A identidade e o umbigo
Humberto de Oliveira Sodré
“Povo marcado
Êh, povo feliz”
Êh, povo feliz”
Zé
Ramalho (Admirável Gado Novo)
Olhar
o umbigo é ver-se.
-
Ele só vê o próprio umbigo – dito popular de quem só se vê, de quem só enxerga
a si mesmo.
Dia
25 de outubro, mobilização geral, cartórios abertos, farra de notícias, o
governo quer todo mundo identificado, devidamente registrado, quer saber de
todo “mundo existindo”.
As
crianças estão nos colos das mães. Elas caminham solitárias. Filhos
empacotados, mães embelezadas, elas, mulheres bravas e sós. Caminham para dizer
que “seus filhos existem” e orgulhosas ouvem: Agora “eles são cidadãos”.
De
onde?
O
registro é o existir.
O
registrado existe.
O
governo fala para a TV. Banho tomado, naquela manhã de sábado. Sem saber o
número exato de sua população, a administração pública não poderá exercer bem a
sua política, dar, doar, prever.
Bom
governo, senhor dos números, da razão e das “riquezas” que poderá distribuir
com seus cidadãos tão pequenos e seus milhares ou milhões de homens e mulheres,
velhos e velhas também “velhos cidadãos” que jamais foram registrados, contados
e que para o “oficial” jamais existiram e... nem mais existirão.
Triste
situação, jamais viveu Ernestino da Silva outras vezes Teodoro Roosewelt, o
Teo, outras vezes João, outras vezes José, tantas vezes Paulo ou Saulo.
Sem
ter tido condições de registro, ele aceitou ser o que queriam que fosse. Foi
algumas vezes o que ele queria, outras vezes ficou numa piada.
Assim,
quando perguntaram
- Qual é o seu
nome?
- Como é?
- É – gritou o
funcionário da Saúde irritado – É o que?
- Ih! Ih é!
- Ié?
- Ié, sim senhor
– ele já partia para a briga quando o funcionário da Saúde que autorizaria a
sua vacina completou.
- Ié de quê?
Bom,
muito bom.
- Ié da Silva
Peixoto de Almeida e Castro.
- Cas....tro –
anotou o funcionário da Saúde.
- Senhor Ié de
Castro pode entrar, enfermaria 5, o senhor será atendido e vacinado.
Enquanto
foi Ié, este nosso homem sem registro, cidadão sem ser cidadão, cidadão
temporário, levou uma bela vida até quando deram-lhe um número no Cadastro das
Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda.
Cadastrado,
cobraram-lhe o ser cidadão, impostos e multas.
Ele
entrou em desespero quando lhe indicaram uma saída: ter mais de um CPF e
bagunçar as contas do governo.
Feito,
ele tornou-se procurado no número terminado em 3 e 6, escapava pelos número
terminados em 0,1, 2 e 5.
Vida
em fuga, pois a sua maior ameaça era a identidade e o número do documento do
governo.
Admirável Gado Novo
Vocês que fazem parte dessa massa
Que passa nos projetos do futuro
É duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais do que receber
E ter que demonstrar sua coragem
À margem do que possa parecer
E ver que toda essa engrenagem
Já sente a ferrugem lhe comer
Êh, oô, vida de gado
Povo marcado
Êh, povo feliz!
Lá fora faz um tempo confortável
A vigilância cuida do normal
Os automóveis ouvem a notícia
Os homens a publicam no jornal
E correm através da madrugada
A única velhice que chegou
Demoram-se na beira da estrada
E passam a contar o que sobrou!
Êh, oô, vida de gado
Povo marcado
Êh, povo feliz!
O povo foge da ignorância
Apesar de viver tão perto dela
E sonham com melhores tempos idos
Contemplam esta vida numa cela
Esperam nova possibilidade
De verem esse mundo se acabar
A arca de Noé, o dirigível,
Não voam, nem se pode flutuar
Êh, oô, vida de gado
Povo marcado
Êh, povo feliz
Que passa nos projetos do futuro
É duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais do que receber
E ter que demonstrar sua coragem
À margem do que possa parecer
E ver que toda essa engrenagem
Já sente a ferrugem lhe comer
Êh, oô, vida de gado
Povo marcado
Êh, povo feliz!
Lá fora faz um tempo confortável
A vigilância cuida do normal
Os automóveis ouvem a notícia
Os homens a publicam no jornal
E correm através da madrugada
A única velhice que chegou
Demoram-se na beira da estrada
E passam a contar o que sobrou!
Êh, oô, vida de gado
Povo marcado
Êh, povo feliz!
O povo foge da ignorância
Apesar de viver tão perto dela
E sonham com melhores tempos idos
Contemplam esta vida numa cela
Esperam nova possibilidade
De verem esse mundo se acabar
A arca de Noé, o dirigível,
Não voam, nem se pode flutuar
Êh, oô, vida de gado
Povo marcado
Êh, povo feliz