quinta-feira, 23 de julho de 2015

QUEIMADAS








ELA SOBREVIVEU

AO FOGO E À FUMAÇA




Relato de Elisa Kashinura




Trópico de Capricórnio,  pouco depois do meio dia, o sol é forte. A temperatura passa de 35 graus. O vento ameniza o clima, se há vento. Raro há.

Saíramos do nordeste do Estado de Minas Gerais e atravessávamos o sul do Estado da Bahia, pela Rio-Bahia, BR-116.

 Entrávamos numa área de umidade alta em meio à mata seca e ao mato queimado.  Recentemente queimado. Terra devastada.

Do mato, vem o cheiro seco do assa-peixe, cheiro amarelo de folhagens secas e amareladas.

Vinham também do mato, a imagem da desolação e a imagem de campo abandonado.

Áreas imensas destruídas pelo machado e depois pelo fogo.

Aqui e ali, restos de árvores imensas. Paus imensos, subindo ao céu azul e limpo. Árvores sem folhas, sem galhos. Poste nascido da terra e afinado no topo, consumido pelo fogo, com partes negras e ainda um pouco do seu verde, verde escuro. Paus pretos imensos. Sobreviventes? Cadáveres vegetais? Inúteis, abandonados.

Em todos os lugares, o que há é plantações de carvão, tocos de um metro de altura negros como tição, carvão puro. Como se aquelas toras de carvão surgissem do chão, nascessem do chão negras, sinaleiras apontadas para o céu.
           

A pele recebia o sol, o suor, aqueles cheiros e a fuligem impregnavam-se no corpo e na alma.

Tudo isso confundia e ainda confunde minhas memórias de mulher viajando naquela estrada e no sonho da nossa pequena família em direção à nova residência e ao trabalho.

Confuso e contraditório o sentimento. Eu sentia prazer. Via a beleza do céu de poucas nuvens. Sentia alegria com a luminosidade, com toda a claridade e queria estar ali mais tempo, percorrer caminhando aqueles espaços amplos e devastados. O relógio marcava 13h32m. O som do rádio, ligado, baixo, era abafado pelos sons do motor do carro. Até o som do vento contra o carro era, às vezes, maior do que o som do rádio.

A estrada coberta por um asfalto velho, mal cuidada, detinha recordes de acidentes e um dos tráfegos mais intensos do país, pois a BR-116 é uma das maiores estradas brasileiras e, inicialmente, ligava o Rio de Janeiro à Bahia, era a Rio-Bahia. Hoje a estrada percorre quase toda a região litorânea brasileira em seus 4.380 km, passando por dez Estados.

Estávamos no trecho do sul da Bahia, indo em direção à fábrica de celulose, em Ilhéus, onde meu marido assumiria um cargo de engenheiro-gerente.


Estrada com movimento intenso de carretas e sinalização precária. 



O asfalto brilha na distância onde se via o vapor subir. Era como se lá na frente fossemos chegar a um espelho, que sempre se afastava.

Era uma estrada pouco segura, com movimento intenso de carretas e sinalização precária. Haveria de se ter cuidados. Os cuidados normais em uma estrada onde se misturam as atividades da extração da madeira, da pecuária, da agricultura, do veraneio e do comércio ligando o norte e o sul do Brasil.
           

Naquela manhã, rodáramos algumas cidadezinhas nas proximidades da fábrica. Na região sul do Estado da Bahia, sudeste brasileiro, é grande a oferta de hotéis e pousadas. Tivemos tempo para escolher. Entramos em uma pequena cidade para localizar um amigo do meu marido. Não tínhamos endereço. Nada. Só o nome da cidade. Era apenas uma rua circular, em que o círculo não fechava. Sem demora, encontramos a casa.


Depois do almoço, a estrada de novo. Era o tempo que nos restava.


Época de queimadas, várias vezes passamos por nuvens de fumaça. Claro ficava para nós que aquele tempo de queimadas não se tratava de apenas uma temporada. A destruição deveria ter alguns anos tamanha era a devastação e entrávamos no meio de mais uma grande queimada.

Geralmente, eram pequenas nuvens e rapidamente as ultrapassávamos. As cortinas negras e densas desapareciam até nas retas. Surgiam e acabavam. Entrávamos no escuro, sem nenhuma visão da estrada, diminuíamos a velocidade. A nuvem negra acabava.
       

Com essa expectativa entramos em uma nova nuvem negra e densa. Foi quando aconteceu a tragédia. A nuvem não acabava. Começamos a tossir.

“Fechem os vidros”.

Gritou meu marido.

O calor, já forte, aumentou com a queimada. Aumentou mais ainda com os vidros fechados. Eu não via nada na minha frente. A nuvem negra não saía e, ao contrário de antes, percebíamos o fogo muito mais próximo. Os sons da queimada são nítidos e os estalos da madeira também.

Olhei para o lado, também não enxergava nada. O escuro entrou no carro. Atrás, minha filha passava mal e vomitava.

Ele começou a vomitar segurando o volante com dificuldade. Estávamos nos  intoxicando e com dificuldade para respirar. Discutimos o que fazer e resolvemos parar o carro e abandoná-lo.

O carro podia explodir. O fogo subia muito próximo de nós, dos dois lados da estrada.

