quarta-feira, 15 de junho de 2016

O SOM DA IMAGEM











Encontros de toda hora


Horácio Prates





 

 

Dona Zé, Zenila.

 

Ela nunca me permitiu chamá-la de Zé.

 

Zé era o apelido carinhoso dado pelo seu irmão Joal (*).

 

Na foto, aparece mãe com seu corpo de mulher de mais de 60 anos, a mão esquerda sobre a mão direita de pai.

 

Um ao lado do outro, em níveis diferentes.

 

Os dois estão sentados para esta foto.

 

O que eu vejo?

 

Além do que registra esta foto sem data, há a idade dos dois. Estão, ali, velhos.

 

Um ao lado do outro.

 

Ele tem a camisa azul aberta no peito.

 

Está de óculos e tento ir até os olhos dos dois, mas a distância não permite nada senão tentar captar os olhares no conjunto do rosto.

 

Se o semblante é fechado, não significa que pai estaria sério ou triste. Ele tinha lá sua dificuldade para a fotografia, assim como muitos de nós. Não era fotogênico. Não somos.

 

Na poltrona, seu corpo como que descia, escorregava e ali estava sua barriga - em sua eterna, enquanto existiu, luta contra a gordura.

 

Mãe, cheiinha. O vestido apertado divide o seu corpo em parte e as partes são salientes.

 

Sua cabeça pende para a direita. Seu olhar indiferente nega o mundo, nega a vida, nega o sonho – como sempre.

 

Suas pernas aparecem e aparecem mais uma vez as gorduras. Gorduras que serão eternamente seus desafios.

 

Dois móveis são visíveis e lá há o toque de sua organização e limpeza – essenciais para o funcionamento da casa.

 

Nunca compreendi minha mãe.

 

Meu esforço nunca foi recompensado.

 

Ela ia além das minhas forças e da minha capacidade de compreensão.

 

Então, a admiração e o conflito era latente entre nós dois.

 

Jamais aceitei sua entrega de pontos.

 

Era muito fácil para ela entregar os pontos.

 

A insatisfação (também a indignação) era a constante.

 

Algo que me assusta até hoje quando me surpreendo captando insatisfações que não entendo.

 

Tenho muita saudades herdadas ou imitadas deles, dos dois.

 

Puno-me pela minha incompreensão e pela clara estupidez.

 

Por que não convivi mais?

 

Por que não os ouvi mais?

 

Só ouvi-los e o que tão distante e tão pouco eles disseram passaram a ser material da minha lavra pessoal, onde bamburro  em encontros inesperados.

 

Indo em direção a eles, colhendo as fotos, sonhando com os dois, remexendo suas coisas, lendo seus papéis, revendo seus registros e garimpando na memória as riquezas que eles me deixaram.

 

Riquezas garimpadas?

 

Coisas preciosas? Sim.

 

Quando consigo ouvir, mais uma vez, nitidamente, pela memória, as suas vozes, uma inflexão, um respirar que é característico de um deles, recorro a todo o meu arsenal de recomposição, amplio o som, limpo os ruídos e chego quase à perfeição da pedra preciosa bem lapidada e ouço, nítida, sua voz de mãe dizendo apenas o meu nome.

 

- Titinho!

 

 

 

 

 

(*) Joal, nome formado pelas sílabas iniciais dos pais, José e Alzira. Entre os episódios vividos por Joal estão:

 

(1) Sua luta com uma sucuri, dentro do rio Jequitinhonha, em que ele sai da água carregando o troféu; 

 

(2) O Capador - responsável pela castração de porcos quando passava todo um final de semana na operação dos porcos da fazenda e das fazendas vizinhas; 

 

(3) Acusado de ter capado um valentão, usando o mesmo método dos porcos, ele se defendia dizendo que se fosse ele o Capador, o homem não teria morrido. Nunca perdeu um porco; 

 

(4) Por causa desta acusação uma patrulha de policiais militares, comandada pelo capitão Pedro Ferreira, se deslocou, durante 15 dias, até a fazenda para prendê-lo.  acusado por um parente da vítima e adversário político da família da mulher de Joal; 

 

(5) A patrulha da PM cercou as casas da fazenda e caiu em uma emboscada, armada pelos familiares e vizinhos. Os policiais só sairiam vivos se deixassem as armas no chão e saíssem nus da emboscada.

 

As armas sem as munições e as roupas foram devolvidas.

 

 

 

 

15.06.2016   14.03.2022