quarta-feira, 21 de março de 2018

O QUE NÃO EXISTE



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Imagem Capturada





Yuri de Almeida Bastos

 





 

I

Conheço Maria tão pouco

E louco não me basto

Quero saber dos seios de Maria

Alegrias sentidas

Depositadas em algum baú velho

baú perdido, chave perdida.



II


Anda Maria na Serra?

Anda vestida seu corpo verde?

Anda no sábado talvez amarelo,

Talvez novembro,

Talvez setembro,

Talvez anda deitada dando

(ou em pé como gosta)




III


Preciso saber quem é Maria

se lhe pertencem o portão, a escada, a noite


Preciso me subtrair da tristeza de um olhar

escutar de novo música noutra escada


Com outros seios que não mais iludam.


No alpendre Maria diz coisas do ardor

Diz que ama e me bombardeia de carícias

Cálidas palavras brotam sussurros


Amor imenso rebelde nos gestos,

Sem juízo, no largado das horas.



IV


No alpendre quadrado, murado, onde as flores
morrem debaixo das bundas, flores amassadas
de um buquê sem cheiro e sem papel celofane.


Maria corre, um prédio traga,
desaparece nas escadas da realidade.




V


Maria? Eu amo Maria tão honestamente
tão puramente que seria muito ruim
dizer que ela não existe


No entanto, asseguram: ela não existe mais.

Ainda bem, ainda bem.

Não me conformo.

Conformo com o fato dela ter existido

Com a possibilidade essencial de eu a ter amado


VI



Chego até a me enganar
Nada disso é fantasia ou poesia
Nada disso é drama ou comédia

Penso em Maria como se fosse um louco
Todo meu corpo pensa Maria e se agita e
Cresce, num só gesto de adoração



VII


Mas Maria não é para mim,

Classes carimbadas

Lutas desiguais, sistemáticas, estúpidas.




Mas ela foi minha, lavou meus cabelos
Beijou minha boca, dormiu me abraçando
Xingou os céus e xingou demais
Xingou os deuses e para mim guardou
o que era doce, cristal: o seu corpo


VIII


Finjo ser a indiferença na história de Maria

De longe, os barcos são lentos e seguem




IX


Chovia

Era novembro

Jabuticabas maduras

Uma tarde,

As poltronas silenciosas e só os seus ruídos.






Perto do piano seu corpo treme

– Eis! Vede! Ouça, o som!

Vou despir todo o corpo de Maria

Mostrar como ela realmente é

Limpa, nova, nua, pele de jambo

E onde o sol não toca, eu toco



X


Tudo, tudo confuso

Por que todo ser Maria fala tanto para mim?

E seus seios não falam

Suas coxas são cerimoniosas

Sua bunda é tímida

(iludo)

No sexo quando me acerco


XI




Tenho que pensar em semente

(quando penso Maria)

Ela é permanecerá

Verde, novo,

possivelmente outro ser

Sei lá! Nem sei se Maria é moça séria

Ou mulher-dama ou se ela sequer sabe disso.

(vai ver que nem pensa em negócios)


XII


Ela sequer sabe que eu existo

acossado pelas minhas fantasias

áridas.


Maria não sabe que eu amo.

Passa por mim indiferente,

vira o rosto

cruza as pernas no cinema,

despreza o olhar



XIII


Ela às vezes afoga

Sem exagero ou metáforas

E em meus sonhos

Vejo seus lábios gritarem

E eu sou indiferente



XIV


Decido falar

Senhora, com licença,

Desculpe-me  esta liberdade, nem lhe conheço.

Eu compro se for o caso um quilo de beijos,

uma dúzia de abraços, uma tonelada dos seus dias.

Pago na hora.

Eis, as minhas economias



XV


Vou sem rumo pelas cidades

Passo por Maria em Contagem

Sinto seu cheiro nos sítios

Procuro; no espaço, ela sumiu.

Sumiu simplesmente em mim.

Corro. Em casa, tiro tudo dos bolsos

Percorro nas mesmas ruas percorridas

Onde teria caído, onde eu esqueci Maria.

Nasce a obcecação, nasce a angústia e o desespero

Ergo roupas, reviso linhas, entre-linhas, sub-linhas

(Em que momento esqueci Maria?)


XVI


Onde deixei Maria? No Século XX?

Em 1969? Numa rua?

No cofre? Não. Não! O raciocínio:

Primeiro ponto: porei, “tenho certeza que a perdi”.

Segundo ponto: é preciso localizá-la, imediatamente.

Fora de mim ela não vive. No ar, ela envelhece.




Pergunto aos poetas... É morena, cabelos negros, caídos,

Olhos castanhos, sorri assim. Ah! Não viram

Me xingam. Trepava no muro das suas inspirações...

