Toda a Amazônia Legal |
Verdade a fórceps (*)
Rufino Fialho Filho
José
Alberto Martelo é mentiroso.
Ouvi
algumas vezes esta afirmativa e digo que, naquela noite de 15 de
maio do ano
2000,
na sua fazenda, quando começou a gravar a primeira fita,
eu não
acreditava na história de
que ele escrevera, anos antes, um livro de mais de
1.000 páginas e que
o queimara lá
no Xingu, nas margens do caudaloso e piscoso
Teles Pires ou de um
outro grande
rio amazônico.
Queimara
nada!
Mais
uma história, mais uma mentira do Zé, José Alberto Martelo.
Ele realmente era
Ele realmente era
um mentiroso.
Era o que se passava pela minha cabeça.
Era o que se passava pela minha cabeça.
Como acreditar numa
“estupidez” desta!
Cinco
anos depois, não só estou convencido,
embora não seja uma testemunha,
embora não seja uma testemunha,
de que
você queimou mesmo a primeira versão do seu livro,
que poderá ter
que poderá ter
como título
A Consistência
A Consistência
de uma Bunda Louca,
como, desta vez, já testemunha, de fato, vi você escrever e
como, desta vez, já testemunha, de fato, vi você escrever e
reescrever,
“queimar”,
inúmeras versões do seu livro,
muito mais versões do que teve a sua vida.
inúmeras versões do seu livro,
muito mais versões do que teve a sua vida.
Afinal,
dizem que escrever é abrir as veias.
Você queimava palavras, queimava vidas.
Você queimava palavras, queimava vidas.
Assim,
constatei que José Alberto Martelo não era um mentiroso.
Detentor de uma
memória prodigiosa, o que confirma a concepção grega da
palavra verdade –
aletheia,
aquilo que não se esquece
Caminhando,
mais na frente, descobri pelos ensinamentos
de Vargas Llosa
de Vargas Llosa
(ele sabe da coisa)
que somos todos grandes mentirosos,
nós, os contadores de história (*).
nós, os contadores de história (*).
Mais
ainda, Zé sabia que a mentira das histórias contém verdades.
Dias
atrás, ele me disse que faria o vestibular para o curso de jornalismo.
Como aprendiz da escrita, tomado de entusiasmo,
andei enviando-lhe alguns
títulos
que sei, como você gosta
de ler e é um devorador da boa literatura, seriam
importantes nesta sua
fase atual de cronista
comprometido com duas crônicas semanais e com a
comprometido com duas crônicas semanais e com a
responsabilidade de escrever ao lado
de um texto com a
sabedoria e a experiência do Ronaldo Perim.
Por
isso, a indicação do livro de Paulo Markum,
O sapo e o príncipe,
O sapo e o príncipe,
uma lição
jornalística
como os livros do Noblat,
A Arte de Fazer um Jornal Diário e
O que é ser jornalista.
A Arte de Fazer um Jornal Diário e
O que é ser jornalista.
À
merda a erudição, mas aqui, por dever de amizade e,
mais ainda, de
mais ainda, de
admiração,
serei
obrigado, diante do seu último artigo sobre índios e eleições,
a sair um
pouco da superfície.
Tudo que está ali é muito sério, trágico, cruel,
violento
– são vidas dizimadas, destruídas –
mas lá não está a crônica, lá não
está um artigo,
ali você não conseguiu
ali você não conseguiu
fazer uma notícia, nem uma reportagem.
A dimensão da tragédia embolou o meio de campo.
O relato perdeu profundidade.
Quem é
este tal de tenente-coronel Sandro?
Ele
errou, acertou, é um irresponsável, um omisso, um
criador de problemas? Qual a
missão da polícia militar:
garantir a paz ou registrar
assassinatos?
A tragédia dos índios, destes homens
nossos contemporâneos,
é uma tragédia nossa.
Está claro no seu texto.
Entendi, então, quando você me falou
sobre a pesquisa
que fará sobre
que fará sobre
As Volantes e
sobre o coronel (?) Juvenal – um
antigo Sandro?
A história de 150 anos atrás, de 100 anos,
de 50 anos que continua
em nossos dias.
Esta é a realidade,
não existe Estado,
não existe lei,
não existe Estado,
não existe lei,
não existe sociedade.
É muito sério tudo isso e você soube por
o dedo, os pés e
as mãos na ferida – revelou esta
realidade e ali, nas páginas
do seu Diário, está uma baita
duma bela pauta para um
senhor repórter.
Agora, a bola é sua para você que sonhou
em entrar para
uma faculdade e
uma faculdade e
estudar jornalismo:
faça a reportagem, vá atrás da matéria.
Marx iniciou sua carreira profissional
como repórter da
Nova Gazeta Renana e,
depois da cobertura jornalística de
furtos de madeira, ele descobriu que
“aqueles ladrões,
não era os ladrões,
mas
os donos das florestas que exploravam os trabalhadores”.
A Gazeta foi fechada, Marx viajou pela
Europa e aprofundou seus estudos.
Vale a pena ler O Capital.
Pelo menos, a segunda seção do primeiro
volume.
