1969
Vinte anos, jovem
Trinta anos, velho
Rufino Filaho Filho
Estes
sãos pequenos episódios e pequenos escritos de dois rapazes metidos a
jornalistas e a revolucionários que naqueles anos bateram asas e foram para o
calor do Norte Maravilha.
Derrotados
no sul maravilha e nas terras de castanhais às margens do rio Guamá, eles foram (escaparam)
para o norte, para voltar a lutar e para insistir em escrever.
Ewerton
formou em química, mas escrevia e seria jornalista. Primeira função: editar o
jornal dos padres.
Tor
mudou de nome e se intitulou Riama Oiticica. Riama por drama, Oititicica por
amor à luta do linguista, como a dizer, “pois é, você que lutou, a luta
continua comigo vestindo tuas palavras”.
Tor
tinha alguma experiência dos anos de 65 e 66. Mexeu na história e suas
angústias e dúvidas ainda andavam travadas e encalacradas na garganta.
Ewerton
mostraria do que era capaz. Era capaz de escrever críticas de cinema e triste
com a idade. Formou já velho, segundo ele.
Chegaria de novo no norte, iria até a casa de
madeira do velho pai, pai de grande quantidade de filhos. Um pai agora enfezado,
parado, mastigado dentro de um quarto, sem pernas para sair, andar e viver. Para
ele viver era andar, viver não era ouvir rádio de dia, de tarde e de noite.
Viver era
entrar nas matas, cortar pau, tirar borracha, caçar, rasgar o rio com o corpo e
os braços. O velho tava lá, não era misterioso.
Vida comum e
igual às vidas dos homens que viveram no Acre, que pelas matas trabalharam, que
saíram do Acre, que foram desembocar suas vidas antes do mar, nas terras limpas
e de sol da cidade de mangues, Macapá.
Ewerton
seguiu na frente. Em Macapá, era o editor do jornal semanário. Para Riama
reservava-se o lugar de diretor da rádio, repórter e para os dois um faz-tudo
na rádio e no jornal. Para eles se reservava a aventura. Sempre.
Os
padres tinham força e dinheiro. Tinham boas construções. O prédio imenso do
seminário estava vazio. Era uma prova do adeus às vocações. Estava lá,
silencioso o bastante para acolher os bandidos. Um labirinto. A cada dia
descobria novas coisas.
Quando
o táxi parou numa das portas, ficou sem saber por onde entrar. Abriu uma porta,
ninguém. Abriu outra, ninguém.
Ouviu
vozes, encostou na janela. Era uma aula
de rádio-técnico. Cinco alunos, nenhum professor.
Ali
mesmo naquele prédio do antigo seminário sem vocações funcionava a gráfica.
Duas linotipos. Uma estragada. A outra, último modelo, vindo da Itália. Doação,
como tudo ali. Como os alimentos, tudo do melhor, tudo vindo de fora e doado.
Migalhas
fartas. Mas não havia café. Aparecia, mas sempre sumia. E Riama não gostou.
Nosso personagem era viciado. De manhã, a boca e o paladar se preparavam para o
café e se frustravam.
Outros
sabores vinham substituir o café, o açaí vinha à tardinha, depois do sono. Os
refrigerantes, doces e um pão imenso com carne às 10 horas.
Dum
lado, os padres providenciaram o escritório onde funcionaria a editoria, a
redação e tudo o que dissesse respeito ao jornal.
Ao
lado, no depósito de papel, colocaram as nossas redes e seus mosquiteiros, que
nunca nos livraram dos carapanãs, capazes de vencer mosquiteiros e redes em
direção ao sangue, ao nosso sangue.
As
janelas eram protegidas dos mosquitos com telas. Riama não gostava das telas e
nem dos mosquitos. A proteção das telas era precária. Por onde conseguiam
passar tantos mosquitos. Passavam e eram muitos.
No
andar de cima ficavam os quartos de padre Antônio, xô padre Gustavo e do padre
Bertoldo. Este era o diabo. Seu quarto era como uma guarita, ele ficava de olho
em tudo. Suas luzes estavam sempre acesas e o padre vivia ligado em óperas.
