sexta-feira, 24 de junho de 2016

VIDA DE GADO







A identidade e o umbigo


Humberto de Oliveira Sodré



“Povo marcado
Êh, povo feliz”
Zé Ramalho (Admirável Gado Novo)






Olhar o umbigo é ver-se.


- Ele só vê o próprio umbigo – dito popular de quem só se vê, de quem só enxerga a si mesmo.


Dia 25 de outubro, mobilização geral, cartórios abertos, farra de notícias, o governo quer todo mundo identificado, devidamente registrado, quer saber de todo “mundo existindo”.

As crianças estão nos colos das mães. Elas caminham solitárias. Filhos empacotados, mães embelezadas, elas, mulheres bravas e sós. Caminham para dizer que “seus filhos existem” e orgulhosas ouvem: Agora “eles são cidadãos”.


De onde?


O registro é o existir.


O registrado existe.


O governo fala para a TV. Banho tomado, naquela manhã de sábado. Sem saber o número exato de sua população, a administração pública não poderá exercer bem a sua política, dar, doar, prever.


Bom governo, senhor dos números, da razão e das “riquezas” que poderá distribuir com seus cidadãos tão pequenos e seus milhares ou milhões de homens e mulheres, velhos e velhas também “velhos cidadãos” que jamais foram registrados, contados e que para o “oficial” jamais existiram e... nem mais existirão.


Triste situação, jamais viveu Ernestino da Silva outras vezes Teodoro Roosewelt, o Teo, outras vezes João, outras vezes José, tantas vezes Paulo ou Saulo.

Sem ter tido condições de registro, ele aceitou ser o que queriam que fosse. Foi algumas vezes o que ele queria, outras vezes ficou numa piada.

Assim, quando perguntaram

-       Qual é o seu nome?

-       Como é?

-       É – gritou o funcionário da Saúde irritado – É o que?

-       Ih! Ih é!

-       Ié?

-       Ié, sim senhor – ele já partia para a briga quando o funcionário da Saúde que autorizaria a sua vacina completou.

-       Ié de quê?

Bom, muito bom.

-       Ié da Silva Peixoto de Almeida e Castro.

-       Cas....tro – anotou o funcionário da Saúde.

-       Senhor Ié de Castro pode entrar, enfermaria 5, o senhor será atendido e vacinado.

Enquanto foi Ié, este nosso homem sem registro, cidadão sem ser cidadão, cidadão temporário, levou uma bela vida até quando deram-lhe um número no Cadastro das Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda.

Cadastrado, cobraram-lhe o ser cidadão, impostos e multas.

Ele entrou em desespero quando lhe indicaram uma saída: ter mais de um CPF e bagunçar as contas do governo.

Feito, ele tornou-se procurado no número terminado em 3 e 6, escapava pelos número terminados em 0,1, 2 e 5.

Vida em fuga, pois a sua maior ameaça era a identidade e o número do documento do governo.












Admirável Gado Novo

Vocês que fazem parte dessa massa
Que passa nos projetos do futuro
É duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais do que receber
E ter que demonstrar sua coragem
À margem do que possa parecer
E ver que toda essa engrenagem
Já sente a ferrugem lhe comer
Êh, oô, vida de gado
Povo marcado
Êh, povo feliz!

Lá fora faz um tempo confortável
A vigilância cuida do normal
Os automóveis ouvem a notícia
Os homens a publicam no jornal
E correm através da madrugada
A única velhice que chegou
Demoram-se na beira da estrada
E passam a contar o que sobrou!
Êh, oô, vida de gado
Povo marcado
Êh, povo feliz!

O povo foge da ignorância
Apesar de viver tão perto dela
E sonham com melhores tempos idos
Contemplam esta vida numa cela
Esperam nova possibilidade
De verem esse mundo se acabar
A arca de Noé, o dirigível,
Não voam, nem se pode flutuar
Êh, oô, vida de gado
Povo marcado
Êh, povo feliz