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Onde acabou a 15a. fuga |
A fuga até Ulysses
Honório Oliveira e Silva
Vivi
num tempo em que fugir era, sempre, permanentemente, condição de sobrevivência.
Ou
fugia ou morria.
Ou
fugir ou ser preso.
E
a prisão era a tortura e a morte. Sobrevivência rara, dura, difícil e, quase
sempre, impossível.
A
arte da fuga era imperativa. Aprender a fugir, estar sempre pronto para
escapar, era, naquela época, uma necessidade como o alimento de todo dia.
Entre
as muitas fugas, a mais longa foi no percurso Juiz de Fora, Belo Horizonte, São
Paulo, Porto Alegre, Santa Maria, Chuí.
Na
fronteira, no quintal do Brasil fui preso. Transferido na mesma noite para Santa
Maria e depois para Porto Alegre.
Em
Porto Alegre, fiquei preso 45 dias, numa cela isolada, vigiado por um soldado
suicida da Polícia do Exército.
Foi
a fuga em que perdi a parada. Capturado, iniciei uma outra arte para a
sobrevivência, a arte da mentira, num jogo de gato e rato, onde teria que ser
sempre o perdedor.
Ali,
neste jogo, ganhar significaria morrer. Não poderia cometer a burrice da
criança que quer ganhar todas, desde jogo de bola de gude, partida de futebol e
a menina mais bonita do lugar.
Neste
jogo de sobrevivência, a mentira torna-se uma arte. Perder fazia parte
essencial do jogo, assim ser capturado na mentira, perder, no jogo da
investigação e da inteligência, fazia parte da estratégia.
Eles
tinham que ganhar todas. Afinal, poderosos e vitoriosos.
O
policial tinha que apanhá-lo mentindo, era a jogada da “Mentira de
Pernas-curtas”.
Tinha
a mentira de pernas-curtas uma medida, pois não se podia abusar da inteligência
do outro no jogo de polícia e bandido, onde além de ser sempre o bandido, o
derrotado, você também era um prisioneiro totalmente dominado e submetido ao
poder policial do torturador. Este é um poder sem limites, poder sobre a sua
própria vida e integridade física.
Ele
tanto podia te arrebentar, matá-lo, machucá-lo como podia esquecê-lo, sem água
e comida, no fundo de uma micro-cela, sem nada, sem água, sem vaso sanitário,
em meio a fezes e urina, suas próprias fezes, sua própria urina, dois, três
dias, uma semana, trinta dias sem tomar banho, sem nenhuma higiene.
Era
o que acontecia naquela cela.
Na
cela da PE de Porto Alegre, da Polícia do Exército, do Exército Brasileiro, em
um quartel que, tenho notícia, já foi demolido. O prédio ficava ao lado da
escola de engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Na
cela de castigo, uma cela dentro de outra cela, eu li um único livro – tive a
opção de escolher um livro. O livro que me acompanhou naqueles 45 dias, foi o
Ulysses, de James Joyce, uma edição da Civilização Brasileira, tradução de
Antônio Houaiss.
Na
prisão, na cela de castigo, sem água, sem latrina, na imudície, encontrei a
salvação - Ulysses.
Quem
quiser ler uma grande obra, como Ulysses, experimente se isolar.
E,
se possível, não em uma prisão.
Muito
menos numa cela de castigo, no frio infernal do sul.