quarta-feira, 18 de maio de 2016

A TROCA








Eu só queria telefonar



Eduardo Brasaglia




D´áprès
Gabriel Garcia Marques

1.


Na BR-040, pouco depois de Juiz de Fora em direção a Belo Horizonte, vi o carro dela aproximando-se, em alta velocidade. Apareceu no final da reta e cresceu. No pouco tempo em que ela ficou atrás de mim, pelo retrovisor a vi ansiosa, queria a ultrapassagem rápida.

Observei ainda: dormia ao seu lado o seu antigo amante. Bati os olhos. Reconheci, grande Marco Aurélio. Ela, hoje, vivia há já algum tempo, com um outro meu amigo Zé Oswaldo, meu ex-aluno na faculdade.

Ali, entretanto quem estava era o velho amante dela, o amante de sempre, Marco Aurélio, grande Marco Aurélio, com a barba tomando conta de toda a sua cara. Dormia o sono dos justos, tranquilo como sempre.

Ela ultrapassou-me. Isto foi logo depois da entrada para a siderúrgica Belgo Mineira, no caminho entre Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Era muita velocidade. No meu velocímetro estava a 120 quilômetros por hora. Ela fez a ultrapassagem a 140 ou 150km/h, por baixo.

Ela voava em seu carro potente e sumiu na minha frente.

Eu parei logo à frente, em uma lanchonete, tinha dois meninos no carro, voltando de férias. Meu ritmo era muito lento e, na estrada, mesmo na estrada principal, gostava de seguir os conselhos da Arte de Consertar Motocicletas. Tinha muito o que consertar e tinha o tempo de viver. Se o lugar insinuava-se, abria-se para mim, inventava uma desculpa e parava.

Dizia que era por causa do queijo, do pão com linguiça, outras para abastecer, outras que era para beber um cafezinho.

Aos poucos, as viagens se sucedendo, as explicações não eram mais necessárias e os meninos nem mais exigiam, a cumplicidade explodia, tudo era festa, simplesmente parávamos diante do que era belo, sugestivo ou instigante.

Paramos umas tantas vezes.

Talvez, por isso, quando chegamos no local do acidente, os dois já não estavam, foram resgatados. A polícia rodoviária orientava o trânsito, ainda lento, pedindo aos motoristas para continuarem suas viagens.

Ouvi que uma pessoa havia morrido, o motorista, que era um homem. Não entendi. Era ela quem dirigia. No outro dia, fiquei surpreso.

O jornal falava em apenas uma morte no capotamento. Eu estranhei a história do acidente relatada no jornal. O carro era dele. Ela entrara no noticiário como uma pessoa não identificada. Sabia-se que se tratava de uma mulher e que a motorista sobrevivente fora socorrida e levada para um hospital. O acidente foi no trecho nas imediações de Barbacena.



2.


O acidente. Alguns quilômetros antes de Barbacena, ela “ultrapassou a ambulância e ficou de frente com um caminhão, virou o volante para a direita e o carro capotou, uma, duas vezes e desceu morro abaixo, parando 30 metros do asfalto” segundo registro. O caminhão seguiu viagem e a ambulância parou.

“O que eu fiz?”

 Ela não entendia o acidente. Aquele carro jamais capotaria, depois veio o pensamento “voar baixo”.

Vamos voar baixo, disse Marco Aurélio, o barbudo, no Aeroporto Santos Dumont, depois que perderam o avião para BH. Tinham que chegar com hora marcada para ela encontrar-se com o belo Zé Oswaldo, seu belo ragazzo. Marco Aurélio protegia sempre a ex-amante, garantindo-a com o atual namorado.

O grande Marco Aurélio dizia que difícil não era passar uma mulher para trás, “difícil mesmo, dificílimo, era passar uma mulher para frente”.

Ria gostoso o grande Marco Aurélio, 120 quilos de alegria e de bom viver. Agora, ele estava morto, duas cabeças, cabeça rachada. Ela nem se certificou daquela morte. Estava na cara. Na cabeça partida. Mesmo assim, chegou a pegar no pulso. Mesmo com o air-bag a cabeça dele partira. Como?