Com muito cuidado, não enxergando nada, ele parou o carro, um Del Rey, no acostamento.

Meu marido pediu para que eu o esperasse. Ele sairia primeiro. Saiu do carro para dar a volta e abrir a porta do meu lado, pois eu queimara a mão ao tentar abrir a porta. . Aquele tempo foi um tempo longo demais. Não esperei, não consegui esperar, sai e tirei minha menina. Fiquei atrás do carro. Ele veio em minha direção.

Estávamos agachadas, pois a menina vomitava muito. Ele encostou-se do meu lado e eu ouvi um barulho e um impacto violento. Senti que a pancada fora uma pancada violenta. Tudo muito rápido acontecendo ali do meu lado.


Um Fiat vermelho, 147, velho, batera no nosso carro no acostamento, em alta velocidade e atropelara meu marido, arrancando-o do meu lado. Gritei e fui procurá-lo.

Eu gritava,

“Bem, Bem”

Não ouvia nenhuma resposta. Na minha frente surgiu um homem de braços abertos, ensangüentado, pedindo socorro,

“Me salve, me ajude, me socorra, dona”.

Vi no meio do asfalto, na faixa amarela, o corpo do meu marido.

Corri dentro daquela zona escura na direção em que eu o havia visto.

Minha menina corria atrás de mim. Era loucura. Era o desespero. Tinha que tirá-lo dali. Ele pesava 75 quilos. Seu pé estava afastado da perna. As duas pernas com fraturas expostas. Bati no rosto dele.

“Acorda, acorda” até despertá-lo.

“O que aconteceu, bem?”

“Não aconteceu nada. Eu não sinto minhas pernas”.

“Você quebrou as pernas, fique calmo. Vamos procurar socorro”.

Conversávamos. Falávamos. Falávamos. Tentava convencê-lo de algo que, hoje, entendo, só o meu sentimento de força interior, o meu amor, me fazia acreditar e me dava forças para fazer tudo o que eu fazia e para acreditar em tudo o que eu acreditava e para superar-me naquela hora. Não consegui arrastá-lo do meio do asfalto.

O homem do Fiat sumiu gritando por socorro. Já não ouvia mais o seu grito de dor e de medo. O perigo continuava. Naquele trecho passavam muitas carretas. Até agora nenhuma apareceu.

Muitos conhecem aqueles incêndios e sabem as nuvens que devem evitar.

Meu marido fez um esforço muito grande e com as mãos apoiando no asfalto puxou seu corpo para fora do meio da pista, ajudado por mim e pela nossa filha. Eu amarrei o pé solto com a calça jeans.

Durante algum tempo, com minha filha correndo atrás de mim fiquei desesperada e corria de um lado para o outro. Um tempo interminável é o tempo do desespero, do abandono e da loucura.

Quando percebi o perigo e  a loucura que fazia, voltei pela estrada. As pessoas que entraram na fumaça já paravam seus carros, cautelosas com a fumaça.

Pedi socorro a duas pessoas num Gol.

O carro diminuiu a velocidade e continuou. Recusaram.  Não parariam. Vi seus olhares de medo e de desespero.

Depois, muitas pessoas apareceram para ajudar. Não podia colocá-lo em um carro pequeno. Ele não podia dobrar as pernas. Numa caminhoneta, transportamo-lo para uma cidade sem recursos. Levamos para um lugar onde tinha ortopedista. Pouco podia ser feito.

Ele permanecia lúcido e a empresa mandou uma ambulância e um avião para o socorro. Com a pancada causada pela batida do Fiat, um pulmão foi destruído. No avião, ele morreu.

Eu olhava para o seu rosto e para o céu, para as nuvens, para a beleza daquelas imagens, olhei e vi que em seu rosto sempre cheio de alegria e ternura, ainda havia muita ternura, uma ternura que nossos corpos machucados, sujos, queimados e o meu corpo dolorido guardariam para sempre.

Quando vieram nos tirar do avião, ouvia as pessoas falando, os carros, o barulho do movimento das pessoas e da ambulância.

Ouvia e via. Mais nada.

Eram apenas olhares, o rosto das pessoas eram apenas olhares. Fiquei mais de um ano com amnésia total. Este acidente foi há três anos, a nossa filha mais velha tem agora 13 anos e a mais nova 6 anos.

É duro você ver morrer a pessoa que você ama.

Aquela região devastada pelo fogo, pelas queimadas e pela fumaça nunca mais saíram dos meus olhos e em quase todas as manhãs quando abro os olhos são as primeiras imagens que vejo. 




(A prova já havia terminado e Elisa Kashinura, seu nome de casada, era aluna do curso de Economia. Ela acabara seu relato e em momento nenhum alterou sua expressão tranquila. Naquele canto da sala imensa, ainda permanecíamos, um pequeno grupo de alunos. O silêncio a acompanhou. Não disse mais nada, nenhuma palavra e com um olhar despediu. Ninguém disse nada. Era a última aula do ano letivo. Os corredores da universidade vazios. Lá fora, a noite tinha a iluminação do estacionamento. Ela pegaria a  estrada de volta à sua cidade).






 
A BR-116, em seus 4.380 km, passa por dez Estados.