Na Fazenda
Justo Rivaldáver
Busco
entender o meu pai. Busco com muita angústia entendê-lo e para mim sempre foi
difícil. Eu não consigo. Eu não conheço o meu pai. Quando penso na nossa
convivência, vou lá na infância e capto-o no seu gabinete dentário,na avenida
Getúlio Vargas, a principal avenida da cidade.
Em
meio àquela parafernália de equipamentos, sua cadeira de dentista, seu
equipamento de raio-x e pequena e impressionante salinha onde trabalhava com
próteses. O cheiro do material químico e a própria prótese atraiam-me a
imaginação, via o que, em meio a toda aquela quantidade de massas, moldes,
misturas, saia dali.
Era
o meu encanto e mais tarde a história da palavra protético seduziu-me mais
ainda, a palavra e o deus, Proteu, todas as possibilidades e mistérios das
mudanças e das mutações. Nunca ser o mesmo e o que foi ser a perfeição – a prótese.
Sempre
ouvia as pessoas conversarem sobre as dentaduras feitas pelo meu pai. Eram
elogios ao seu trabalho profissional. Deixavam-me orgulhoso. Suas dentaduras
eram perfeitas e duradouras.
No
seu mundo, no gabinete dentário, ele era perfeito e competente segundo o povo
da cidade. Muitos exaltavam o seu pioneirismo, contavam a longa e complicada história
da vinda do aparelho de raio-x, adquirido na década de 1930 da Alemanha. A
Colônia Alemã de Teófilo Otoni divulgava os feitos industriais e tecnológicos e
o equipamento que ocupava grande parte da sala era a prova real da competência
e do pioneirismo do povo alemão, em franca recuperação depois da 1ª. Grande
Guerra.
Depois
de ter abandonado a sua profissão para se dedicar por algumas décadas à
política, ele volta ao consultório. Uma volta que o fez também retornar aos
bancos universitários para atualizar e conhecer os avanços tecnológicos da
odontologia. Outra vez, ali estava ele trabalhando com a mesma desenvoltura e
afinco. Era a década de 1960, a política mudara com a chegada dos militares ao
poder. Antes, dedicou-se como fazendeiro
e líder ruralista. O garimpo o atraiu, soube se afastar das catas na hora
certa.
Ora
o encontrava, com mais coleções de lances de pioneirismo, à frente da liderança
dos fazendeiros criou a associação rural, cooperativas, trouxe para a cidade
especialistas formados nas universidades agrárias – lembro-me dos primeiros
agrônomos e veterinários. Sua grande obra com o amigo Meusinho Gazinelli: o
parque de exposições da Pampulhinha, em Teófilo Otoni.
Em
Pavão, onde ficava a nossa fazenda, ele implantou, mais uma vez pioneiro, a luz
elétrica com um motor gerador a querosene. Na fazenda, construiu seu primeiro
laticínio, e, em Teófilo Otoni, participou da criação do Frimusa, Frigorífico
do Mucuri SA.
Espreitando-o,
observava-o nas discussões políticas – e procurava entender as intervenções
preocupadas da minha mãe. Por que a política era tão complexa para as pessoas?
O que a política tinha de diferente? Era a década de 50 e eu procurava o meu
pai. Minha mãe também.
“A
política é madrasta. É do céu ao inferno, sem purgatório”.
Não
entendia a oposição à política e registrava a resistência das famílias.
Hoje,
quando me pergunto sobre a paixão daquelas viagens para a fazenda, quando
viajávamos de jeep, esqueço do meu tormento, do meu grande sofrimento e
desespero Eram viagens sofridas, para mim. Muitas vezes não acreditava que
chegaria ao seu fim vivo, tão mal passava
vomitando tudo. Todos os cheiros eram insuportáveis, principalmente os
cheiros do jeep, da gasolina, do óleo, o cheiro da poeira, das roupas.
