A maratona de um sobrevivente
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O que vier, agora, é lucro!
Esta
frase, ele a repetiu tanto que, mais tarde, ao relembrar aqueles momentos,
depois que despertou no chão cinzento da cela, acreditou que ela era a sua
mantra, sua memória, sua oração, sua vida resgatada em meio a corpos que vira
sairem carregados, empapados de sangue, corpos no chão do pátio, corpos no
corredor, em que os torturados encapuzados tropeçavam.
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O que vier, agora, é lucro!
Como
ele podia concordar com aquela frase? Lucro, um ganho a mais, mais valia. O que
vivera, então, tivera preço justo. Agora, ele tinha direito a jogar tudo para o
alto, sem temer a lei da gravidade. Nada era mais leve do que o sobreviver,
nada mais aéreo do que a vida conquistada, além da resistência. Todo o corpo
era um imenso hematoma, partes em carne viva, queimaduras entre as pernas,
dores dentro e fora do corpo. Agora era agora e ele estava vivo, mas não
precisava debochar da sorte.
Lucro?
A sobrevivência como lucro. Que visão capitalista! Linguagem imperdoável, mas
era por onde, descobrira mais tarde, ganhara forças para encarar aquela
oportunidade de sobreviver.
Talvez,
não passasse da próxima etapa, ele vencera, isto é, sobrevivera às sessões de
tortura da PCA, da Biblioteca, do Túnel, estas três ele vencera. Todas elas, PCA, Biblioteca e Túnel
eram locais e níveis de tortura organizados no Aeroporto do Galeão pelo grupo
de torturadores do Ministério da Aeronáutica.
A
cada pouso de um jato no Aeroporto do Galeão era como se a terra desabasse sobre
sua cabeça.
A
sala de tortura do Túnel, a mais violenta delas, se houvesse possibilidade de uma ser mais violenta do que a outra,
era debaixo da pista de pouso do aeroporto internacional.
Um
avião atrás do outro. Uma loucura. Dali poucos saiam vivos e os que saiam vivos
traziam alguma marca. Agora, ele
respirava mais uma vez, enchendo os pulmões.
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O que vier, agora, é lucro!
Tempos
depois, sentiu fome. Não sabia quanto tempo passara. Ali, raramente serviam
qualquer coisa, além de pancadas a qualquer hora, sem qualquer razão, sem
qualquer pretexto. Sentiu a chegada da fome como mais um sinal de
sobrevivência. Não preocupou-se em passar fome, tão certo de que sobrevivera.
Mexeu a perna e sentiu como se sua calça fosse uma madeira, dura. Uma madeira que
machucava, pois arranhava a carne viva. A calça dura, agora madeira, era o
sangue que secara e deixara sua calça como as roupas engomadas que vestia nos
dias de desfile cívico lá na sua distante Jampruca, no Vale do Jequitinhonha.
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Se tudo o que vier é lucro, o mais a fazer é sustentar esta hipótese de
sobrevivência. Ele tinha certeza absoluta de que sobrevivera. Lógico, não era
um jogo de azar e nem o regime militar havia terminado. Resistir não é prova de
força e nem pode ser parâmetro de medida de força. Não há explicação plausível
para este fenômeno, pois muitos, muito mais fortes do que ele, muito mais
resistentes do que ele, não aguentaram. Quantos somos?
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O que vier, agora, é lucro!
Por
que aquela frase batera em sua cabeça e não mais saíra?
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Era às vezes como uma provocação a mim mesmo e aos meus agressores. Havia agora
a vida, depois desta loucura, que deveria ser vivida, sobrevivida.
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O que vier, agora, é lucro!
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O que vier, agora, é lucro!
O
mundo mudou, muita coisa passou, muitas etapas foram percorridas. Às vezes, ele
se surpreendia ouvindo distante, longínqua, a frase maluca.
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O que vier, agora, é lucro!
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Vinha como se chamasse a minha atenção, como uma voz tímida e baixinha, a
alertar-me de que talvez eu tivesse esquecido algo fundamental.
Outras
vezes sobrevivera.
Aos
12 anos, em suas aventuras de menino, mergulhara para retirar um homem afogado,
e voltara abraçado em um porco inchado, desmanchando. Dias e dias de febre.
Fizera um pacto com a vida. Optara por sobreviver. Ninguém jamais soube
explicar sua recuperação, nem a mãe, desesperada, e nem o médico, que já
preparara os familiares para o desfecho final.
A
febre desapareceu. Lucro.
Outra
vez, tempos passados, depois de dois meses amarrado em uma cama no Palácio do
Catete, no Rio de Janeiro, fora retirado para a “execução”, colocado no chão de
um automóvel, com os pés dos policiais sobre o corpo, pés no pescoço e nos
rins. Horas e horas rodando pelas ruas e avenidas molhadas do Rio de Janeiro,
numa noite de chuva fina, até chegar ao local da execução.
O
seu corpo já encharcado de gasolina e álcool. “Não vou morrer, sem lutar”. A
pouca chance que teve foi o bastante para despertar na cama de um hospital. Ao
abrir os olhos, viu o rosto amigo do general Figueiredo, amigo da família, e
viu que o general tinha os olhos úmidos e viu uma lágrima escapulindo. Mais uma
vez sobrevivera.
Agora,
quando despertou na cela da PE da Barão de Mesquita, teve a certeza de que o
jogo continuara e que ainda estava a seu favor.
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O que vier, agora, é lucro!
Ele
tinha certeza. Mais do que isto, ele tinha uma linguagem com o que ele não
entendia, em que um diálogo inexplicável, fora do entendimento, se passava e,
por mais fraco que estivesse, a vida venceria sempre.
Era
profundo. Nunca fora místico, não tinha raízes para isto e nem formação
adequada. Era preguiçoso. Nunca fora o melhor em nada, não tinha motivações
para qualquer tipo de disputa, nem tesão para ser vencedor de competições e nem
saco para comemorações.
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O que vier, agora, é lucro!
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O que vier, agora, é lucro!
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O que vier, agora, é lucro!
Nunca
cedera em nada do que acreditava. Acreditava em tão poucas coisas, que sempre
era visto como inadequado na convivência.
Incrédulo?
Nem
tanto, porque nem ao não havia sim.
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A sobrevivência custa caro. Muito caro.