quinta-feira, 23 de junho de 2016

NEM DIVÃ, NEM MESA




 

Sem conversa


João Mauro, cínico




A preparação

O que dizer? Por que eu estou ali? Pra que? O que me aflige? Quais são os meus problemas?

A primeira sessão marcada duraria 50 minutos. Padrão. Neste tempo, menos de uma hora, uma vez por mês, deverei abordar temas que particularizarei e que sejam importantes para mim, para a minha cabeça, para o meu equilíbrio emocional. Vou discuti-los com um médico psiquiatra.

(Pra que e por quê?)

Uma das impressões que me marca é a do papel deste profissional: uma pessoa que você paga para conversar, para ouvi-lo.

Já vinha questionando a dificuldade do diálogo para o homem. Por que a dificuldade e a impossibilidade?

A dificuldade se prende muitas vezes ao tempo, é pouco o tempo para a conversa não profissional, para o diálogo puro.

Por sua vez, os temas embora muitos, aparentemente, são escassos. Há o tempo, mas não há o que falar. Torna-se comum, duas pessoas se encontrarem, terem tempo e o tempo perder-se no silêncio. Tornam-se mudos, nada falam, não há o que falar e, muitas vezes, para que falar.

Não há paciência e o tempo entre as duas pessoas torna-se enfadonho, torturante e mortal.

Ouvir torna-se uma arte e uma profissão, com o confessionário em desuso psicológico e político/religioso, o novo confessionário apresenta-se como profissão com técnicas e recursos de desenvolvimento que permitem às pessoas adquirirem perspectivas:

perspectivas de melhoria,

perspectivas de equilíbrio psíquico,

perspectivas de entendimento de realidades.

Na perspectiva de em sendo ouvido se poderia obter uma melhora, compreende-se de que há algo a melhorar, de que há até algo a curar, uma preocupação a terminar e um projeto a executar, uma dificuldade a superar.

Na lei da troca e das profissões há algo a barganhar, a vender e o profissional do ouvido, venderá a melhora.

Na perspectiva de equilíbrio psíquico de que o paciente obterá através do diálogo profissional, com técnicas específicas e diagnóstico possível, medicação correta, através de experiências científicas, o que se tem é um campo de trabalho clínico onde o acompanhamento individual se marcará por uma evolução registrada.

O que este equilíbrio proporcionará terá a sua efemeridade ou a sua manutenção dentro de um quadro precário, onde há o que se determinará como resultados e onde o entendimento das duas pontas (médico e paciente) corresponderá ao grau de conhecimento e de responsabilidade das duas partes.

Na perspectiva de entendimento de realidades, o diálogo exigido, necessariamente, não passaria por um quadro clínico, com abertura de outros profissionais do ouvido e do diálogo.

O homem precisa entender a realidade, conhecer o que o cerca, entender o que o confunde e o que o amarra, prende e frauda o seu, permanente, crescimento e desenvolvimento, suas possibilidades e suas potencialidades.

A organização do tempo, a exploração das potencialidades e a análise correta do seu tempo e do ambiente são demandas de informações e da interpretação destas informações – há que saber ler e entender a realidade.

Qual é o meu problema e, se são muitos, de que ordem são estes problemas e qual ou quais priorizarei para que caiba alguma discussão, alguma abordagem, dentro de um tempo determinado?

Com quem vou conversar? Consultar? Medicar-me? E preciso me medicar para o que vivo hoje? O que são estas drogas?

Desemprego? Nenhuma droga resolve. Nenhum médico resolve.

Quem sabe, eliminando bobagens e preconceitos, facilitaria a abertura de perspectivas e de novas possibilidades?

Uma mudança de área de atividade, por exemplo?

Agressividade? Apatia? Descrença? Revolta?

Ainda posso ser um homem agressivo? O que a agressividade me agrega, soma, ajuda a resolver problemas?

Talvez se diagnostique uma ansiedade e ela esteja no cerne da agressividade?

É verdade, tornei-me agressivo, embora tenha sido sempre um agressivo produtivo, agressivo no trabalho, na produção, na coragem para o novo e para a conquista de posições. Há e houve, então, uma agressividade positiva.

Agora, inútil, uma inutilidade particularizada, a agressividade impedida de ser produtiva, torna-se agressividade física – estúpida e ignorante.

Uma agressividade que explode sobre pessoas frágeis e em momentos de extrema crueldade, crescendo sobre a ironia, o sarcasmo e o deboche, o desrespeito e a brutalidade verbal.

Inverter a mão, eliminar o negativo da agressividade, reorientá-la para a recuperação de potencialidades perdidas, superando ou condicionando ao novo quadro de disponibilidades, físicas e de tempo, de meios e de fins.

Seria a apatia, a descrença e a revolta os temas que deveria privilegiar na conversa com um terapeuta que é médico e que é psiquiatra com especialização em drogas para o cérebro?

Descartar a revolta como abordagem de uma conversa com um clínico seria razoável.

Revolta não é uma simples questão de âmbito individual mesmo que só se faça compreender no indivíduo, tem forte conotação com o ambiente e a sociedade, até mesmo quando se prende numa revolta contra si, intrinsecamente dentro do sujeito.

Revolta é uma necessidade, é uma imposição, uma imperiosa expressão do sujeito humano, é mais uma solução, um remédio do que um drama, uma doença ou uma malignidade.

A revolta teria ainda uma profunda expressão filosófica e ontológica, uma parte da essência do ser – ela impõe-se.

Sua expressão é a expressão da vida e da particularidade do homem como um ser de liberdade. 

A apatia e a descrença seriam, em si, males.

Um físico-químico, talvez provocados por parasitas do corpo, da mente e da vida.

Outro, um mal da fé, da verdade, do não acreditar em nada, nem na dúvida – é quando nem mesmo há a necessidade de um porquê.

A primeira sessão terminou antes de começar.

Fim

Não teve a  segunda sessão