Ela não conseguia entender embora sentisse uma forte dor de cabeça. Bateram as cabeças? Ela não entendia. Primeiro, não entendeu o acidente, por não associa-lo à velocidade, e agora não entendia a morte do bom amigo, por não saber a origem da pancada em suas cabeças.

O homem de branco, que saíra da ambulância, e que a socorria, perguntou-lhe algumas coisas e ela respondia outras diferentes. Eram perguntas e respostas desencontradas – ele perguntava por água e ela respondia que não tinha fogo.
O homem todo de branco entendeu que não adiantava socorrer o outro passageiro. Aproximou-se, por dever de ofício, olhou aquela cabeça rachada como se estivesse partido em duas, uma parte perdida.

“Morreu” disse baixinho imitando o humorista. “Mórrreu”.

A outra parte da cabeça deve estar atrás da cadeira, ele pensou. E levou a sobrevivente até a ambulância, abriu a parte de trás, onde estava uma paciente que dormia drogada por medicamentos.

“Eu só quero telefonar”. Três, quatro vezes. “Eu só quero telefonar”.

Explicou que a levaria até um telefone.

Ela não poderia seguir ao seu lado, no banco da frente, pois transportava duas grandes caixas de medicamentos controlados.

-         Dói a cabeça?
-          
-         Dói muito – ela se acomodou ao lado da mulher deitada na maca e abaixou a cabeça, desmaiando.

Ele olhou os medicamentos que trazia, abriu uma caixa e deu-lhe dois comprimidos.

-         Sua dor de cabeça vai passar rápido é uma aspirina – mentiu-lhe

Ele sabia apenas que o analgésico era uma das propriedades daquele medicamento, mais nada.

Ângela Cervantes de Saavedra, a sobrevivente, uma espanhola de 30 anos, conceituada pelo seu trabalho como curadora do Museu Santo Inácio de Arte Sacra, era famosa pelos seus amores passageiros.

“Jamais viveu mais de um ano com qualquer pessoa” registrou a revista Sempre, de variedades e notícias da sociedade. Ela não queria que Zé Oswaldo tivesse notícia do seu encontro no Rio com Marco Aurélio e nem de que ele cedeu o carro para levá-la de volta. Era disposição dele, voltar imediatamente para o Rio de Janeiro. “É bater e voltar na mesma hora”.

Assim, ela tentara chegar em Belo Horizonte dentro do horário em que chegaria o avião. Errara ao resolver voar baixo. Agora, com o acidente, precisava telefonar e avisar de que não chegaria a tempo de estarem na solenidade de inauguração da exposição de quadros medievais e do barroco no Palácio das Artes.

-         Você pode me conseguir um telefone?
-          
Lógico, respondeu o motorista, colocando-a na parte de trás da ambulância, onde transportava a mulher sedada. Ângela Cervantes de Saavedra se acomodou, segurando a cabeça. A dor aumentava. O remédio ainda não fizera efeito embora fosse um entorpecente forte – fato que o motorista dera pouca importância.

Logo que voltou para a ambulância, depois de buscar a bolsa de Ângela no carro, o motorista conferiu seu horário. Tinha pouco tempo para pegar o Manicômio Judiciário de Barbacena aberto, onde deveria deixar a mulher que estava deitada na maca. Era a sua vez de voar baixo.

A mulher deitada na maca era Maria Vicentina Ferreira da Silva, 42 anos, assassina. Matara o marido com dois golpes de foice.

Pelos laudos, tratava-se de uma mulher extremamente perigosa e valente, daí porque os médicos decidiram sedá-la para a viagem.

3.


Mudança de paciente. Alhuns minutos depois, ao abrir a porta traseira da ambulância, no Manicômio Judicial, susto e desespero tomaram conta do motorista.

A assassina fugira, ao lado da maca, desmaiada, a mulher acidentada. O motorista esquecera de trancar a porta. Não vacilou, puxou a prancheta com a identidade da assassina, deixou Ângela na maca e a entregou como Vicentina aos funcionários do Manicômio.

-         Muito bonita!
-          
-         Muito pe-ri-go-sa...

