quarta-feira, 22 de julho de 2015

NO ESPELHO



"O jogador de xadrez de Maelzel"



Meu Verdadeiro Medo




Heraldo Gomes, geógrafo


“Sinto terror de mim, mais que do mundo

Que matéria me ergueu, que astro mau?”

Murilo Mendes




Eu aterrorizo-me

surpreendo-me à distância

quando olho meu retrato

(sempre os mais recentes).

Aterrorizo-me no gesto impiedoso

Tenho medo de mim mesmo

Medo de encontrar-me comigo

De dobrar uma esquina e de repente

estar frente a frente comigo mesmo

Eu e eu

Ou eu e o meu pensamento

Eu e o meu passado

Ou eu e o meu futuro

Medo de acordar-me ao meu lado

de virar e dar de frente comigo mesmo

Eu e o monstro que sou eu

Ou eu e o belo que eu sou

Ou eu e o menino que sempre sou

De repente não mais de que repente

abro a porta,

depois de ouvir uma campainha

que só eu ouvi, e eu mesmo estou ali,

paradão, sério

(sempre com um sorriso escondido)

pedindo passagem

- Posso entrar?

Como negar a mim mesmo

o acesso às raízes

à casa, à sala

Olho e no rosto

o que vejo?

(não é bem um retrato 

ou um clone 

ou um filho)

Não mudei nada.

- Um belo exemplar de velhaco!

Irônico, debochado,

indiferente, irresponsável,

cá estou eu e eu

(Já me percebo um terceiro 

a observar os dois eus).

- Seu nome (deveria perguntar?)

Penso no sentido do nome para mim 

e para um outro homem

Não há sentido

Há desviacionismo, há maldade, 

há tergiversação

Homem não tem nada a ver, sempre, 

sempre, com o homem

Devo então perguntar

- O que você-eu quer?

Mas o que eu responderia 

para este eu que eu não soubesse.

Teatralmente um absurdo

ou uma conversa de palavras

Só olhar e só ser olhado, eu olho eu,

qual dos dois é o que faz esta observação:

o eu que abriu a porta 

ou o eu que pede passagem.

Assim, haveria eus espaciais

com marcação diversa no tempo

e no espaço desta cena

Haveria, então, dois eus;

por que não existiriam mais

eu plural, eu múltiplo?

Eu que aterrorizo-me

talvez pudesse sonhar em encontrar

tão perto ou tão longe

um eu que me empolgaria,

apaixonante, enlouquecedor,

um ser bom,

um ser feliz.




“Quando me olho, tantas formas palpo

Que o tempo suscitou para me plasmar.
...
Vejo-me estranho a mim, à minha voz,

Ao meu silêncio, ao meu andar e gesto”.




(Conhecimento, in Parábola de Murilo Mendes)