terça-feira, 30 de maio de 2017

A GRAVIDEZ DA MENTIRA







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Toda a Amazônia Legal




Verdade a fórceps (*)



Rufino Fialho Filho





   José Alberto Martelo é mentiroso.

Ouvi algumas vezes esta afirmativa e digo que, naquela noite de 15 de 
maio do ano 2000, 
na sua fazenda, quando começou a gravar a primeira fita, 
eu não acreditava na história de 
que ele escrevera, anos antes, um livro de mais de 1.000 páginas e que 
o queimara lá 
no Xingu, nas margens do caudaloso e piscoso Teles Pires ou de um 
outro grande 
rio amazônico.

Queimara nada!

Mais uma história, mais uma mentira do Zé, José Alberto Martelo. 
Ele realmente era 
um mentiroso. 
Era o que se passava pela minha cabeça. 
Como acreditar numa “estupidez” desta!

Cinco anos depois, não só estou convencido, 
embora não seja uma testemunha, 
de que você queimou mesmo a primeira versão do seu livro, 
que poderá ter 
como título 

A Consistência
de uma Bunda Louca

como, desta vez, já testemunha, de fato, vi você escrever e 
reescrever, 
“queimar”, 
inúmeras versões do seu livro, 
muito mais versões do que teve a sua vida.

Afinal, dizem que escrever é abrir as veias. 

Você queimava palavras, queimava vidas.

Assim, constatei que José Alberto Martelo não era um mentiroso. 

Detentor de uma 
memória prodigiosa, o que confirma a concepção grega da 
palavra verdade – aletheia, 
aquilo que não se esquece

Caminhando, mais na frente, descobri pelos ensinamentos 
de Vargas Llosa 
(ele sabe da coisa) 
que somos todos grandes mentirosos, 
nós, os contadores de história (*).

Mais ainda, Zé sabia que a mentira das histórias contém verdades.

Dias atrás, ele me disse que faria o vestibular para o curso de jornalismo. 

Como aprendiz da escrita, tomado de entusiasmo, 
andei enviando-lhe alguns 
títulos que sei, como você gosta 
de ler e é um devorador da boa literatura, seriam importantes nesta sua 
fase atual de cronista 
comprometido com duas crônicas semanais e com a 
responsabilidade de escrever ao lado 
de um texto com a sabedoria e a experiência do Ronaldo Perim.

Por isso, a indicação do livro de Paulo Markum, 
O sapo e o príncipe, 
uma lição jornalística
como os livros do Noblat, 
A Arte de Fazer um Jornal Diário e 
O que é ser jornalista.

À merda a erudição, mas aqui, por dever de amizade e, 
mais ainda, de 
admiração, serei 
obrigado, diante do seu último artigo sobre índios e eleições, 
a sair um pouco da superfície.

Tudo que está ali é muito sério, trágico, cruel, violento
 – são vidas dizimadas, destruídas – 
mas lá não está a crônica, lá não está um artigo, 
ali você não conseguiu 
fazer uma notícia, nem uma reportagem.

A dimensão da tragédia embolou o meio de campo. 
O relato perdeu profundidade. 
Quem é 
este tal de tenente-coronel Sandro? 
Ele errou, acertou, é um irresponsável, um omisso, um 
criador de problemas? Qual a missão da polícia militar: 
garantir a paz ou registrar 
assassinatos?

A tragédia dos índios, destes homens nossos contemporâneos,
 é uma tragédia nossa.

Está claro no seu texto.

Entendi, então, quando você me falou sobre a pesquisa 
que fará sobre 
As Volantes e 
sobre o coronel (?) Juvenal – um antigo Sandro? 

A história de 150 anos atrás, de 100 anos, 
de 50 anos que continua em nossos dias.

Esta é a realidade, 
não existe Estado, 
não existe lei, 
não existe sociedade.

É muito sério tudo isso e você soube por o dedo, os pés e 
as mãos na ferida – revelou esta 
realidade e ali, nas páginas do seu Diário, está uma baita 
duma bela pauta para um 
senhor repórter.

Agora, a bola é sua para você que sonhou em entrar para 
uma faculdade e 
estudar jornalismo: 

faça a reportagem, vá atrás da matéria.

Marx iniciou sua carreira profissional como repórter da 
Nova Gazeta Renana e, 
depois da cobertura jornalística de furtos de madeira, ele descobriu que 
“aqueles ladrões, 
não era os ladrões, 
mas os donos das florestas que exploravam os trabalhadores”.

A Gazeta foi fechada, Marx viajou pela Europa e aprofundou seus estudos. 
Vale a pena ler O Capital.

Pelo menos, a segunda seção do primeiro volume. 
Lá você ficará sabendo que todo 
capitalista é um ladrão 
e que o capitalismo se baseia na mais pura rapinagem 

(você viveu isto na pele quando enfrentou um maluco que se fantasiou de 
“presidente da República” e que, 
com raiva da sua insubmissão, mandou 
bombardeá-lo horas depois da recusa em se submeter, 
ele, o presidente, em 
Brasília, e você e Antônio, Teco, Beto e Alta, em Boa Vista).