No
centro da cidade, ao lado da Igreja-matriz de São José, funcionava a impressora
da gráfica, uma impressora plana, trabalhava para o jornal de Macapá e o jornal
de Belém. Os padres colocaram tudo aquilo nas mãos dos dois. Eles tinham
absoluta confiança em Ewerton e com razão. No que se refere à honestidade. Tudo
certo. Mas também era esta a única preocupação deles.
Os
dois, Elso e Riama, tinham planos ambiciosos. Queriam fazer um bom trabalho
profissionalmente. E o fizeram no pouco tempo que ali ficaram.
Ewerton
com o seu silêncio ia cavacando as pessoas, ele era baixo, magro de raiva e de
fome mesmo, direto em suas palavras e de poucos amigos.
Seu
orgulho de sua gente era o orgulho dos infelizes e dos famintos, como se
estivessem a dizer, “parem de nos jogar esmolas, somos capazes de construir mil
sonhos só para debochar de todos os exploradores do mundo”.
Ali
estávamos por uma opção de luta. Saíamos ou escapávamos do fracasso das lutas
nas terras dos castanhais e dos posseiros.
E
a escassez do café? Isto não entrava nas nossas cabeças de Riama. Não estamos
no país do café? Aquela mesma situação se repetiria em Marajó. Cadê o leite,
não estava numa região leiteira? Tudo ia pra fora. É trágico você produzir os
alimentos e morrer de fome.
Riama
sentou na máquina e escreveu um dos seus primeiro artigos, foi sobre sobre o
drama do café em Macapá.
I
“Sem café, sem
o cafezinho no balcão
Riama Oiticica
Problema
nosso. De manhã passamos sem o cafezinho. À tarde a mesma coisa. Não há uma
boca de pito, eu não fumo, mas penso nos que fumam.
O
estimulante de 10 centavos sumiu e eu me desestimulo porque sou viciado e
dependente da cafeína. No balcão, necas. Não há nada, nem cheiro, nem restos.
No
rádio e pelas propagandas sabemos que lá no sul, do outro lado do mundo, tem o
café. Lá as coisas são diferentes. Há propaganda e há café. Aqui ouvimos e
entendemos a propaganda como uma piada de mau gosto. A gente ouve a propaganda
e discute apenas a técnica publicitária. O resto não importa. Será que tão
vendendo a imagem? Há por lá escassez de ideias e de técnicas...
A
publicidade deve buscar o cômico, o irônico e fazer sempre associações
primárias...
Vamos
pensar em como viver em nossa amizade sem o produto – cafezinho...
Balcão,
não se esqueçam, é também uma questão de saber distribuir.
O
líquido preto, estimulante da nossa burocracia e que não falta em nenhuma
repartição pública, é o grande regulador da nossa vida. Somos os consumidores.
Eis o diabo.
Imagino
numa tarde brumosa, lá onde fazem estes dias assim, uma sala, toda ela bem
mobiliada, onde as peças de madeira são de jacarandá, com toda a sua escura
seriedade, homens e poltronas em gestos agasalhados por tapetes e cortinas,
discutem.
Discutem
o destino do cafezinho e sua colocação no mercado. É um assunto que envolve a
segurança nacional, por isso há fios espiões trabalhando na sala por baixo dos
tapetes.
De
repente a decisão. Na extremidade da mesa, ergue-se a voz pesada, o dirigente
de reunião tem que ter voz pesada, moldadas em cursos preparatórios de como
liderar e dirigir reuniões.
Voz
taxativa, anuncia que não haverá café em
Macapá, mercado pequeno, pouca ou quase nenhuma capacidade aquisitiva. Eu penso
nas variações das letras da sigla IBC e penso nos imbecis que como eu mamam na
égua.
Somos
escravos do 1o produtor mundial de café.
Topo
com um cara e conversamos sobre um monte de coisas. Ao pé do ouvido, ele me diz
que conseguiu um quilo
- Roubou?
-
Nada, nada disso.
- Contrabando?
-
Anh-anh, negativo.
- Como?
- Com os
funcionários.
O
café é um produto tipicamente burocrático. De repartição em repartição.. Passei
a frequentar mais assiduamente as repartições. Tai o segredo. Mas a coisa é
vexamosa. Embora viciado em cafeína, sou viciado em dignidades.
Passei
a estocar sonhos e me diverti.
Pois,
estamos diante agora da incrível mentira da verdade.
