ITA VÊ O MUNDO
Fabiano
A. Fortes
“...
a morte de qualquer homem
me
diminui,
porque
sou parte do gênero humano.
E,
por isso, não me perguntes
por
quem os sinos dobram;
eles
dobram por ti.”
John
Donne
Naquela
tarde quase noite de segunda-feira, o Ita caminha pelos morros do bairro Santo
Antônio, depois de uma reunião cancelada. Sem direção. Para onde ir? Tinha
cinco opções:
(1) ligar para Mangaratiba, a Louca, para trepar. Seria uma boa,
sairia de lá meia-noite, uma hora e a apanharia cheia de tesão, ainda saindo da
menstruação. Bom era trabalhar a trepada antes, esperar Glória, a tia da Louca
sair da mesa do jantar e ir para o seu apartamento no prédio ao lado.
(2)
A segunda opção era encontrar com os seus dois filhos, Mikail e Alessandra, 14
e 12 anos, crianças maravilhosas. Ficar lá até quatro horas com eles. Revirando
o cotidiano deles. Sabia que eles gostavam daquela pequena hora que sempre
tínhamos para improvisar.
(3)
A terceira era o meu velho pai, agora com 90 anos, doente, arrastando-se pela
casa com dificuldades. Sempre sozinho, numa imensa solidão, doente, doente e
dormindo quase sempre. Só, muito só. Ficar lá com ele.
(4)
A quarta opção seria sair para conversar fiado com os amigos, Paulo Augusto e
Bejani. Falar mal de todos e de nós mesmos, resgatar histórias e falsificá-las,
beber, beber, mentir, mentir e voltar desabando para a cama.
(5)
A quinta opção era seguir correndo para o esconderijo que nesta noite seria O Esconderijo/Solidão.
Seria a minha pura solidão – hoje, como ele se sente.
Apanhou
o segundo ônibus em direção a uma destas opções. Na subida da avenida Carandaí,
viu um homem segurando na grade do parque. O homem parecia passar mal. Ao seu
lado um rapaz, mochila nas costas, procurava conversar, oferecendo ajuda e
pelos gestos indicava que o Pronto Socorro estava a menos de 150 metros de onde
estavam, bem perto, uma subida, atravessar uma única rua e chegar. O homem
parecia não ouvir, passava muito mal, de repente o homem, um senhor de mais de
50 anos, gordo, baixo, começou a não se sustentar na grade e, devagar, descia
para a calçada, deitou no chão. Via-se que o jovem não sabia o que fazer e
olhava desesperado para as pessoas que passavam e passavam muitas pessoas. Pessoas
que olhavam para os dois, apenas olhavam. Via-se a indiferença nos gestos de
todos, todos com um destino, uma obrigação, um caminho, iam, olhavam, passavam.
O jovem se afastou, olhou, olhava para um e para outro, afastou-se e voltou.
Conversou com o homem, parecia que não o ouvia. O ônibus ganhou velocidade e
subiu.
Ita
lembrou de outra cena que também vira da janela de um ônibus circular, dias
atrás. Trânsito engarrafado, horário de almoço, ônibus cheio de estudantes e de
funcionários públicos indo para o almoço, todos reclamavam do engarrafamento
naquela avenida larga, de quatro pistas. Não tinha sentido, era um absurdo,
culpa do prefeito, época de eleições e o ônibus se aproximando da razão do
engarrafamento. Lá estava, o corpo de um jovem jogado no chão. Um
atropelamento. Magro, roupas puídas, como grande parte da nossa população,
corpo dobrado de quem caiu sem jeito ou de quem dormia como gosta, um corpo em
L, braços lançados ao asfalto como se fosse um colchão, a cabeça deitada
docemente sobre uma mancha de sangue vermelha, muito vermelha, asfalto preto. Contraste
de cores fortes. O ônibus deslizou lento e lento ia passando. A polícia pede velocidade
aos carros para desafogar o engarrafamento. Na frente os carros parados, um
deles responsável pelo atropelamento.
Assim
como o homem que caia, o rapaz morto no asfalto, ele lembrou-se de outra cena.
Esta
na pista de Cooper do Arrudas, oito horas da manhã. Centenas de pessoas andando
nas duas direções. Lá na frente um corpo caído e duas pessoas ao lado. Um homem
tombara ao fazer sua caminhada matinal e ali morrera de um infarto fulminante
fora o que os jornais do dia seguinte explicaram.
Uma
mulher reclamava como uma pessoa podia sair sem nenhum documento e sem nenhum
endereço no bolso. Foi difícil tomar uma providência mais concreta. A polícia
resolveu tudo e recolheu o corpo do asfalto.
Uma
senhora observou que ele não portava documentos porque na verdade ele não saíra
para morrer.
Ita
chegou à casa do seu pai. Encontrou-o, como sempre, com um sorriso largo, discreto, silencioso, feliz e, como sempre também, com alguns recados.