Ali, em cima das cassiteritas, você foi roubado e o ladrão foi o
Estado armado com 
todos os seus instrumentos legais, 
imprensa, justiça, polícia, exército e magnatas.

É este mesmo Estado que assiste ao assassinato dos índios, 
conforme seu relato.

Marx foi o repórter para quem não bastou a reportagem.

Carlos Fuentes, com A Morte de Artêmio Cruz, num dos mais brilhantes 
textos jornalísticos, 
denunciou o assassinato de líderes do interior do México.

O nosso Joel Silveira, com lições permanentes sobre a arte de escrever, 
assim, depois dele, 
Gay Talesse e toda esta corja do novo jornalismo, enfrentaram, 
com coragem, a produção de matérias cuja base é a revelação da 
realidade da nossa sociedade paulista ou dos trabalhadores 
anônimos construtores das grandes obras da engenharia moderna.

São textos que você, agora, um homem de jornal deveria ler, 
mas antes deveria ouvir mais 
o seu irmão, Antôno Alvimar, que o alertou sobre os dois repórteres da 
Veja para os quais 
você abriu a Amazônia da cassiterita e dos ianomâmis, 
certo de que seriam verdadeiros em 
seus relatos.

Não o foram, eles chegaram lá com as pautas prontas – 
e com o texto final engatado.

O jornalismo que chega com a pauta pronta é traiçoeiro 
e eles foram lá para 
massacrá-lo 
numa reportagem de capa, que estava 
na esteira da matéria da National Geografic, que o 
apontava como o maior matador de índios da América.

Você tem a pauta pronta, mas como o novo jornalismo nos ensinou, 
vá lá e confira tudo 
aquilo que você colocou, como palavras suas, nas páginas do seu jornal
 e defina seu texto: 
uma notícia, uma reportagem, uma crônica. 
Misture tudo porque a base é a sua vida vivida.

Depois, Zé, cheque tudo, mande checar, 
se permanecerem dúvidas, 
vá pessoalmente.

Na esteira de jornalistas como Jack London, 
John Reed, 
José Marti, 
o poeta de Nossa América, 
publique e pare de “queimar” suas histórias 
e não mais omita a guerra da Amazônia, muito menos, 
agora, estes assassinatos assistidos.

Agora, já que você tem os primeiros relatos da 
guerra de nossos índios, 
mostre o que acontece hoje, se somos testemunhas de tais fatos 
jamais poderemos ser cúmplices, muito menos do silêncio. 

O silêncio nos humilha e acovarda.

Depois, rasgue a pauta, 

caso ela esteja mal feita 

ou dê à fonte sua verdadeira dimensão.

Importante, é extrair 

a verdade das mentiras.

Depois de ter feito aquela relação de jornalistas, 
grandes escritores e autores também de importantes reportagens, 
termino reportando ao trabalho jornalístico do correspondente 
da Reuters e da British Broadcasting Corporation, a BBC, 
na África, em Biafra.

No final da década de 60, em duas etapas, a primeira como 
correspondente de guerra e a 
segunda como free-lance, 
Frederick Forsyth percebeu que estava diante de uma guerra civil, 
em Biafra, uma “guerra genocida 
e que foi, até então, o maior banho de sangue da história da África”.

Uma guerra que introduzia (invenção inglesa) uma nova e 
poderosa arma de guerra: 

a fome.

Ele voltou para Biafra, não mais como correspondente 
oficial de uma empresa, 
mas como 
homem, 
como cidadão do mundo, 
disposto a não deixar aquela história enterrada e esquecida.

Forsyth escreveu a sua mais brilhante reportagem 
e a mais contundente denúncia contra o Império Britânico 
que contou nesta guerra civil com o apoio dos EUA, da então URSS e da 
maioria dos países africanos, 
todas estas potências e títeres se uniram para esmagar um povo.

A História de Biafra, aqui no Brasil editado pela Record, 
é o relato jornalístico de Forsyth, 
depois autor de O Dia do Chacal, Cães de Guerra e Dossiê Odessa, 
entre outros livros,

Naquela sua guerra, a Guerra da Cassiterita, 
quem derrotou os brasileiros?

Foi o “presidente” ou foi o império britânico? 

É importante que você pare de queimar e 
publique, 
nas edições seguintes, 
revise, acrescente, suprima, mas publique.

Nesta guerra dos Machacalis, 
busque a verdade 
ou conte a sua mentira.


Um abraço fraterno do companheiro e admirador


Rufino Fialho





(*) A verdade das mentiras, Mario Vargas Llosa, ARX, SP, 2004   













(*) Texto extraído da carta de Rufino Fialho para José Alberto Martelo