segunda-feira, 14 de novembro de 2016

O SOBREVIVENTE















Urubu carniceiro


Cecílio Antunes, Araguaia, 1973



Houve o combate, depois da queda do avião.

Os soldados eliminavam vestígios de vida e executavam os combatentes adversários feridos.

Na hora do tiro de misericórdia – da execução e da necessária certeza de que não deixaram sobreviventes, ali ao lado dos destroços  – ao armar o gatilho, algumas aves levantaram voo e o barulho, na selva, assustou o soldado.

A bala raspou o couro cabeludo e a cabeça de André encheu de sangue.

Estava executado, o soldado não tinha dúvidas. Um urubu pousou perto. Logo aquilo estaria limpo. Ele chegou a acionar outra bala, era mais para o caso das aves avançarem sobre ele.

Por economia de munição, não teria porque dar mais tiros. Tinha que sair daquele campo úmido, em que o cheiro de sangue e de corpos em putrefação misturavam-se com cheiro de óleo e de gases da fuselagem.

As formigas chegavam. Enquanto os urubus esperavam a saída dos homens, as formigas não pediam licença.

Aquele momento, com as aves, as formigas e o tiro de raspão, era a sua última chance?

Sobreviveu ao tiro, sobreviveu à queda do avião, sobreviveria aos animais da selva, à noite que chegava e à umidade.

A febre deixava-o tonto. Ou seria a perda de sangue.

Devia esperar a noite e certificar de que os soldados se afastaram.

Olhou no olho de um urubu e percebeu que as formigas seguiam para os dois cadáveres a dois metros. Iam direto para o ventre aberto de Adelaide, o cabo Adelaide.