terça-feira, 18 de outubro de 2016

PERDAS E DANOS I



  





O dia em que vi 


minha mãe nascer (*)





Guto Wanderley




1º  Tempo    

1ª. Cena

Estou indo para o necrotério do Hospital São Lucas. Minha mãe morreu.



2º Tempo  

2ª. Cena

Estou indo para o CTI. Minha mãe está internada em estado de coma.




1.

Vou ao hospital uma, duas vezes e trabalho e amo e vou até onde minha mãe está sufocada por tubos.

Eu acompanho a evolução do seu rosto. Descubro que ela está com um aspecto melhor. Falo para o meu pai. Falo para minha irmã. Nós temos guardado um sorriso de confiança. De nenhum de nós o sorriso ganha confiança e sai.

Falamos por abraços, por mãos, até mesmo chegamos a falar daquilo que no dia é  notícia, somos “experts” em nada. Mãe, do silêncio do coma, se introduz entre nós e fala da vida, revela a vida que lhe escapa.

No andar de cima do hospital, onde nascem as crianças, um médico com um menino, que ele chama de Bernardo, empacotado em suas mãos,  orgulhoso fala da morte da minha mãe.

Ela está morrendo, está em coma, tem chances de sobreviver, pode escapar, são mínimas as chances. Pode, sim, sobreviver.

Então, vamos fazer planos para quando ela se recuperar. Não fazemos planos. Eu hesito. Na rua, compro pequi e levo para a casa do meu pai. Eu hesito. Podia dizer para Lurdes: “guarde este pequi para a gente comer com mãe”. Ela gosta. Devora milhares e milhares de pequis. É uma fruta e é uma raiz nossa naquelas terras do cerrado do norte e do nordeste de Minas Gerais.


2.

Mãe morreu.

Véspera do natal. No necrotério, dia 24 de dezembro, ela está sobre uma mesa fria. Tem uma vela acesa. Do seu lado, o xampu e um óleo para o seu cabelo. Não será mais preciso.

3.

Outra Cena

Entro no hospital, minha mãe está viva. Sente dores, dores violentas. Ela discute com o médico. É uma excelente dialética, uma maravilhosa provocadora. Irônica, debochada, ela questiona, agride com sutileza e ferina sabe mostrar com as próprias palavras do doutor os seus equívocos.

Ela e ele não desenvolvem uma relação de médico e paciente, mãe é uma fera e ele um caçador. Pensei se o médico seria, então, necessariamente, um domador.

Teria que mudar a metáfora, ele jamais teria perfil de domador. Mais para devorado.

Então, ali, diante daquela fera, ele só teria uma alternativa: ¾ Abatê-la.



4.


Minha mãe morreu nesta terça-feira. Véspera do natal.

Meu coração já não é mais o mesmo.

Ele não se despedaçou. É duro, sempre foi.

Apenas, não é mais o mesmo.

Talvez, amigo, eu me encontre mais compreensivo para as coisas do mundo e dê grande importância, agora, aos pequenos gestos, ao andar, respirar e, agora, nestes dias, às lembranças de tudo aquilo que eu consiga lembrar sobre aquela mulher pequena, sempre linda, comparada a grandes mulheres belas, com uma elegância mantida às custas de quase nada. Era natural, era o seu porte.



5.


Conhecia, como foi difícil conhecer, suas grandes articulações dialéticas. Assim, quando o doutor afirmou que “bom era o seu marido, por ter conseguido viver tanto tempo com você”, ela rasgou, rápido, o desenho da personalidade de pai, “um fingido, aquilo é uma peste”, para logo em seguida levantar suspeitas sobre as relações complexas no mundo moderno entre homens e mulheres, “não sei é como sua mulher aguenta você”.  O doutor ouviu e não disse mais nada.

- Ela é uma mulher brava, muito brava. Não a largo por nenhuma outra neste mundo. Ela é o diabo e é a mulher que eu gosto. Agora, dona Inês, a senhora é uma mulher mais do que brava.

Ela se voltou para mim. Não era comum a introdução de um terceiro debatedor.

¾ Você me considera uma pessoa má?

Se eu estivesse entendendo o sentido da discussão, eu deveria responder na bucha uma frase afirmativa para levar o debate à frente, mas o doutor entrou, muito rápido:  “a senhora, dona Inês, sabe muito bem quem a senhora é; por isso, eu a aconselho a me obedecer”.

- Primeiro, precisa me convencer. Antes, eu quero me livrar destas dores terríveis que sinto nas costas e nas pernas.

- Então, não fique aí deitada o dia inteiro, levante, caminhe.

- Mudou? Você me deu ordens para ficar de repouso.

- Olhe na ficha, veja se eu escrevi, em algum lugar, um pedido de repouso completo. Escrevi “repouso” e é importante para a sua recuperação que a senhora force seu corpo a ficar em posições variadas na cama, a andar, nem que seja um pouco. Procure ficar sentada na cadeira.

O doutor foi embora.

Ela retomou a discussão. Para ela, seu afilhado havia feito a cabeça do médico, comparando-a com pai. Negamos que fosse esse o raciocínio, pois estava claro nas suas relações com pai o papel de cada um. Ela sempre exigiu. Ele sempre a atendeu e orgulhoso dizia: “eu sempre satisfiz as vontades da sua mãe”.

Eu me despedi e já próximo da porta ouvi de novo a pergunta. Agora, direto para o terceiro debatedor.

- Você me considera uma pessoa má?

- Sim, mãe, você é uma pessoa má.

Ela estava sentando na cama e segurava os braços de minha irmã. Notei que ela tomou, pela primeira vez, como dialética, um grande choque. Não seria para acontecer isso. Ela jamais concordaria comigo se eu fugisse da polêmica, “não, mãe, você não é uma pessoa má, você é uma pessoa ótima, boa, boa mãe, boa esposa”, encerrando a discussão sem nenhum pega de contradição. Ela queria que eu lhe devolvesse a peteca com uma bela colocação, quase inalcançável. Assim, joguei-lhe na cara, com toda a violência de uma frase ditada sílaba por sílaba.

- Sim, mãe, você é uma pessoa má.

Minha irmã estava segurando-a pelas costas, riu entendendo o jogo, mas não percebia o olhar dela. O olhar da minha mãe era de puro desespero, como se ela, ali, estivesse sendo condenada a uma morte infame.

Dei-lhe adeus, dei-lhe um sorriso.


6.


Perdi o jogo desta vez. Perdi, feio.

Ela não queria mais polemizar, provocar, ironizar. Ela não estava mais preparada para o debate.

Eu tinha mais era que ir.

Na rua, senti um grande sono, uma vontade irresistível de dormir. Eu não poderia perder esta oportunidade, ainda mais por volta das oito e meia da noite.

Corri para iniciar uma série de grandes dormidas, coisa que eu não conseguia há mais de trinta anos. 

Dormindo duas, três horas por noite, a oportunidade de dormir mais cedo poderia significar um grande e bom sono. 

Dito e feito. 

Custei a acordar no horário de levar minha filha para a escola.






(*) Eu vi mamãe nascer. Título dado por Wander Piroli para o livro de Luiz Fernando Emediato