Saboreio
meu uísque cotidiano, pergunto pela capacidade aquisitiva, pelo salário de
miséria, pois não ganho nada, mas sonho em dar um tombo e fugir com milhões
para ter o meu jipe e as estradas. Quais são os segredos da economia? Dar,
sempre dar grandes tombos. Treino para ser um Ford. No nosso pequeno jantar da
manhã, introduzi o uísque.
Foi
fácil, fácil.
Transferi
o balcão para o cais do porto.
Julho
de 1969
Pausa no voo
O pequeno jato da Cruzeiro do Sul (*) sobrevoa a ilha de Marajó. Eu
estou num dos primeiros lugares do aparelho e entre os meus livros, eu levava
um pequeno revólver calibre 22, de sete tiros. Estava ali ao meu lado, junto
com dois livros, numa bolsa a tiracolo e eu pensava no meu atrevimento ou
irresponsabilidade em ter entrado no aparelho, numa época de sequestros com
aquela arma.
Na alfândega, a moça que fez a revista em minha bolsa, sorriu,
levantou os livros, apalpou a camisa em que estava enrolado o revólver – não
tremi nem nada – e me mandou seguir.
Passei e aquilo ficou como um teste na segurança dos voos. Agora no aparelho,
olhava para aquele avião cheio, com umas quarenta pessoas a bordo.
O avião saiu de Belém às 9 horas. Faria escala em Macapá e depois
seguiria para a Guiana Francesa. Voo internacional, daí termos passado pela
alfândega em Belém.
Ali ninguém levava contrabando, certamente. O mar era maior e mais
seguro. Para mim aquele ambiente era o de um ônibus da linha Teófilo
Otoni-Pavão nos tempos da minha meninice. Ônibus lotado, cheio de roupas coloridas.
Faltavam os engradados de galinha, os sacos de arroz e as bagagens amontoadas
sobre o teto e sobre as pessoas. Pouco para aquele jato tornar-se um ônibus do
Mucuri.
Adiante, Macapá. O rio Amazonas dava o seu espetáculo de barro e de
penetrações na terra. Era o verde e o barro marrom. Na nossa frente depois de
um grande mangue, pintou cheia de sol e colorida a cidade plana e de ruas
traçadas. Tudo bem comportadinho.
O prédio maior, moderno era o colégio do território. Eu não tinha
dinheiro para voltar. Tinha, portanto, como uma necessidade imperiosa, encontrar
o Ewerton. Era uma viagem sem volta. Ninguém
joga no escuro. As atividades no Guamá cessaram.
Quem queria ser Che Guevara, desistiu. Todas as informações passadas
para a frente eram falsas. E eu me entristeci em estar ali checando isto, mas
não tinha jeito mesmo. Tudo falso. E agora? O que hacer? Outra forma de luta, outra estratégia e a luta
continuaria.
Os sequestros com destino a Havana, Cuba
O primeiro sequestro no Norte aconteceu em julho de 1970, com um jato da Cruzeiro do Sul, que transportava 63 pessoas.
Em Caiena foram liberados 40 passageiros, o restante em Georgetown, depois de várias escalas chegaram em Havana. O sequestrador de 20 anos ameaçou explodir o avião com uma bomba de nitroglicerina.
50 anos depois, este fato ainda era registrado na primeira página da Folha de São Paulo, edição de domingo 05 de julho de 1970.
(*) Cruzeiro do Sul - Caravelle 6R - De 1968 a 1972 sete aeronaves deste modelo operaram no Brasil. O Caravelle foi o primeiro jato operado pelo Cruzeiro. Este modelo permaneceu em operação até a empresa ser comprada pela Varig que o substituiu pelo Boeing 727.
II
Bom
dia, senhor Governador
Riama Oiticica
Décadas
passadas, vivendo do garimpo a família Álvaro Campos Mostarda além do chefe e
da sua mulher era integrada por alguns animais domésticos, as ferramentas da
lavoura, a cartucheira.
Esta
cartucheira tinha sua história. Adquirida quando em sua juventude Álvaro
planejava ditar a lei e a ordem para tudo o que fosse vivo. Ditar a lei, para
ele, era o poder de decidir sobre as vidas, isto é, matar.
Do
casamento de Álvaro não nasceu nada. Com o tempo, ele abdicou de seus reais e
imperiosos intuitos ditatoriais. No rancho, os pássaros sabiam do gênio do humano.