Os cantores perderam tantas Marias. É inútil perguntar.

Passo ao largo. Não posso perguntar aos cantores.




Perguntei ao mendigo sempre no mesmo lugar

Talvez tenha o dom de ver de um só lugar

Viu? Não, não viu e eu não parei

Perguntei ao porteiro, ao carteiro,

Continuei nos dias que se seguiram

Queria viver lentamente, eternamente,

Nas praças, nos bares.

Tomar a cerveja gelada que me falta

Beber em copo de vidro, sentir nos lábios,

na garganta correr o líquido e embriagar




Fui escutar o escultor falar,

Falou de derrotas e de vitórias. Seus lábios

Tropeçaram, tremeram e sorriram

Calou, me disse que esculpiria

Uma imagem de Maria, presente de fim de ano



XVII


Puto nas calças, enciumado,

voltei às ruas, bêbado

Onde, Maria?

Onde, miserável e bela?

Onde, desgraçada,

eu lhe perdi?

Em que lugar de mim você se escondeu?



Trouxe do chocolate que gosta

da confeitaria predileta,

castanha de caju coberta de chocolate


XVIII


Maria, você está ficando dengosa demais,

Venha cá, volte

Eu não só lhe dou tudo o que sou

como lhe dou do meu amor o dia inteiro

E mais, de agora em diante, prometo não insistir.




XIX


A seção de perdidos e achados


dos jornais avisa ao Senhor de Maria


que a figura descrita foi vista


na praia de Ipanema, tomando sorvete


até pousou para repórter que filmou


Sensibilizado com as pernas e o corpo inteiro

(você sabe quem foi, pela marca das fotos)


Filho da puta,

esse corpo todo daqui é propriedade,

tem dono,

Tira a máquina, ô! camarada viciado

vá sensibilizar-se com as coxas de suas negas,

leve um cabresto, se você estiver na esquina

se arreie, gaiato, para que lhe passem as coxas


XX


Um poeta sem escola, sobraçando Dante

Avisa: Maria quer ser dona de casa

Mulher honesta, viver para os filhos, para o marido

(Que saco, haja!)

que nunca mais quer saber de mim

tudo foi uma aventura

não mais interessa a ela olhar meus olhos.



XXI


Maria agora é mulher caseira, ordeira,

Mulher dinâmica, mas o marido cronometrado

é conveniente, dá chá-dançante, sorri fechada,

aparece nos jornais em preto e branco

até com todas as cores


O texto diz que veste o modelo KX


XXII


Agora, ando pela cidade

A procura de uma casa branca

Para morar,


Não sei não, Maria, tenho noites assim

iguais a estas: dá é uma vontade danada

de pensar em você, viver de novo em nosso filme

Gosto de lembrar as palavras das pessoas

Que não perderam um silêncio na inveja.


XXIII


Em tudo, no cais parado, na estação deserta

Eu sou um homem feliz, trago em mim outras

e tantas Marias.

Quantas Marias?

Troço de certeza, um encontro qualquer dia

em qualquer cidade calma. Eu conseguirei

identificá-la? Tanto tempo perdida, assaltada, roubada, saqueada.


XXIV


Tudo porque conheço Maria

Mas como poeta, sou louco e vou tentar

fazer versos, me alimentando com arroz, feijão,

carne, leite e sonhos na dieta dos miseráveis

Devoro chuchu, beterraba, batata inglesa.




Maria é uma fazenda, cheia de animais


Eu sei o que Maria é, disse o filólogo, na 3a Conferência

sobre O Perder Maria,

Calou, não conseguiria o suspense organizado

Maria é um buraco, gritou e levantou o dedo

Maria é um buraco, repetiu à assistência inquieta


XXV


Na volta da caçada,

o caçador jogou as armas no terreiro

Tinha ódio e maldade nos olhos

Será que o mar-monstro roubou Maria?

Noutro ponto, o homem de Java fareja os rastros

visíveis de apetitosa donzela e ao que tudo indica

ela foge de todos os amores.


Quem sabe?


XXVI


Um por cento das mulheres é dádiva da natureza,

Poucas nestes um por cento chega ser Maria




XXVII


Maria
teus cabelos negros, lisos, longos, caindo sobre o meu braço
Maria
porque teus olhos me segredam o belo, eu te amei
Maria
teus sonhos nunca se realizariam, a eternidade é dos poetas
Maria
não esqueça nunca de mostrar-me onde escondes a chave
Maria
não esqueças de que eu te amo
Maria
olha o leite das crianças,
Maria
sabes onde deixei o romance?
Maria
quando falam de um amor belo, falam do nosso amor