Acabou de falar, ajudou-os a colocá-la na maca do manicômio e a tirá-la. Fechou a ambulância e, temendo que o efeito do remédio passasse e ela despertasse, o motorista, com os papéis assinados, voltou para a estrada.

Entregara a mulher. Seu serviço encerrara-se de alguma forma.

4.

Aquele despertar jamais sairia da cabeça de Ângela Cervantes, a Saavedra, nos seus trinta anos, a dois dias do seu aniversário – razão da sua volta também para Belo Horizonte, pois programara uma viagem ao Pantanal. Amarrada a uma cama, presa a uma cama, logo entendeu que estava em um presídio. Pior, nas suas primeiras conversas percebeu que aquilo era um manicômio e que suas colegas de quarto eram cinco doentes mentais. Lembrou de um conto de Gabriel Garcia Marques, no livro Os 12 contos peregrinos, intitulado “Só vim telefonar”.

Ironia, ela também só precisava telefonar. Só. Como sair desta? Não gostou da primeira entrevista com o pessoal do Manicômio. Só três dias depois conseguira falar com a auxiliar da enfermeira chefe. Estava complicado se safar daquela medicação, vinha no soro. Talvez se não insistisse em repetir a mesma história indefinidamente. Talvez se não desesperasse. Talvez se controlasse tendo um comportamento previsível e mais tranquilo, os remédios fossem sendo reduzidos e ela pudesse escapar. Era inteligente.

O desespero traria reações em cadeia e reações médicas-clínicas cada vez mais impiedosas, ela poderia perder de vez a consciência e a capacidade de apreender e dominar aquela realidade.

Contou uma única vez a sua história real, embora o sorriso da enfermeira, dona Madalena, responsável pela enfermaria do pavilhão L, tenha desaparecido no final como se tivesse nascido uma dúvida, ela não insistiu.

Insistir era um erro. Podia ser fatal. Ficou calma. Uma semana depois passou a tomar menos medicamentos. Disseram-lhe que seria liberada da cama e que, se tivesse bom comportamento, no dia seguinte teria direito a um banho de sol junto com as outras internas.

Como chegar até um telefone ou como conseguir alguém que fizesse chegar até Zé Oswaldo a sua localização? Sua chance de ter acesso a um telefone era diminuta e poucas eram as internas que faziam faxina na área administrativa.

Um médico se interessara por ela e ele, embora aparecesse apenas uma vez por mês, tornara evidente que seu interesse era comê-la. O doutor Rafael comia as internas e embora elas comentassem entre elas, a direção do Manicômio não tomava nenhuma providência por falta de provas e porque era “comum aquelas fantasias entre as loucas”.

Nenhuma mulher apresentara queixa contra ele. Ângela ficara sabendo que ela seria a próxima cliente do doutor Rafael através da “menina-moça”, uma gordinha de 20 anos, que se comportava como uma criança, chupava dedo e gostava de brincar de bonecas, objetos, paus, panos, caixas que ela transformava em bonecas.

Ângela percebeu que jamais contaria com o doutor Rafael, ele trepava correndo e tinha ejaculação precoce. Tudo muito rápido, muitas vezes ele gozava ao encostar a glande na vagina. Não dava papo, não conversava, receitava e, depois dos primeiros encontros, chegou a ter medo, pois ele se protegia quimicamente, dopando, depois da trepada, suas clientes.

Aos poucos, ela controlou a tesão dele. Ele já conseguia transar com mais prazer e, ainda com pressa e temendo que alguém chegasse, ela administrou a ansiedade e, com muita experiência, conseguiu alternar sexo oral, anal e vaginal, explorando-lhe o corpo vestido.

Ele chegou a visitar o Manicômio duas vezes, além do dia de trabalho, com a desculpa de que fazia uma pesquisa acadêmica, para poder transar com mais tempo.


Ângela dominava a situação e, uma vez, quase conseguiu furtar-lhe o celular. Numa das vezes em que ele apareceu para “recolher dados para a pesquisa” veio com ele um professor da Faculdade de Medicina, doutor em psiquiatria. Foi quando ela conseguiu o celular. Isto dois anos depois de internada. Ela não conseguiu localizar Zé Oswaldo pelo celular. Ele estava na Espanha, mas falou com a irmã dele.