sexta-feira, 8 de julho de 2016

A ROTA DA MANHÃ



  
1999



Fim de Século





Da padaria para a mesa dos meninos



Todos eles gostam de croissant




Ignácio M. Rodrigues




I

Ontem, vindo do Cruzeiro, às 5h30, comprei pão para os meninos. No percurso à pé, descendo o morro da avenida Afonso Pena até a avenida do Contorno, numa manhã de maio, de céu imensamente claro e belo, em direção à rua Petrarca, sonho. Vou ao encontro dos meninos.

Chego cedo, ruas vazias, as luzes do jardim acesas. Toco a campainha. Magali abre a porta.

Ouço Ilda batendo na porta do quarto de Eduardo, “Dudu”.

Como um pão, a manteiga é pouca. O café está no fim.

Ouço o movimento lá em cima, Helena fala alguma coisa, Caetano Veloso canta a música do Peninha tema de uma novela das oito,

“...Eu fico ali sonhando acordado
Juntando o antes, o agora e o depois

...Por que você não cola em mim?
Tô me sentindo muito sozinho”


O sonho acordado é pesado. É triste. É lento. Não vou ficar. Caminho da sala para os escritórios do dr. Abelardo. Olho os livros. Olho os quatros, o corredor e decido inventar uma desculpa (tenho horário marcado) e sair. Saio.

Não queria mais encontrar com os meninos, com Helena e Eduardo. Sofria muito e sofreria mais vendo eles rapidamente. Não tínhamos mais a mesma vida, o mesmo ritmo de vida, o mesmo dia.

O dia deles era diferente do meu dia, perdíamos laços comuns no dia a dia. Eu era um estranho assim como uma pessoa de fora, era uma pessoa de fora, de fora da vida deles, do dia deles. Um estranho para ser olhado como uma pessoa estranha, uma pessoa pela qual se têm, por ser pai, por ter sido pai, por ter obrigações, nem sempre cumpridas, de pai.

Está ali de passagem. É um estranho. Será sempre um estranho.

Sei e imagino que seja isto: percebo que alguém ainda tenta me ter, me pegar com um olhar e até com as mãos, com um abraço. Sinto que desgarro, como um suicida que, dependurado no milésimo andar de um prédio, já não tem forças nos braços para se sustentar e evitar a queda no imenso vazio, sem chances. Saio antes que os meninos desçam.



A música segue até a esquina, no silêncio da manhã



“Às vezes no silêncio da noite
Eu fico imaginando nós dois
Eu fico ali sonhando acordado
Juntando o antes, o agora e o depois

Por que você me deixa tão solto?
Por que você não cola em mim?
Tô me sentindo muito sozinho

Não sou nem quero ser o seu dono
É que um carinho às vezes cai bem
Eu tenho os meus desejos e planos secretos
Só abro pra você, mais ninguém”




II


Hoje, fiz o mesmo percurso. Desço a avenida e os trabalhadores da construção sobem. Eu e eles com nossas mochilas, marmitas, sacos plásticos. Mudo o rumo na descida à procura de uma padaria que faça um pão melhor. Compro a mesma quantidade de ontem, oito pães e dois croissants

(Eduardo gosta, penso; depois, Magali me esclarece, todos gostam).

As luzes acesas, toco a campainha. Há uma demora não comum neste horário, todos tem compromissos de hora marcada. Toco uma segunda vez e ouço a voz sonolenta de Magali. Perderam a hora, o despertador não funcionou.

O mesmo sentimento de ontem, a mesma disposição – não ficar. Combato a minha loucura. Vou vencer e vou aguentar esperar. Desce primeiro Helena, eu já a espero na escada. Ela me vê, eu a abraço, “dia 19 temos aniversário”.

Ela está menos tensa do que nos últimos dias - ando apavorado com o diagnóstico de pressão muscular sobre o nervo ótico e sobre o esforço que ela terá que fazer para superar esta deficiência.

- Como está vovô?

Vejo que ela está mais saudável, ela come quatro bolachas de água e sal, pede frutas para levar. Tem apenas melão.

Ilda surge, na escada. Reclama de dores musculares na coxa, diz que se assustou ao me ver.

- E o carro, quando fica pronto? Sexta-feira! Então, não foi tão grave assim.

Eduardo desce, ainda sonolento e grave, joga-me um beijo do alto de seus mais de um metro de oitenta.

Vou aguentando, aguentando até o fim.

Penso se talvez não fosse melhor não mais aparecer ali, estar longe e estabelecer contatos telefônicos que se escasseariam até que eu conseguisse superar todas as minhas dores e mazelas, até ter condições de construir um viver próximo e saudável para todos.

Talvez a ajuda de uma outra pessoa me permitisse viver melhor em meio a esta crise. Não vejo a solução na psicologia, nem na psicanálise, nem na terapia sistêmica e nem em um consultório.

Não é doença. É amor. É paixão.

A dor, quando entra, entra como “dor positiva”.

Uma outra pessoa para me ouvir teria que ser ou uma pessoa mais velha ou um quase filósofo ou uma pessoa muito experiente, com  conhecimento de vida e de felicidade ou sem conhecimento nenhum, com abertura para conhecer e para interrogar junto comigo ou uma pessoa mais nova: uma criança capaz de ouvir, perguntar e calar-se.

Vou procurar esta criança.



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