ELA SOBREVIVEU
AO FOGO E À FUMAÇA
Relato de Elisa Kashinura
Trópico
de Capricórnio, pouco depois do meio dia,
o sol é forte. A temperatura passa de 35 graus. O vento ameniza o clima, se há
vento. Raro há.
Saíramos
do nordeste do Estado de Minas Gerais e atravessávamos o sul do Estado da
Bahia, pela Rio-Bahia, BR-116.
Entrávamos numa área de umidade alta em meio à
mata seca e ao mato queimado. Recentemente queimado. Terra devastada.
Do
mato, vem o cheiro seco do assa-peixe, cheiro amarelo de folhagens secas e
amareladas.
Vinham
também do mato, a imagem da desolação e a imagem de campo abandonado.
Áreas
imensas destruídas pelo machado e depois pelo fogo.
Aqui
e ali, restos de árvores imensas. Paus imensos, subindo ao céu azul e limpo.
Árvores sem folhas, sem galhos. Poste nascido da terra e afinado no topo,
consumido pelo fogo, com partes negras e ainda um pouco do seu verde, verde
escuro. Paus pretos imensos. Sobreviventes? Cadáveres vegetais? Inúteis, abandonados.
Em
todos os lugares, o que há é plantações de carvão, tocos de um metro de altura
negros como tição, carvão puro. Como se aquelas toras de carvão surgissem do
chão, nascessem do chão negras, sinaleiras apontadas para o céu.
A
pele recebia o sol, o suor, aqueles cheiros e a fuligem impregnavam-se no corpo
e na alma.
Tudo
isso confundia e ainda confunde minhas memórias de mulher viajando naquela
estrada e no sonho da nossa pequena família em direção à nova residência e ao
trabalho.
Confuso
e contraditório o sentimento. Eu sentia prazer. Via a beleza do céu de poucas
nuvens. Sentia alegria com a luminosidade, com toda a claridade e queria estar
ali mais tempo, percorrer caminhando aqueles espaços amplos e devastados. O
relógio marcava 13h32m. O som do rádio, ligado, baixo, era abafado pelos sons
do motor do carro. Até o som do vento contra o carro era, às vezes, maior do
que o som do rádio.
A
estrada coberta por um asfalto velho, mal cuidada, detinha recordes de
acidentes e um dos tráfegos mais intensos do país, pois a BR-116 é uma das
maiores estradas brasileiras e, inicialmente, ligava o Rio de Janeiro à Bahia,
era a Rio-Bahia. Hoje a estrada percorre quase toda a região litorânea brasileira
em seus 4.380 km, passando por dez Estados.
Estávamos
no trecho do sul da Bahia, indo em direção à fábrica de celulose, em Ilhéus,
onde meu marido assumiria um cargo de engenheiro-gerente.
Estrada com movimento intenso de carretas e sinalização precária. |
O
asfalto brilha na distância onde se via o vapor subir. Era como se lá na frente
fossemos chegar a um espelho, que sempre se afastava.
Era
uma estrada pouco segura, com movimento intenso de carretas e sinalização
precária. Haveria de se ter cuidados. Os cuidados normais em uma estrada onde
se misturam as atividades da extração da madeira, da pecuária, da agricultura,
do veraneio e do comércio ligando o norte e o sul do Brasil.
Naquela
manhã, rodáramos algumas cidadezinhas nas proximidades da fábrica. Na região
sul do Estado da Bahia, sudeste brasileiro, é grande a oferta de hotéis e
pousadas. Tivemos tempo para escolher. Entramos em uma pequena cidade para
localizar um amigo do meu marido. Não tínhamos endereço. Nada. Só o nome da
cidade. Era apenas uma rua circular, em que o círculo não fechava. Sem demora,
encontramos a casa.
Depois
do almoço, a estrada de novo. Era o tempo que nos restava.
Época
de queimadas, várias vezes passamos por nuvens de fumaça. Claro ficava para nós
que aquele tempo de queimadas não se tratava de apenas uma temporada. A
destruição deveria ter alguns anos tamanha era a devastação e entrávamos no
meio de mais uma grande queimada.
Geralmente,
eram pequenas nuvens e rapidamente as ultrapassávamos. As cortinas negras e
densas desapareciam até nas retas. Surgiam e acabavam. Entrávamos no escuro,
sem nenhuma visão da estrada, diminuíamos a velocidade. A nuvem negra acabava.
Com
essa expectativa entramos em uma nova nuvem negra e densa. Foi quando aconteceu
a tragédia. A nuvem não acabava. Começamos a tossir.
“Fechem
os vidros”.
Gritou
meu marido.
O
calor, já forte, aumentou com a queimada. Aumentou mais ainda com os vidros
fechados. Eu não via nada na minha frente. A nuvem negra não saía e, ao
contrário de antes, percebíamos o fogo muito mais próximo. Os sons da queimada
são nítidos e os estalos da madeira também.
Olhei
para o lado, também não enxergava nada. O escuro entrou no carro. Atrás, minha
filha passava mal e vomitava.
Ele
começou a vomitar segurando o volante com dificuldade. Estávamos nos intoxicando e com dificuldade para respirar.
Discutimos o que fazer e resolvemos parar o carro e abandoná-lo.
O
carro podia explodir. O fogo subia muito próximo de nós, dos dois lados da
estrada.
