não conhecesse o amor,

(4)        ou porque não conhecesse o fim onde há de parar amando.



Se não se conhecesse a si, talvez empregaria o seu pensamento onde o não havia de pôr, se se conhecera.


Se não conhecesse a quem amava, talvez quereria com grandes finezas a quem havia de aborrecer, se o não ignorara.


Se não conhecesse o amor, talvez se empenharia cegamente no que não havia de empreender, se o soubera.


Se não conhecesse o fim em que havia de parar amando, talvez chegaria a padecer os danos a que não havia de chegar, se os previra.


Todas estas ignorâncias, que se acham nos homens, em Cristo foram ciências, e em todas e cada uma crescem os quilates de seu extremado amor.


Conhecia-se a si, conhecia a quem amava, conhecia o amor, e conhecia o fim onde havia de parar amando.


Conhecia-se a si, porque sabia que não era menos que Deus, Filho do Eterno Padre: Sciens quia a Deo exivit[1][9].


Conhecia a quem amava, porque sabia quão ingratos eram os homens, e quão cruéis haviam de ser para com ele: Sciebat enim para com ele: Sciebat enim quisnam esset, qui traderet eum[2][10].


Conhecia o amor, e bem à custa do seu coração, pela larga experiênciado que tinha amado: Cum dilexisset suos[3][11].


Conhecia finalmente o fim em que havia de parar amando, que era a morte, e tal morte: Sciens quia venit hora ejus[4][12].
E que, conhecendo-se Cristo a si, conhecendo a quem amava, conhecendo o amor, e conhecendo o fim cruel em que havia de parar amando, amasse contudo?


Grande excesso de amor: In finem dilexit!


Primeiramente, foi grande o amor de Cristo porque nos amou conhecendo-se: Sciens quia a Deo exivit (Jo. 13, 3). Que conhecendo-se Cristo a si nos amasse a nós, grande e desusado amor!


Enquanto Paris, ignorante de si e da fortuna de seu nascimento, guardava as ovelhas do seu rebanho nos campos do Monte Ida, dizem as histórias humanas que era objeto dos seus cuidados Enone, uma formosura rústica daqueles vales.


Mas quando o encoberto príncipe se conheceu e soube que era filho de Príamo, rei de Tróia, como deixou o cajado e o surrão, trocou também de pensamento.


Amava humildemente enquanto se teve por humilde; tanto que conheceu quem era, logo desconheceu a quem amava. Como o amor se fundava na ignorância de si, o mesmo conhecimento que desfez a ignorância acabou também o amor.


Desamou príncipe, o que tinha amado pastor, porque como é falta de conhecimento próprio nos pequenos levantar o pensamento, assim é afronta da fortuna nos grandes abater o cuidado.


Ah! Príncipe da glória, que assim parece vos havia de suceder convosco, mas não foi assim!


Se Cristo não se conhecera, não fora muito que nos amasse; mas amar-nos conhecendo-se foi tal excesso, que parece que o mesmo amar-nos foi desconhecer-se.

Disse uma vez a Esposa dos Cantares a seu Esposo, que o amava muito: Quem diligit anima mea[5][13]. E ele, que lhe responderia? Si ignoras te, o pulcherrima inter mulieres (Cân.1, 7): Formosíssima de todas as  mulheres, desconheceis-vos?

— Notável resposta! De maneira que quando a Esposa afirma ao Esposo que o ama, o Esposo pergunta à Esposa se se desconhece:

Si ignoras te? Esposo discreto e amado, que modo de responder é esse, e que conseqüência tem esta vossa resposta?

Quando a Esposa vos assegura o seu amor, vós duvidais-lhe o seu conhecimento, e, quando afirma que vos ama, perguntais-lhe se se desconhece:

Si ignoras te? Sim. Porque conforme a alta estimação que o Esposo fazia dos merecimentos da Esposa, afirmar ela que o amava tanto era grande razão para duvidar se se não conhecia.

Como se dissera o Esposo: Vós dizeis que me amais: Quem diligit anima mea? Pois eu vos digo que vos não conheceis:

Si ignoras te, o pulcherrima. Porque, se vos conheceis a vós, como é possível que me ameis a mim?

Foi necessário que a vós vos faltasse o conhecimento, para que a mim me sobejasse a ventura. O amor de minha indignidade vem a parecer ignorância de vossa grandeza:

Si ignoras te, porque se não deixareis de vos conhecer, como vos abateríeis a me amar?




(*) Toim. Antônio Vieira, padre Vieira. Toim, lá na Bahia, filho de tia Donana, também foi padre e é conhecido por estas falas arrevesadas e dizem cultas, latinadas. Tudo dele, embora dos primeiros tempos de cá, são mais de 20 volumes em papel bíblia, tem até uma História do Futuro, coisa de baiano atrevido. Viu aí. Ele fala de amor com sabedoria. Sua descendência aqui e no alto mar e lá, no além mar, é grande cara e chegou até agora. Este cara bom demais sabia como poucos de Amor, de Amar e de Ser Amado. Conferiu?