Terminado o trabalho do cascalho ou quando
vinham as águas da enchente, os pássaros
e seu Álvaro batiam as asas para o seco.
No
gênio humano de seu Álvaro, o cascalho e
as enchentes se integravam para todos os afazeres e para todas as suas emoções.
Assim,
um dia ele foi surpreendido esperando e sonhado com a enchente. Ele não
trabalhava no garimpo e dormia em casa. Sua mulher já acostumou a isso. Sua
casa era o outro garimpo a surpreendê-lo com as mais belas joias do corpo
feminino.
Com
o tempo, a mulher passou a gostar mais do grande e emocionante rio do que do
marido.
O
rio descansava e tornava o sol um ser fácil de domar. Entre o sol e o rio, ela
segredava sua pureza e sensualidade.
Tomava
banho com a roupa do corpo, que era pouco e que se lavava no corpo e se secava
no corpo, com o calor do sol e do corpo.
O
vestido conservava por algum tempo aquela sensação de frio e calor provocados
pelo vento e pelo sol, que brincavam com seu pelo.
Com
as sua canoa, enquanto o marido dormia na margem, depois da comida, ela
perseguia o rio procurando paisagens. Ah, se não fossem estes passeios! Naquela
paisagem jamais teria nascido o nosso personagem. E ele veio gordo e bonito,
sempre sorrindo, sempre chorando.
Álvaro
quis que seu filho estudasse, fosse inteligente e um dia quem sabe fosse o
senhor-governador deste imenso rio, que ditasse as leis, com a sua cartucheira,
que estava encostada, enferrujada e sem munição.
Na
hora do registro, uma mistura de sonho e profecia. Humilhado em seus impulsos
ditatoriais perante a figura barbada e careca do escrivão, Álvaro se confundiu,
trocou sonho por sonho e registrou seu filho pelo futuro.
Do
escrivão para a pia batismal, a confirmação do homem daquele embrulho sujo,
sempre sujo e sempre chorão: Senhor-Governador.
Nós
dois, eu e o Senhor-Governador nos conhecemos na escola. Amigos, na
apresentação.
Em
mim, a birra contra as autoridades
estava na alma garimpeira. Ele já era prepotente. Num passeio, ele quis me
convocar para seu secretariado e contou-me os seus planos.
Ser
autoridade, moralizar o serviço público e servir à nação, conduzindo com ordem
e sem divergências o Estado Nacional em direção a um futuro de progresso e
trabalho.
Nasceria
assim a Nação-operosa. Dias depois, declaramos guerra. Era uma guerra de
olhares e vigilância. Ele querendo a todo custo destruir a crítica, que por
sinal, mais tarde viria a jogar por terra um pouco do barro e da lama que o
sustentavam.
De
minha birra era a atenção e a vigilância, pois temos que vigiar dia e noite a
ação dos homens que estão no poder, condenar sempre os seus erros. Expulsá-los
e cassá-los.
Conhecendo
a intimidade do meu amigo o Senhor-Governador, esperei eu ele acordasse hoje
para um entendimento.
- Bom dia,
Senhor-Governador. Indiferente e impassível, ele era a própria autoridade. Seu
bom dia para mim foi um muxoxo. Meia hora depois, depois do café, dos jornais e
do xixi, ele olhou para mim e me disse:
- Bom dia,
senhor Riama. O que queres de mim?
- Nada.
- Nada?
- Nada?
- Apenas, dizer-lhe,
bom dia, Senhor-Governador.
A marmita e a menina
O padre Bertoldo era o nosso vigia. Atento e a par a
tudo. Olhos e ouvidos abertos para o que era escrito e falado.
Assumiu como sua tarefa impedir que, nas horas mais escuras, qualquer um de nós seduzisse e as meninas da cidade. Tinha convicção de que isto aconteceria. Mais certeza ainda de que evitaria.
A luz do seu quarto no andar superior do prédio era a proteção da cidade.
Nossa chegada deu mais entusiasmo à sua vida. Para ele, éramos os seus mais perigosos
inimigos.
Ele nos contratou para sermos seus inimigos. Nós não assinamos como
parte interessada este contrato. Nem o distrato.
Arranjaram uma marmita.
Entre 11 e meio dia, uma menina magra e
morena trazia para Ambrósio a marmita.
A marmita e ela