Todos
os cheiros provocavam o mal estar e, mesmo assim, era uma grande aventura. Um
passeio para meus pais e minhas irmãs. Uma grande batalha para mim. Uma batalha
para superar-me, uma luta e só resistência. Uma aventura no estômago e na
memória dos cheiros. Até mesmo o cheiro do vômito provocava-me vômito. Ficava
feliz quando passava a vomitar bílis. Agora não tinha mais nada para vomitar,
pensava. Engano, o estado de angústia e de sofrimento continuava. Buscava na
imaginação uma saída para tão poderoso mal estar, buscava na paisagem. De
repente, a paisagem provocava o vômito. Deveria olhar sempre para a frente. Era
a opinião de todos que não vomitavam: Nunca, jamais, olhar para os lados ou
para trás. Olhe sempre para frente, menino.
Verdadeiras
empreitadas, viagens de 80 quilômetros eram feitas, em condições normais, em
torno de 10/12 horas. Na época de chuva duravam três dias. A travessia de rios
e riachos eram lutas travadas por cordas, amarrações e balsas.
Meu
pai alegre e animado, em conversas demoradas, curtia cada minuto e não se
incomodava com a demora. Nem demonstrava cansaço.. Era o doutor Tito. Alegre,
observava como as pessoas gostavam de conversar e ouvir o doutor Tito.
Mais
tarde, ao ser chamado a atenção por Bá, um amigo de infância, sobre o
tratamento que eu dava ao meu pai, o que mais me impressionou na sua
argumentação foi a segurança e o tom da afirmativa categórica com que ele disse:
-
Seu
pai é um homem bom.
Um
homem bom.
Eu
não o olhava por aí. Ser bom, na minha cabeça, estaria na mesma ordem do que
ser honesto, ser verdadeiro. Ninguém deveria procurar ser bom. Ser bom, honesto,
verdadeiro deveria ser o natural da pessoa. Ele era um homem bom, sim. Isto
deveria ser o natural do seu, atributo inerente ao ser e ao viver, eu jamais me
questionei se deveria ou não ser bom, ser uma pessoa boa, solidária, amiga.
Para mim, todos os homens são bons, Bá era um homem bom, seu pai, um homem que
eu admirava e que vivia viajando no trabalho para sustentar a família, para mim
também era um homem bom.
Mas
quem era mesmo o meu pai?
Descobria
assim uma e outra faceta dele e o menino sempre de atalaia observando,
provocando. A minha grande aventura foi quando nós dois fomos sozinhos para a
fazenda e tive o meu primeiro choque: a galinha.
Chegáramos
esfomeados e vínhamos falando (todos eles falavam) da galinha preparada pela dona Jandira, a
cozinheira, o tempero de Jandira. Naquele dia, a viagem foi rápida, chegamos à
tarde, dia de sol, céu azul. Jandira trouxe a galinha. Comi a galinha quase
toda.
Quando
pai chegou para almoçar foi aquela bronca, uma senhora bronca. Dona Jandira ria
e serviu uma galinhada para mais dez homens.
-
Fiz maldade com o menino.
Para
dona Jandira, a minha fome não acabara. Não acabaria
-
Na cara dele, a fome era para devorar um boi.
Este
episódio marcou-me, pois nossa mesa sempre fora farta. Principalmente na
fazenda. Jamais se discutira por causa de comida e sempre comêramos à vontade e
com fartura... ainda mais galinha.
Ainda
nesta fase, outra surpresa com o pai brincalhão e debochado.
Procurava
informações sobre cinema e uma das correspondências sobre um curso de cinema
acabou entregue pelo correio na sede da associação rural.
Pai
estendeu-me a correspondência. “Quer fazer cinema?” Fiquei triste. Ele não gostava de cinema? Não
conseguia entender isto e não acreditava que fosse possível. Na paixão pelo
cinema, acompanhava a programação das três casas da cidade, o Cine Metrópole, o
Cine Vitória e o Cine Poeira. Para assistir às sessões do Poeira contava com a
proteção e a cumplicidade de Durvalina, a ajudante de cozinha.
Ela
também sabia da minha fome.
-
Conte a história.
Durvalina
gostava de me ouvir contar os filmes. Em seus olhos assistia mais uma sessão de
cinema.