Lá você ficará sabendo que todo
capitalista é um ladrão
e que o
capitalismo se baseia na mais pura rapinagem
(você viveu isto na pele quando
enfrentou um maluco que se fantasiou de
“presidente da República” e que,
com raiva da sua insubmissão, mandou
com raiva da sua insubmissão, mandou
bombardeá-lo horas depois da recusa em se
submeter,
ele, o presidente, em
ele, o presidente, em
Brasília, e você e Antônio, Teco, Beto e Alta,
em Boa Vista).
Ali, em cima das cassiteritas, você foi
roubado e o ladrão foi o
Estado armado com
todos os seus instrumentos legais,
imprensa, justiça, polícia, exército e magnatas.
É este mesmo Estado que assiste ao
assassinato dos índios,
conforme seu relato.
conforme seu relato.
Marx
foi o repórter para quem não bastou a reportagem.
Carlos
Fuentes, com A Morte de Artêmio Cruz, num dos mais brilhantes
textos
jornalísticos,
denunciou o assassinato de líderes do interior do México.
O
nosso Joel Silveira, com lições permanentes sobre a arte de escrever,
assim,
depois dele,
Gay Talesse e toda esta corja do novo jornalismo, enfrentaram,
com
coragem, a produção de matérias cuja base é a revelação da
realidade da nossa
sociedade paulista ou dos trabalhadores
anônimos construtores das grandes obras
da engenharia moderna.
São
textos que você, agora, um homem de jornal deveria ler,
mas antes deveria ouvir
mais
o seu irmão, Antôno Alvimar, que o alertou sobre os dois repórteres da
Veja para os quais
você abriu a Amazônia da cassiterita e dos ianomâmis,
certo
de que seriam verdadeiros em
seus relatos.
Não
o foram, eles chegaram lá com as pautas prontas –
e com o texto final engatado.
O
jornalismo que chega com a pauta pronta é traiçoeiro
e eles foram lá para
e eles foram lá para
massacrá-lo
numa reportagem de capa, que estava
na esteira da matéria da
National Geografic, que o
apontava como o maior matador de índios da América.
Você
tem a pauta pronta, mas como o novo jornalismo nos ensinou,
vá lá e confira
tudo
aquilo que você colocou, como palavras suas, nas páginas do seu jornal
e
defina seu texto:
uma notícia, uma reportagem, uma crônica.
Misture tudo porque
a base é a sua vida vivida.
Depois,
Zé, cheque tudo, mande checar,
se permanecerem dúvidas,
vá pessoalmente.
Na
esteira de jornalistas como Jack London,
John Reed,
José Marti,
o poeta de
Nossa América,
publique e pare de “queimar” suas histórias
e não mais omita a guerra
da Amazônia, muito menos,
agora, estes assassinatos assistidos.
Agora,
já que você tem os primeiros relatos da
guerra de nossos índios,
guerra de nossos índios,
mostre o que
acontece hoje, se somos testemunhas de tais fatos
jamais poderemos ser
cúmplices, muito menos do silêncio.
O silêncio nos humilha e acovarda.
Depois,
rasgue a pauta,
caso ela esteja mal feita
ou dê à fonte sua verdadeira dimensão.
caso ela esteja mal feita
ou dê à fonte sua verdadeira dimensão.
Importante,
é extrair
a verdade das mentiras.
a verdade das mentiras.
Depois
de ter feito aquela relação de jornalistas,
grandes escritores e autores também
de importantes reportagens,
termino reportando ao trabalho jornalístico do
correspondente
da Reuters e da British Broadcasting Corporation, a BBC,
na
África, em Biafra.
No
final da década de 60, em duas etapas, a primeira como
correspondente de guerra
e a
segunda como free-lance,
Frederick Forsyth percebeu que estava diante de
uma guerra civil,
em Biafra, uma “guerra genocida
e que foi, até então, o maior
banho de sangue da história da África”.
Uma
guerra que introduzia (invenção inglesa) uma nova e
poderosa arma de guerra:
poderosa arma de guerra:
a
fome.
Ele voltou para Biafra, não mais como correspondente
oficial de uma empresa,
oficial de uma empresa,
mas como
homem,
como cidadão do mundo,
disposto a não deixar aquela
história enterrada e esquecida.
Forsyth
escreveu a sua mais brilhante reportagem
e a mais contundente denúncia contra o
Império Britânico
que contou nesta guerra civil com o apoio dos EUA, da então
URSS e da
maioria dos países africanos,
todas estas potências e títeres se
uniram para esmagar um povo.
A
História de Biafra, aqui no Brasil editado pela Record,
é o relato jornalístico
de Forsyth,
depois autor de O Dia do Chacal, Cães de Guerra e Dossiê Odessa,
entre outros livros,
Naquela
sua guerra, a Guerra da Cassiterita,
quem derrotou os brasileiros?
quem derrotou os brasileiros?
Foi
o “presidente” ou foi o império britânico?
É importante que você pare de
queimar e
publique,
nas edições seguintes,
revise, acrescente, suprima, mas publique.
nas edições seguintes,
revise, acrescente, suprima, mas publique.
Nesta
guerra dos Machacalis,
busque a verdade
ou conte a sua
mentira.
Um
abraço fraterno do companheiro e admirador
Rufino
Fialho
(*)
A verdade das mentiras, Mario Vargas Llosa, ARX, SP, 2004
(*)
Texto extraído da carta de Rufino Fialho para José Alberto Martelo