Com
muito cuidado, não enxergando nada, ele parou o carro, um Del Rey, no
acostamento.
Meu
marido pediu para que eu o esperasse. Ele sairia primeiro. Saiu do carro para
dar a volta e abrir a porta do meu lado, pois eu queimara a mão ao tentar abrir
a porta. . Aquele tempo foi um tempo longo demais. Não esperei, não consegui
esperar, sai e tirei minha menina. Fiquei atrás do carro. Ele veio em minha
direção.
Estávamos
agachadas, pois a menina vomitava muito. Ele encostou-se do meu lado e eu ouvi
um barulho e um impacto violento. Senti que a pancada fora uma pancada
violenta. Tudo muito rápido acontecendo ali do meu lado.
Um
Fiat vermelho, 147, velho, batera no nosso carro no acostamento, em alta
velocidade e atropelara meu marido, arrancando-o do meu lado. Gritei e fui
procurá-lo.
Eu
gritava,
“Bem,
Bem”
Não
ouvia nenhuma resposta. Na minha frente surgiu um homem de braços abertos,
ensangüentado, pedindo socorro,
“Me
salve, me ajude, me socorra, dona”.
Vi
no meio do asfalto, na faixa amarela, o corpo do meu marido.
Corri
dentro daquela zona escura na direção em que eu o havia visto.
Minha
menina corria atrás de mim. Era loucura. Era o desespero. Tinha que tirá-lo
dali. Ele pesava 75 quilos. Seu pé estava afastado da perna. As duas pernas com
fraturas expostas. Bati no rosto dele.
“Acorda,
acorda” até despertá-lo.
“O
que aconteceu, bem?”
“Não
aconteceu nada. Eu não sinto minhas pernas”.
“Você
quebrou as pernas, fique calmo. Vamos procurar socorro”.
Conversávamos.
Falávamos. Falávamos. Tentava convencê-lo de algo que, hoje, entendo, só o meu
sentimento de força interior, o meu amor, me fazia acreditar e me dava forças
para fazer tudo o que eu fazia e para acreditar em tudo o que eu acreditava e
para superar-me naquela hora. Não consegui arrastá-lo do meio do asfalto.
O
homem do Fiat sumiu gritando por socorro. Já não ouvia mais o seu grito de dor
e de medo. O perigo continuava. Naquele trecho passavam muitas carretas. Até
agora nenhuma apareceu.
Muitos
conhecem aqueles incêndios e sabem as nuvens que devem evitar.
Meu
marido fez um esforço muito grande e com as mãos apoiando no asfalto puxou seu
corpo para fora do meio da pista, ajudado por mim e pela nossa filha. Eu
amarrei o pé solto com a calça jeans.
Durante
algum tempo, com minha filha correndo atrás de mim fiquei desesperada e corria
de um lado para o outro. Um tempo interminável é o tempo do desespero, do
abandono e da loucura.
Quando
percebi o perigo e a loucura que fazia,
voltei pela estrada. As pessoas que entraram na fumaça já paravam seus carros,
cautelosas com a fumaça.
Pedi
socorro a duas pessoas num Gol.
O
carro diminuiu a velocidade e continuou. Recusaram. Não parariam. Vi seus olhares de medo e de
desespero.
Depois,
muitas pessoas apareceram para ajudar. Não podia colocá-lo em um carro pequeno.
Ele não podia dobrar as pernas. Numa caminhoneta, transportamo-lo para uma
cidade sem recursos. Levamos para um lugar onde tinha ortopedista. Pouco podia
ser feito.
Ele
permanecia lúcido e a empresa mandou uma ambulância e um avião para o socorro.
Com a pancada causada pela batida do Fiat, um pulmão foi destruído. No avião,
ele morreu.
Eu
olhava para o seu rosto e para o céu, para as nuvens, para a beleza daquelas
imagens, olhei e vi que em seu rosto sempre cheio de alegria e ternura, ainda havia
muita ternura, uma ternura que nossos corpos machucados, sujos, queimados e o
meu corpo dolorido guardariam para sempre.
Quando
vieram nos tirar do avião, ouvia as pessoas falando, os carros, o barulho do
movimento das pessoas e da ambulância.
Ouvia
e via. Mais nada.
Eram
apenas olhares, o rosto das pessoas eram apenas olhares. Fiquei mais de um ano
com amnésia total. Este acidente foi há três anos, a nossa filha mais velha tem
agora 13 anos e a mais nova 6 anos.
É
duro você ver morrer a pessoa que você ama.
Aquela
região devastada pelo fogo, pelas queimadas e pela fumaça nunca mais saíram dos
meus olhos e em quase todas as manhãs quando abro os olhos são as primeiras
imagens que vejo.
(A prova
já havia terminado e Elisa Kashinura, seu nome de casada, era aluna do curso de
Economia. Ela acabara seu relato e em momento nenhum alterou sua expressão tranquila.
Naquele canto da sala imensa, ainda permanecíamos, um pequeno grupo de alunos.
O silêncio a acompanhou. Não disse mais nada, nenhuma palavra e com um olhar
despediu. Ninguém disse nada. Era a última aula do ano letivo. Os corredores da
universidade vazios. Lá fora, a noite tinha a iluminação do estacionamento. Ela
pegaria a estrada de volta à sua
cidade).