O dia em que vi
minha mãe nascer (*)
Guto
Wanderley
1º Tempo
1ª. Cena
1ª. Cena
Estou
indo para o necrotério do Hospital São Lucas. Minha mãe morreu.
2º
Tempo
2ª. Cena
2ª. Cena
Estou
indo para o CTI. Minha mãe está internada em estado de coma.
1.
Vou
ao hospital uma, duas vezes e trabalho e amo e vou até onde minha mãe está sufocada
por tubos.
Eu
acompanho a evolução do seu rosto. Descubro que ela está com um aspecto melhor.
Falo para o meu pai. Falo para minha irmã. Nós temos guardado um sorriso de
confiança. De nenhum de nós o sorriso ganha confiança e sai.
Falamos
por abraços, por mãos, até mesmo chegamos a falar daquilo que no dia é notícia, somos “experts” em nada. Mãe, do
silêncio do coma, se introduz entre nós e fala da vida, revela a vida que lhe
escapa.
No
andar de cima do hospital, onde nascem as crianças, um médico com um menino,
que ele chama de Bernardo, empacotado em suas mãos, orgulhoso fala da morte da minha mãe.
Ela
está morrendo, está em coma, tem chances de sobreviver, pode escapar, são
mínimas as chances. Pode, sim, sobreviver.
Então,
vamos fazer planos para quando ela se recuperar. Não fazemos planos. Eu hesito.
Na rua, compro pequi e levo para a casa do meu pai. Eu hesito. Podia dizer para
Lurdes: “guarde este pequi para a gente comer com mãe”. Ela gosta. Devora
milhares e milhares de pequis. É uma fruta e é uma raiz nossa naquelas terras
do cerrado do norte e do nordeste de Minas Gerais.
2.
Mãe
morreu.
Véspera
do natal. No necrotério, dia 24 de dezembro, ela está sobre uma mesa fria. Tem
uma vela acesa. Do seu lado, o xampu e um óleo para o seu cabelo. Não será mais
preciso.
3.
Outra
Cena
Entro
no hospital, minha mãe está viva. Sente dores, dores violentas. Ela discute com
o médico. É uma excelente dialética, uma maravilhosa provocadora. Irônica,
debochada, ela questiona, agride com sutileza e ferina sabe mostrar com as
próprias palavras do doutor os seus equívocos.
Ela e
ele não desenvolvem uma relação de médico e paciente, mãe é uma fera e ele um
caçador. Pensei se o médico seria, então, necessariamente, um domador.
Teria
que mudar a metáfora, ele jamais teria perfil de domador. Mais para devorado.
Então,
ali, diante daquela fera, ele só teria uma alternativa: ¾
Abatê-la.
4.
Minha mãe morreu nesta terça-feira. Véspera do natal.
Meu
coração já não é mais o mesmo.
Ele
não se despedaçou. É duro, sempre foi.
Apenas,
não é mais o mesmo.
Talvez,
amigo, eu me encontre mais compreensivo para as coisas do mundo e dê grande
importância, agora, aos pequenos gestos, ao andar, respirar e, agora, nestes
dias, às lembranças de tudo aquilo que eu consiga lembrar sobre aquela mulher
pequena, sempre linda, comparada a grandes mulheres belas, com uma elegância
mantida às custas de quase nada. Era natural, era o seu porte.
5.
Conhecia, como foi difícil conhecer, suas grandes articulações dialéticas. Assim, quando o doutor afirmou que “bom era o seu marido, por ter conseguido viver tanto tempo com você”, ela rasgou, rápido, o desenho da personalidade de pai, “um fingido, aquilo é uma peste”, para logo em seguida levantar suspeitas sobre as relações complexas no mundo moderno entre homens e mulheres, “não sei é como sua mulher aguenta você”. O doutor ouviu e não disse mais nada.
- Ela
é uma mulher brava, muito brava. Não a largo por nenhuma outra neste mundo. Ela
é o diabo e é a mulher que eu gosto. Agora, dona Inês, a senhora é uma mulher
mais do que brava.
Ela
se voltou para mim. Não era comum a introdução de um terceiro debatedor.
¾ Você me considera uma pessoa má?
Se eu
estivesse entendendo o sentido da discussão, eu deveria responder na bucha uma
frase afirmativa para levar o debate à frente, mas o doutor entrou, muito
rápido: “a senhora, dona Inês, sabe
muito bem quem a senhora é; por isso, eu a aconselho a me obedecer”.
- Primeiro,
precisa me convencer. Antes, eu quero me livrar destas dores terríveis que sinto
nas costas e nas pernas.
- Então,
não fique aí deitada o dia inteiro, levante, caminhe.
-
Mudou? Você me deu ordens para ficar de repouso.
- Olhe
na ficha, veja se eu escrevi, em algum lugar, um pedido de repouso completo.
Escrevi “repouso” e é importante para a sua recuperação que a senhora force seu
corpo a ficar em posições variadas na cama, a andar, nem que seja um pouco.
Procure ficar sentada na cadeira.
O
doutor foi embora.
Ela
retomou a discussão. Para ela, seu afilhado havia feito a cabeça do médico,
comparando-a com pai. Negamos que fosse esse o raciocínio, pois estava claro
nas suas relações com pai o papel de cada um. Ela sempre exigiu. Ele sempre a
atendeu e orgulhoso dizia: “eu sempre satisfiz as vontades da sua mãe”.
Eu me
despedi e já próximo da porta ouvi de novo a pergunta. Agora, direto para o
terceiro debatedor.
- Você
me considera uma pessoa má?
- Sim,
mãe, você é uma pessoa má.
Ela
estava sentando na cama e segurava os braços de minha irmã. Notei que ela
tomou, pela primeira vez, como dialética, um grande choque. Não seria para
acontecer isso. Ela jamais concordaria comigo se eu fugisse da polêmica, “não,
mãe, você não é uma pessoa má, você é uma pessoa ótima, boa, boa mãe, boa
esposa”, encerrando a discussão sem nenhum pega de contradição. Ela queria que
eu lhe devolvesse a peteca com uma bela colocação, quase inalcançável. Assim,
joguei-lhe na cara, com toda a violência de uma frase ditada sílaba por sílaba.
- Sim,
mãe, você é uma pessoa má.
Minha
irmã estava segurando-a pelas costas, riu entendendo o jogo, mas não percebia o
olhar dela. O olhar da minha mãe era de puro desespero, como se ela, ali,
estivesse sendo condenada a uma morte infame.
Dei-lhe
adeus, dei-lhe um sorriso.
6.
Perdi
o jogo desta vez. Perdi, feio.
Ela
não queria mais polemizar, provocar, ironizar. Ela não estava mais preparada
para o debate.
Eu
tinha mais era que ir.
Na
rua, senti um grande sono, uma vontade irresistível de dormir. Eu não poderia
perder esta oportunidade, ainda mais por volta das oito e meia da noite.
Corri
para iniciar uma série de grandes dormidas, coisa que eu não conseguia há mais
de trinta anos.
Dormindo duas, três horas por noite, a oportunidade de dormir mais cedo poderia significar um grande e bom sono.
Dito e feito.
Custei a acordar no horário de levar minha filha para a escola.
Dormindo duas, três horas por noite, a oportunidade de dormir mais cedo poderia significar um grande e bom sono.
Dito e feito.
Custei a acordar no horário de levar minha filha para a escola.
(*) Eu vi mamãe
nascer. Título dado por Wander Piroli para o livro de Luiz Fernando Emediato